Por Eloi Ferreira de Araújo

 

Em um rápido olhar nos livros de história, percebe-se que falta cor. Como resultado de quase quatro séculos de escravidão, Zumbi dos Palmares, Dandara, João Cândido Felisberto, Tereza de Benguela, Luís Gama, Antonieta de Barros, Machado de Assis, Maria Firmina dos Reis e tantas outras personalidades foram, por muitos anos, apagadas. A abolição formal ocorreu, mas, como previu Joaquim Nabuco, a escravidão permaneceu como característica nacional do Brasil.

A lei de 13 de maio de 1888 foi resultado da primeira grande campanha popular da história do Brasil, o movimento abolicionista. Com a campanha abolicionista, pela primeira vez, diferentes camadas sociais mobilizaram-se em massa por uma agenda positiva. A campanha abolicionista sensibilizou a sociedade contra a escravidão e foi, portanto, a primeira lição de cidadania do Brasil. Não houve, contudo, unanimidade.

Os que, hoje, são contra as cotas, contra um auxilio emergencial justo e contra a presença de negros nos aeroportos e nas universidades são herdeiros dos antiabolicionistas que, insatisfeitos com a Lei Áurea, tentaram barrá-la e criar constrangimentos e perseguições, para que não se festejasse a liberdade. Como consequência, o legado do Estado brasileiro aos ex-cativos, na expressão do samba-enredo de 1988 da Mangueira, foi “livre do açoite da senzala, mas preso na miséria da favela”.

Os antibolicionistas de 2021 não se referem ao peso de quilombolas em arrobas por acaso. Assim como seus antepassados escravocratas, que queriam apenas que a população negra nascesse, trabalhasse e morresse – preferencialmente, cedo, antes que “não servissem nem para procriação” –, os de hoje desejam que a população preta e pobre brasileira nasça, sirva, mesmo sob o risco de contaminação por um vírus letal, e morra – preferencialmente, cedo, pois “hoje todo mundo quer viver 100, 120 anos, e o Estado não pode dar conta disso”. Como resultado, estima-se que, sob o governo dos antiabolicionistas do século 21, a expectativa de vida do Brasil já tenha caído em quase dois anos.

Não surpreende que a barbárie da chacina do Jacarezinho não cause indignação nos antiabolicionistas contemporâneos. O que eles não percebem é que estão, desde o século 19, não apenas na contramão do Brasil, mas também na contramão do mundo. O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, tendo-o feito já sob grande pressão internacional.

A política antiabolicionista atual também tem dias contados: nosso país, já isolado, em razão da escolha desastrosa do atual governo de não conter a pandemia, novamente, chocou o mundo, na última semana, com as violações de direitos humanos no Jacarezinho, tendo a ONU, inclusive, se manifestado sobre o caso. No mundo, não há espaço para o antiabolicionismo. Tampouco no Brasil.

A lei de apenas um artigo de 1888 não é mais o único instrumento legal abolicionista de que dispomos. Em 2010, foi promulgado o Estatuto da Igualdade Racial, que introduziu no ordenamento brasileiro o instituto das ações afirmativas e buscou completar as lacunas deixadas pela abolição incompleta.

Essa é uma conquista sólida, assim como o empoderamento crescente e a tomada de consciência da população negra brasileira. Como em 1888, em 2021 a abolição não pode ser detida. E, assim como aos antiabolicionistas de 1888 aos de hoje, em pouco tempo, não restará nada, além da lata de lixo da história. •

* Ex-ministro da Igualdade Racial, é embaixador do Movimento Ar-Vidas Negras Importam