ENTREVISTA | IZABELLA TEIXEIRA – “O desmatamento está contaminando o presente e o futuro”
Por Pedro Camarão *
Servidora de carreira do Ministério do Meio Ambiente, Izabella foi uma das peças-chave para o Brasil no Acordo de Paris. Ela agora trabalha na Organização das Nações Unidas em diferentes projetos. Nesta entrevista, explica didaticamente porque o Brasil é importante para a segurança climática do mundo. Diz que, apesar da roupagem diplomática, a fala de Bolsonaro não passa de uma carta de apresentação e intenções, mas vazia. “Eu não acho que o Brasil tenha gerado credibilidade como teve no passado”, avalia.
Na visão da ex-ministra, a política ambiental brasileira está desenganada e não tem mais o respeito internacional como no passado. Tanto que, um dia depois de Bolsonaro ter declarado na Cúpula do Clima, sediada pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, o governo brasileiro anunciou um corte no orçamento do Ministério do Meio Ambiente. “É de uma incompetência política sem precedentes”, critica. Izabella afirma ainda que o simples fato de Biden ter convidado o governo brasileiro para a mesa de negociações já causou desconforto em “players” internacionais.
Ministra durante os governos de Lula e de Dilma, ela lamenta o desmonte do sistema público de gestão do meio ambiente, aprofundado por Bolsonaro. E compara o processo que o Brasil está vivendo no setor com uma infestação de cupins que destroem a estrutura por dentro sem que seja possível perceber quão grande é o estrago.
A referência é feita não apenas sobre o Ibama e o Instituto Chico Mendes (ICMBio) que sofrem com cortes de verbas e a com o uso da burocracia para tornar impossível a fiscalização, mas sobre o sistema que está sem estratégia. É isso que está provocando o desmatamento crescente. “As orientações políticas do presidente são de fato para fragilizar o sistema de vigilância”, afirma a ex-ministra. E antevê que a deterioração da imagem do país no exterior será sentido na balança comercial, a maior dificuldade para a venda no mundo – principalmente na Europa – dos produtos brasileiros.
Integrante na ONU de diferentes grupos de debate sobre as mudanças climáticas e o futuro do mundo e da humanidade, Izabella ainda aponta quais devem ser as preocupações do país e do planeta para o futuro. “O Brasil tem que entender que o futuro é hoje, ele não tem que esperar”, diz. Izabella cobra da sociedade e dos atuais governantes que o país precisa urgentemente de um choque de racionalidade. Leia os principais trechos da entrevista concedida à Focus Brasil.
Focus Brasil – Em 2019 e 2020, o desmatamento na Amazônia foi de 10.700km² e 9.800km², respectivamente. São os maiores níveis desde 2008. O ministro Ricardo Salles afirmou que, se o Brasil receber US$ 1 bilhão de ajuda da comunidade internacional, o desmatamento ilegal poderia ser reduzido em 40%. Como tais contradições se tornam um entrave para o país?
Izabella Teixeira – A primeira questão é que o Brasil é um país importante para a equação climática global. E é importante avançar com soluções de baixo carbono. Isso é bom para o Brasil. Temos alternativas e soluções – o Brasil precisa resolver passivos históricos de desigualdades sociais e de “gaps” de desenvolvimento. Essa agenda está modelando o novo mundo. Entenda: a agenda de clima é a agenda de desenvolvimento. Estamos disputando como nos desenvolver, como crescer economicamente, como ser competitivo nesses mercados. Então, para um país que tem alternativas é uma agenda importante. Tais escolhas o Brasil fez lá atrás nessa direção em um alinhamento com o que é o mundo contemporâneo. Então, é importante para o Brasil porque confere caminhos, alternativas boas, robustas. O país sabe caminhar e deveria ambicionar cada vez mais caminhar nessa trajetória de baixo carbono.
Focus Brasil – Por que a questão climática depende também do Brasil?
Izabella Teixeira – Em função do papel das nossas florestas tropicais. Notadamente, a Amazônia. Não podemos esquecer que o Brasil já destruiu uma floresta tropical que é a Mata Atlântica. Sobraram 10%. Então, nós precisamos agora nos desenvolver a partir de uma nova visão onde a floresta fique em pé e onde o desenvolvimento científico seja um provedor de caminhos e soluções de natureza política também para o Brasil. Isso é geopolítica. A ciência, que o Brasil também tem um arcabouço robusto e importante, é extremamente importante e relevante para termos soluções não só para a Amazônia, que não pode se desenvolver com base no desmatamento porque não tem nenhum ganho de desenvolvimento, de economia ou social.
A Amazônia tem os menores indicadores de desenvolvimento humano do país e tem a menor participação no PIB brasileiro. E já desmatou quase 20% do seu território. Se isso agregasse riqueza a gente até estaria discutindo em novas bases porque o desafio climático é o carbono associado a uma economia que precisa ser substituída por novas tecnologias. É isso o que o mundo está dizendo, eu tiro uma planta de térmica de carvão e coloco uma de energia solar ou eólica. É uma conta: emprego tantas pessoas e dou mais competitividade abrindo aqui. O desmatamento, não.
Como o desmatamento é predominantemente ilegal, ele tira, não agrega. É um carbono não econômico. Esse é um segundo aspecto. O Brasil precisa resolver a equação da segurança climática global, mas também tem que remover por imperativo moral, ético e legal. Porque é crime. Nossa lei diz que é crime. O país que ele tem que acabar com isso porque esse desmatamento do passado está contaminando o presente e o futuro.
Focus Brasil – A pergunta que se faz: quais são as emissões da Amazônia fora o desmatamento?
Izabella Teixeira – Essa é a equação do desenvolvimento. Se tirar o desmatamento, quanto a Amazônia emite? Qual é o papel da Amazônia nas trajetórias de desenvolvimento do Brasil nesse mundo que se avizinha de “Net-Zero Emissions”. Essas questões não aparecem porque você está preso a uma agenda de desmatamento que o Brasil sabe combater, tem lei, instrumentos, mas apostou no retrocesso por uma equação política que aí está.
A segunda questão pela qual o Brasil é importante: equacionar a Amazônia significa equacionar um aspecto de segurança climática do mundo. E significa exercer um papel de pautar o mundo em torno de novos caminhos. Se o Brasil deixa de desmatar, passa a ser o país que oferece segurança climática, que discute cooperação internacional, alianças e parcerias de outra maneira. Em vez de ser pária do mundo, estaríamos pautando nossos interesses nacionais de uma outra maneira.
Focus Brasil – Mas não é isso que vem ocorrendo…
Izabella Teixeira – Aí vem a terceira questão: quais são os interesses do Brasil? O que o presidente do Brasil fez com essa declaração, usou os artifícios diplomáticos. Ou seja, sugere uma influência do Itamaraty naquele discurso sem precedentes, porque antes o Brasil era negacionista, contra a agenda multilateral… E depois oferece um discurso que busca indicar um realinhamento com os interesses internacionais. E o faz em três situações. Primeiro, quando fala sobre uma intenção política de 2050 e fizeram uma leitura equivocada disso de que o Brasil antecipou 10 anos. Não é verdade. O Brasil, quando fez a atualização da sua MDC em dezembro do ano passado foi mencionado que poderia ter em 2060 uma meta de “Net-Zero Emission” porque a China tinha colocado isso. Tinha uma discussão internacional de que os países desenvolvidos colocavam 2050 e os países em desenvolvimento iriam pra 2060 porque a China colocou isso. Não tem estratégia, não tem nada escrito que diga que o Brasil vai fazer aquilo. Essa imagem de dezembro foi reforçada com o ministro do Meio Ambiente [Ricardo Salles] dizendo que poderia fazer mais com dinheiro internacional.
Focus Brasil – O compromisso do Brasil então não se sustenta.
Izabella Teixeira – Quando o presidente vai para a cúpula do Biden e determina um compromisso político com 2050, não os condiciona a recursos internacionais. Do ponto de vista da leitura política, essa é a reação positiva observada por muitos atores da “diplomacia do clima”. A segunda coisa que ele afirma é que reitera o compromisso de acabar com o desmatamento até 2030, mas é um compromisso nosso de 2015, quando o Brasil estava diminuindo o desmatamento, não aumentando. Nós colocamos isso porque havia um combate ao crime. Quando você assume compromissos internacionais, que são mensuráveis, não é só intenção, você tem que ter todas as salvaguardas para afirmar um compromisso como esse. O atual presidente, não. A fala dele é só uma intenção política, não tem números, nada que explique.
Focus Brasil – Fez um discurso vazio para a comunidade internacional?
Izabella Teixeira – Olha, a terceira coisa que ele fala na direção do que o mundo quer ouvir é que ele buscará entendimento com a sociedade civil, com direitos humanos, populações indígenas e tradicionais. Então, pega as grandes críticas internacionais ao Brasil e faz uma fala política dizendo que se dispõe a resolver. Então, é um discurso diplomático. Mas, é vazio e de inconsistência. É um discurso feito para a audiência internacional, para que as pessoas ouçam o que precisam ouvir para continuar conversando com o Brasil por conta da COP 26. Todo mundo precisa de consenso para ter o livro de regras porque a decisão na COP 26 é por consenso global. Mas Bolsonaro não oferece nada concretamente. Como, por exemplo, dizer que embora tenha um compromisso até 2030, entende que temos condição de trazer isso para 2025. Eu não acho que o Brasil tenha gerado credibilidade como teve no passado, mas o discurso não fechou portas. É um discurso que abriu espaço para os “political rooms” [negociações].
Focus Brasil – Mas, logo depois do discurso, Bolsonaro sancionou o Orçamento cortando 33% da verba do Ministério do Meio Ambiente, comprometendo o trabalho de fiscalização. Qual a sua avaliação?
Izabella Teixeira – Isso mostra uma profunda incompetência política. O presidente de um país não pode fazer uma declaração e no dia seguinte estar sujeito a ser desmentido internacionalmente. Isso não pode acontecer. Isso esvazia. O novo presidente dos EUA poderia não ter convidado o Brasil, mas o chamou. Isso causou um desconforto internacional para muitos players. O que fizeram logo depois é de uma incompetência política sem precedentes. Isso cai numa pergunta importante que ninguém fez no Brasil: quem toma decisão política e decisão econômica sobre clima no Brasil e como? Porque as estruturas não existem mais, o Brasil não tem uma governança montada nem transitória, tem uma insuficiência institucional profunda, um desconhecimento profundo da agenda.
Focus Brasil – Há sinais contraditórios.
Izabella Teixeira – Isso reflete possivelmente a grande disputa interna de poder no curto prazo, com outros atores querendo defender a expressão de poder de médio e longo prazo. De que é preciso preservar os espaços do Brasil independente do governo. Na comunidade internacional, de tudo o que eu ouvi das pessoas, é de que o discurso de Bolsonaro não durou 24 horas. Este é o tamanho da credibilidade hoje, para alguns atores internacionais, do atual governo. Ficou claro que quem toma decisão hoje sobre clima, natureza politiza e econômica no Brasil não é uma pessoa que priva da melhor inteligência climática. Isso nem do ponto de vista da geopolítica nem dos interesses do país. Pegou mal lá fora. As reações foram de profundo desconforto e de desconfiança.
Focus Brasil – Em discurso para criadores de gado, Bolsonaro, disse que reduziu a aplicação de multas ambientais em seu governo para optar pelo “aconselhamento” e gerar “paz e tranquilidade” para produtores rurais. Como avalia essa posição do governo? O prejuízo pode ser recuperado? Estamos mais perto de um ponto de não retorno?
Izabella Teixeira – Tudo depende de como se enfoca o problema. O que está desmatado, está desmatado. Todo o caminho que o Brasil trilhou nos últimos anos para enfrentar o desmatamento, desde o fim da década de 80, está fragilizado. Esse governo passa a ideia de que pode desmatar que não tem problema – “se for pego, daremos um jeito de contornar isso”. O Ibama não exerce mais a coordenação da estratégia de combate ao desmatamento. O que disseram foi “vamos cortar as asas do Ibama”.
Agora, essa estratégia não eficiente. É só ver que o desmatamento está aumentando. O sistema público de gestão ambiental federal está comprometido. Essa é uma coisa que as pessoas não prestam atenção. O Ibama e o Instituto Chico Mendes são federais, têm competências federais e lidam com ativos da União, inclusive no licenciamento porque o licenciamento é de competência estadual. Excetuando-se situações, o Ibama é quem cuida. Quando você fragiliza isso, está fragilizando o papel da coordenação federativa, que é também um papel nacional.
Focus Brasil – O governo está descumprindo a Constituição?
Izabella Teixeira – A dimensão da fragilização fere o conjunto de proteção ambiental do país que está desenhado na Constituição, que está desenhado na Lei Nacional de Meio Ambiente. Eu chamo isso de cupinização.
Focus Brasil – Como assim?
Izabella Teixeira – É como se tivesse um cupim comendo por dentro. Você não tem a dimensão da fragilização. E me parece que as pessoas que estão lá não tem prática na gestão pública [a ex-ministra se refere aos policiais militares nomeados para gerir os órgãos fiscalizadores]. São pessoas erradas nos lugares errados. E me parece que as orientações políticas são de fato para fragilizar. A ponto de os funcionários denunciarem que perderam a capacidade de fiscalizar. Isso é um absurdo. Fiscalização precisa de autonomia. O que está sendo dito é que além de passar a boiada, pode dormir que ninguém vai te incomodar.
Focus Brasil – Ou seja, o desmatamento continua e sem sinais de repressão…
Izabella Teixeira – Isso terá consequências. Inclusive para a União, com sonegação tributária. Não reclamem depois ao quererem vender seus produtos que gente lá fora se recuse a comprar porque é de área embargada. Quando se tira a credibilidade do sistema de fiscalização, o comprador tem todo o direito de reclamar porque não há mecanismo de controle. Na real, na hora do vamos ver, o governo Bolsonaro entrega o aumento do desmatamento. Essas são medidas que aumentam o desmatamento.
Focus Brasil – Após esse caos sanitário que o mundo vive passar, mas que paralisa o Brasil de muitas formas, o que a senhora entende como essencial enquanto medidas para preservação do mundo e qualidade de vida das pessoas no futuro?
Izabella Teixeira – Tenho discutido muito isso internacionalmente por causa dos grupos que eu participo na Organização das Nações Unidas. O mundo está num momento de mudança de era, não é geracional. Toda a economia do mundo, tudo o que vai acontecer vai ser orientada pela questão climática e vai ser orientada pela pós-covid.
A questão da crise da Covid vai passar, mas se olhar os novos cenários da Organização Mundial da Saúde, eles mostram quão vulneráveis estamos a uma sucessão de novas pandemias. Estamos vivendo um momento de disruptura da relação humanidade com a natureza. E é exatamente aí que as pessoas estão começando a entender. O problema não é só aqui “no meu quintal”. É no do outro também.
O que a Covid nos mostrou é que o mundo está interconectado, que é uma humanidade e um planeta. Não é um ambientalista que está dizendo isso. Um vírus parou o mundo e vai determinar essa visão da saúde e clima. Sou agora membro de uma nova iniciativa global que chama Pathfinder. É exatamente sobre essa questão de como vai andar clima e saúde. Se permitirmos o desmatamento, mais estaremos expostos a microrganismos que estão naquele ecossistema. E isso é exatamente o processo disruptivo.
Focus Brasil – Há uma mudança de perspectiva sobre a questão ambiental e sanitária…
Izabella Teixeira – O pós-covid vai marcar processos. O mundo está vulnerável e há risco associado a isso. A questão climática é a mesma coisa. O risco climático hoje está no sistema financeiro internacional. A vulnerabilidade do sistema financeiro internacional hoje trata da questão climática. As pessoas vão viver a escassez de recursos naturais, as desigualdades serão exacerbadas, não é trivial reverter isso.
Haverá uma pressão dos povos no mundo para circularem porque vão ficar mais vulneráveis. Esse é um mundo possível, se não houver um olhar de projetar o futuro de uma maneira que não seja uma projeção linear do passado.
O Brasil está refém dessa dualidade. Tem gente aqui que já entende isso. Sabe que precisamos anteciparmo-nos para prevenir e nos adaptarmos. Porque não se controla a natureza e tem gente que acha que vai conseguir do passado, do presente, o futuro. E isso não é verdade porque as incertezas são muito grandes.
Então, eu diria que é essencial que se tenha do passado, no Brasil, um aprendizado das boas coisas, do que o país foi capaz de fazer. Mas, a pergunta que tem que ser feita é “o que o Brasil vai entregar da agricultura que é tão importante para a segurança alimentar no mundo, daqui a 30, 40 anos?”.
Essa discussão não é apenas sobre como chegamos aqui. É para onde queremos ir. E quais são as ameaças e os caminhos robustos que devemos empreender. As pessoas devem apostar em ciência regional, não apenas em ciência global. A ciência vai ganhar um papel político muito diferente do que tinha até hoje. É preciso pensar nas necessidades locais com os cobenefícios globais, não apenas o contrário.
O Brasil tem que entender que o futuro é hoje, ele não tem que esperar. As novas gerações já têm um entendimento de mundo nessa mentalidade, embora haja tolos. Infelizmente, a base política que dá sustentação a esse governo é ignorante. Mas o futuro vai exigir do Brasil algo que é fundamental na minha opinião, um choque de racionalidade sem precedentes. Precisamos disso imediatamente, inclusive na agenda verde. Portanto, a dona Maria, o seu Pedro, o seu José devem entender que precisam escolher um lado. Ou estão do lado de quem ameaça ou de quem se beneficia. É fundamental discutir qual a cidadania que vai sair desse processo todo, senão teremos mais desigualdades ainda.