Por Givânia Maria da Silva* e Bárbara Oliveira Souza**

 

As comunidades quilombolas têm vivenciado historicamente efeitos do racismo estrutural. Diversas barreiras no acesso a políticas públicas fundamentais, como as de saúde, educação e as voltadas à regularização fundiária de seus territórios tradicionais, são presentes há gerações nas comunidades. O significativo grau de vulnerabilidade nos quilombos se aprofunda em situações de crises graves, como a atual. A limitada garantia dos territórios quilombolas é um dos elementos que deve ser destacado.

No contexto atual de crise da saúde pública, a maior parte das comunidades não tem assegurado o direito a seus territórios, onde apenas 246 títulos foram expedidos para 357 comunidades quilombolas, em um universo de mais de 6 mil comunidades no país. Os quilombos convivem ainda, em diversas situações, com conflitos, ameaças de expropriação e violências, conforme aponta a Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Esses são fatores necessários para avaliarmos o contexto atual no qual as comunidades quilombolas estão imersas na luta contra os efeitos da Covid-19.

As ameaças de remoção de seus territórios tradicionais são outro fator que tem agravado a fragilidade de algumas comunidades quilombolas no país. Neste cenário de pandemia, comunidades quilombolas, como as situadas no território quilombola de Alcântara, no Maranhão, vivenciam tensões, com ameaças de novos deslocamentos e remoções de parte das comunidades, em razão da tentativa de expansão da base espacial ali situada. Uma série de ações que violam o direito de consulta prévia, livre e assistida, e que não asseguram o direito à terra previsto na Constituição Federal de 1988, no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), têm sido tomadas no território de Alcântara, em pleno contexto de pandemia.

A existência das comunidades é fundamentalmente vinculada à garantia dos seus territórios. Os quilombos mantêm vínculos profundos de sua identidade com a terra e território tradicional, a partir dos modos de vida e dos processos de resistência à opressão histórica sofrida, sejam no meio rural ou urbano. A ruralidade é majoritariamente presente, contudo não é uma condição exclusiva das comunidades quilombolas.

Terra e território possuem outros sentidos e usos. Envolvem plantio, produção, vivências e expressões das manifestações culturais, celebrações, construções de espaços sagrados e de vínculo com as memórias ancestrais. As relações e os modos de vida associam-se a outras características de natureza cultural e simbólica, e a aspectos político-organizativos, como as lutas por reconhecimento e direitos.

No Brasil, a batalha das comunidades quilombolas por seus territórios se fundamenta em marcos legais, como o artigo 68 do ADCT, e os artigos 215 e 216 da Constituição de 1988. É dever do Estado brasileiro garantir os territórios dos quilombos, assim como proteger seus os modos de viver, fazer e criar bens materiais e imateriais associados à identidade e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade – artigo 268 do ADCT, artigos 15 e 216 da Constituição.

Contudo, cabe destacar a omissão do Estado em atuar no enfrentamento dos efeitos da pandemia da Covid-19 nos quilombos. A atual situação tem deixado os quilombolas ainda mais fragilizados, como destaca Selma Dealdina, quilombola do quilombo Angelim III, no Espírito Santo. “Nosso povo não está conseguindo fazer os testes. Não está tendo testes. Vão aos postos de saúde e lá pedem para voltar, porque não tem. Na cesta básica é muita conversa e pouca ação. É muito decreto, portaria, mas as cestas não estão chegando ao nosso povo, que está com fome. Não está chegando a quem de fato precisa, por causa de impedimento, não tem telefone, não tem luz. Falando do auxílio emergencial, quem tem fome, quem precisa, não será atendido porque a forma como foi usada para inscrição, pela internet, por telefone, não funciona nos quilombos. Os anseios e dúvidas continuam”, disse em entrevista ao jornalista Rubens Valente, do UOL.

Descreveremos, a seguir, alguns aspectos que apontam a histórica desigualdade no acesso a políticas públicas e em como esses elementos impactam segmentos vulneráveis, como as comunidades quilombolas no Brasil.

 

Diversidade e desigualdade brasileira em tempos de pandemia

A emergência na saúde pública tem apresentado resultados bastante preocupantes em todo o mundo. No Brasil, a situação é grave, pois o país está em segundo lugar no número de mortos, em escala global, assim como no quantitativo de casos. São mais de 410 mil pessoas que faleceram em decorrência da Covid-19, e um quantitativo de indivíduos superior a 15 milhões foi infectado.

A forma como ocorre a incidência da pandemia sobre as pessoas no Brasil, contudo, também reflete a desigualdade estrutural existente. Segundo o Ministério da Saúde, em dados publicados em seus boletins epidemiológicos, tem havido o crescimento percentual de pretos e pardos entre internados e entre mortos pela Covid-19. Há registros preocupantes do crescimento da doença em quilombos, somando mais de 165 mortes e mais de 4.590 infectados – de acordo com o site Quilombos sem Covid. Esse crescimento se reflete, também, em terras indígenas, evidenciando o racismo estrutural que opera em desfavor de negros e indígenas.

O Brasil é composto por uma população muito diversa. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua de 2019, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pretos e pardos são a maioria no Brasil. Os dados mostram que a população que se declara preta representa 9,4%, e parda, 46,8%. Juntos, equivalem a 56,2% da população, enquanto os brancos são 42,7%. Ainda de acordo com o IBGE, existem 305 etnias indígenas e mais de 800 mil ciganos.

As comunidades quilombolas, por sua vez, estão presentes em todas as regiões do Brasil, de Norte a Sul, de Leste a Oeste, mantendo a luta histórica pela garantia dos seus direitos. Na atualidade são mais de 6 mil comunidades em todo o país, conforme a CONAQ. Dessas, 3.432 comunidades quilombolas são certificadas pela Fundação Cultural Palmares,16 das quais pouco mais de 300 têm seus territórios titulados. Segundo o IBGE, há presença quilombola em 1.672 dos 5.570 municípios brasileiros. Ou seja, em 30% dos municípios brasileiros há quilombos. Ainda de acordo com o IBGE, existem 5.972 localidades quilombolas no país.

Essa rica diversidade étnico-racial, entretanto, está ancorada em uma estrutural desigualdade. O Brasil é atualmente um dos países mais desiguais do mundo, com o índice de Gini de 0,509. A desigualdade racial e de gênero está presente no mercado de trabalho, no acesso à educação, à saúde. Os quilombos são parte dos grupos afetados por essa desigualdade.

Os estudos apontam que as desigualdades, já fortemente presentes entre os negros, mulheres, povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais, devem se agravar com a pandemia causada pela Covid-19. As maiores vítimas da pandemia são os segmentos mais vulneráveis de nossa sociedade.

A principal organização dos quilombolas do país, a CONAQ, tem destacado os fatores estruturais sobre as consequências do alastramento da pandemia nos territórios quilombolas. Além disso, tem denunciado tal situação ao poder público e formulado proposições com o objetivo de reduzir os danos nas comunidades.

Porém, poucas respostas têm sido dadas pelas autoridades. Ao contrário; ações como os vetos do Executivo aos projetos de lei  1142/2018 e 735/2019 demonstram as dificuldades e o racismo que os quilombolas, indígenas, agricultores familiares e demais povos e comunidades tradicionais vêm enfrentado no contexto da pandemia de Covid-19.

As ações de prevenção recomendadas pelas autoridades de saúde, no contexto da pandemia do novo coronavírus, são precárias em muitas comunidades quilombolas, por desigualdades históricas, como as más condições de acesso à água em parte significativa dos territórios, onde apenas 15% dos domicílios têm acesso à rede pública de água, a fragilidade nas políticas de saúde em quilombos e o maior risco de incidência de situações de insegurança alimentar em quilombos.

Os dados de saneamento quilombola indicam fatores também preocupantes nesse contexto de pandemia, em que mais de 70% das comunidades quilombolas têm condições precárias de saneamento, como valas a céu aberto e fossas rudimentares. Pesquisas indicam, ainda, que 75% da população quilombola vive em situação de extrema pobreza. Esses aspectos têm sido denunciados historicamente pelo movimento quilombola. Durante a pandemia, essa narrativa ganhou força exatamente pelo risco de piora na desigualdade já existente.

A crítica situação das políticas públicas para as comunidades quilombolas e para a população negra tem outros pontos que demandam atenção. Em estudo realizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), há um detalhamento de como nos últimos anos têm se agravado a situação das políticas de igualdade racial.

De 2014 a 2019 houve um corte de 80% dos recursos destinados às políticas de igualdade racial. Em 2020, a situação se agravou com a extinção do Programa 2034, intitulado Promoção da Igualdade Racial e Superação do Racismo, existente no Plano Plurianual 2016-2019, mas não incorporado ao PPA 2020-2023.

Carmela Zigoni destaca ainda o corte descomunal de orçamento para políticas para comunidades quilombolas. De 2017 em diante não houve nenhum recurso para regularização fundiária de territórios quilombolas, da Ação 210V do PPA – Promoção e Fortalecimento da Estruturação Produtiva da Agricultura Familiar, Pequenos e Médios Produtores Rurais.

Em 2020, dos R$ 3,2 milhões previstos para essa ação, nada foi executado até agosto. A Fundação Cultural Palmares, por sua vez, também não executou nenhum recurso para comunidades quilombolas em 2020, tampouco o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

As políticas públicas existentes para as comunidades quilombolas, que já traziam um histórico de não atenderem muitas das demandas fundamentais das comunidades, estão hoje reduzidas a quase nada. As políticas públicas universais, como as de saúde, também têm sofrido duros golpes nos últimos anos. No contexto grave da pandemia, cabe fazer referência ao subfinanciamento das políticas públicas de saúde federais em R$ 20 bilhões. Isso ocorre em decorrência da medida de Teto dos Gastos Públicos, que resulta no congelamento dos recursos da saúde e educação por 20 anos.

 

Considerações finais

A discriminação racial e a desigualdade, tão presentes na sociedade brasileira, e que marcam o histórico da relação do Estado brasileiro com os quilombos, estão em franco processo de agravamento na situação da pandemia. Esses são aspectos que devem ser tratados a partir de medidas a serem tomadas pelos governos locais, estaduais e pelo governo federal, com a devida urgência necessária, obedecendo à Constituição e a tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Cabe ao Estado brasileiro assegurar a sua população, e às comunidades quilombolas, os direitos básicos e a atenção à saúde, de forma a efetivar políticas públicas qualificadas para a redução das desigualdades estruturais que atingem negros, mulheres, indígenas de forma mais determinante, ainda mais agravadas pelos efeitos da pandemia.

O que é possível visualizar, a partir do monitoramento das políticas públicas e das ações dos governos, nesse contexto crítico de pandemia do novo coronavírus, é que têm sido sistematicamente reduzidas as iniciativas voltadas às comunidades quilombolas e à população negra, e aumentada a violação dos direitos desses cidadãos e cidadãs. A situação de vulnerabilidade, vivenciada secularmente nos quilombos, tem se agravado consideravelmente na atual conjuntura.

A luta pelos direitos fundamentais das comunidades quilombolas, todavia, segue em curso, com a incorporação de estratégias necessárias nesse contexto delicado. A elaboração de um banco de dados de monitoramento dos efeitos da Covid-19 nas comunidades e a articulação junto ao Poder Legislativo são alguns dos exemplos.

Outro fato de mobilização relevante é o ingresso da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), junto ao Supremo Tribunal Federal, pela CONAQ e alguns partidos políticos, em função da inexistência de um plano de ação que considere as vulnerabilidades específicas dos quilombos em relação à situação de pandemia.

Com a resistência e a inspiração das raízes ancestrais, seguem em curso as estratégias das comunidades frente a esse contexto desigual e racista em que vive a sociedade brasileira.

 * Givânia Maria da Silva é professora substituta da Universidade de Brasília (UnB); pesquisadora associada da Associação de Pesquisadores Negros e Negras (ABPN), do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab/ Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares – Ceam/UnB/Brasil) e Grupo de Estudos em Políticas Públicas, História e Educação das Relações Raciais e de Gênero (Geppherg/UnB); pesquisadora do grupo de pesquisa Cauim/UnB; cofundadora da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ); mestre em políticas públicas e gestão da educação (2012) pela UnB; e doutoranda em sociologia pela UnB.

 

** Bárbara Oliveira Souza é Professora voluntária da UnB vinculada ao Neab/Ceam/UnB, onde ministra disciplinas sobre a questão racial, povos e comunidades tradicionais e sustentabilidade; pesquisadora associada ao Neab/UnB e ao Laboratório de Antropologias da T/Terra (T/terra/UnB); e doutora em antropologia pela UnB.

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