Por Dilma Rousseff *

 

No Brasil, vários recursos são usados para desqualificar e interditar lideranças políticas que não são tratadas como adversários, mas como inimigos que devem ser destruídos, em especial aqueles contrários à agenda neoliberal e ao conservadorismo de direita.

As “fake news” e outras diferentes formas de manipulação midiática tornaram-se uma das maneiras de disseminar ódio, violência e todas as formas de preconceito, um instrumento por excelência de ataque nessa época de grande predomínio das redes sociais. Neste contexto, a misoginia na sociedade, nas instituições e na mídia vem sendo uma poderosa arma de controle e dissuasão da atividade política das mulheres e se manifesta principalmente em períodos eleitorais, na cobertura da ação dos governos e na atividade parlamentar.

No pleito municipal de 2020, vivemos uma perseguição sistemática a candidatas a prefeitas e vereadoras e, em 2016, o foco foi construir as condições para o Golpe de Estado. O país assistiu a uma das formas empregadas pelo aparato midiático dos grandes grupos de comunicação com objetivo de influenciar, controlar, distorcer e, enfim, dominar a visão da sociedade sobre mim e o meu governo, propiciando a ruptura institucional do Golpe de 2016, com o suporte específico da misoginia.

Esta mídia – Estadão, Globo e Folha – agiu deliberadamente, por meio da manipulação de informações, para tentar impedir a quarta vitória presidencial consecutiva do PT, em 2014. Buscou desestabilizar o governo que havia sido reeleito. Fez de tudo para sustentar a farsa jurídica e política que levou a um golpe de Estado disfarçado de impeachment. E atuou para minar a imagem do PT junto ao povo brasileiro e a reputação de Lula como maior líder popular da história. Foi assim que interditaram sua candidatura à Presidência em 2018. Tudo para reconduzir ao poder o neoliberalismo, eleger Bolsonaro e dar suporte a um neofascista desqualificado.

Neste processo, a liderança inconteste foi empalmada pelas Organizações Globo, com seus jornais, rádios e emissoras de tevê e com ampla e incondicional cumplicidade ativa das demais grandes empresas de comunicação. Todas pertencentes, em regime de oligopólio, à meia dúzia de famílias bilionárias que sempre se beneficiaram dos regimes que ajudaram a erguer e sustentar.

Não houve conceito jornalístico, norma ética e princípio civilizatório que a imprensa não tenha atropelado com o objetivo de provocar a retirada do PT do poder. Houve uma tentativa, até aqui fracassada, de destruir o partido. Nenhuma artimanha foi estranha à mídia, que apelou a todos os recursos: mentiras, falsificações, facciosismo, inversão dos fatos, pressão sobre autoridades e instituições, teorias da conspiração, preconceitos de classe e, especificamente no meu caso, escancarada misoginia. Predominou, sempre, a manipulação para iludir o público e induzi-lo a erro de avaliação.

Isto se deu pela manipulação – de conteúdo, gramatical e de ênfases – em centenas de manchetes e editoriais de jornais e revistas, invariavelmente com a intenção de provocar no público emoções e sentimentos negativos contra mim e Lula. Notas, reportagens, manchetes, fotos e capas indisfarçavelmente misóginas, foram publicadas para impor os grilhões do patriarcado à primeira mulher presidenta do Brasil.

É fato que a circulação, o número de assinantes e a audiência dos jornais impressos no Brasil vêm caindo significativamente ao longo da última década. Tornaram-se menos relevantes, mas não perderam a capacidade de repercussão. As manchetes e as principais notícias dos jornais impressos são transcritas, citadas, comentadas e ampliadas em todas as mídias: nas versões eletrônicas do próprio jornal, nas rádios, na internet e, de forma mais impactante, nos telejornais.

Pesquisadores que estudam o tema da manipulação midiática identificam com precisão este processo na imprensa brasileira. Um deles é Teun Adrianus van Dijk, linguista renomado por sua contribuição ao campo da “análise do discurso”, autor de um trabalho denominado “Como a Rede Globo manipulou o impeachment da presidente do Brasil, Dilma Rousseff”. Ele mostra que a manipulação se deu pela insistência de apresentar suspeitas como fatos, sem as ressalvas que se deve fazer a acusações não julgadas. O autor lembra que o Grupo Globo “reagiu furiosamente à denúncia de que o impeachment era Golpe”, o que foi defendido e, até hoje é, por uma parte da população, por juristas independentes e pela imprensa estrangeira.

Segundo o estudo, a principal estratégia de manipulação da Globo foi a demonização e a deslegitimização minha e de Lula, condições cruciais para o impeachment e o bloqueio da candidatura do ex-presidente nas eleições de 2018. Van Dijk conclui: “uma análise das manchetes e editoriais do Grupo Globo mostrou que o jornal manipulou sistematicamente seus leitores, opinião pública e políticos para promover e legitimar um golpe como impeachment constitucional de Dilma Rousseff”.

E continua: “Fez isso não apenas por jornais diários e editoriais sobre a suposta conduta criminosa de Dilma, Lula e do PT, mas também por diversas estratégias discursivas, como apresentar as denúncias como fatos, celebrar e legitimar o juiz anti-PT Sérgio Moro,  cobertura populista de manifestações (…) e ataque à acusação de que o impeachment foi na verdade um golpe político”. Para Dijk, o Grupo Globo tornou-se “porta-voz de uma conspiração ideológica da oligarquia conservadora para retornar ao poder político após 13 anos, confirmando e dando continuidade ao seu poder econômico”.

A linguista Letícia Sallorenzo é autora de livro, a partir de sua tese de mestrado – “Gramática da Manipulação” – no qual corrobora a conclusão de que a imprensa exerceu forte manipulação política, não apenas durante o processo do golpe, mas antes dele, já na campanha eleitoral de 2014. Ela analisou 340 manchetes e títulos do Globo e da Folha publicados nas quatro semanas finais da campanha do segundo turno, e identificou também forte conteúdo misógino na escolha das palavras e na sintaxe dos títulos.

Nos 340 títulos não havia nenhum que pudesse ser considerado desfavorável a Aécio ou que o diminuísse. Quando os títulos relatavam alguma crítica feita por mim a adversários, a forma gramatical mais usada era  “Dilma ataca”, jamais “Dilma critica”. Aécio, por sua vez, nunca era identificado em títulos com o verbo atacar. O tratamento diferenciado caracteriza misoginia disfarçada, para induzir o leitor. Atacar é um verbo agressivo, desumanizado, indica ação típica de quem perde o controle. Para os misóginos, coisa de mulher. Já criticar, verbo destinado a Aécio nos títulos, pressupõe raciocínio e equilíbrio. Coisa de homem.

E, no entanto, contra o desejo de parte da grande imprensa, eu venci a eleição. Mas O Globo e a Folha não se deram por vencidos. Nas 72 horas após o resultado das urnas, publicaram oito manchetes em que eu era identificada como “derrotada”. Isto porque a Câmara vetara projeto do meu governo apresentado meses antes da eleição, no qual se regulamentava a participação da sociedade civil por meio dos Conselhos Populares.

Dois daqueles títulos foram: “Câmara impõe primeira derrota a Dilma após a reeleição” e “Congresso ameaça impor mais derrotas a Dilma no plenário”. A versão é que os homens que presidiam o Legislativo mostraram seu poder e “colocam contra a parede” uma mulher, mais uma vez, apontada como vulnerável. A manipulação era tão grosseira que o projeto não foi votado em definitivo até hoje. O que importava era apenas a sensação transmitida ao leitor, a construção de um ambiente de hostilidade e a imposição da misoginia.

Na conclusão de sua tese de mestrado, Letícia afirma que houve clara manipulação ideológica nas manchetes: “Os jornais construíram uma narrativa na qual Aécio era o bom moço, capaz, preparado, ponderado, e Dilma era uma mulher desequilibrada e passional, que atacava por desespero e que, mesmo vitoriosa na eleição, foi sucessivamente ‘derrotada’ por manchetes inócuas e com pouco ou quase nenhum conteúdo jornalístico factual”.

A professora de Estudos Linguísticos Perla Haydée da Silva escreveu tese de doutorado em que analisou 3 mil comentários direcionados a mim na página oficial do Movimento Brasil Livre (MBL), grupo de extrema direita que no processo de impeachment teve suas manifestações políticas legitimadas, toleradas e acolhidas pela Globo e os demais veículos.

Segundo a pesquisadora, os ataques pessoais giravam em torno de expressões insultuosas como “louca, burra, prostituta e nojenta”, e frases do tipo ‘Dilma, vai pra casa’, ‘Vai lavar roupa’, ‘Vai vender Jequiti’. “Sempre associando a imagem da mulher a um espaço doméstico, como se ela não fosse capaz de estar em um cargo de poder ou de mando. Ela é para esse espaço e o homem que ocupe o espaço público”, aponta Haydée.

A conspiração que levou ao golpe sempre dependeu de manipulação de informações pela mídia e de um componente misógino que era acolhido sem questionamento. A rigor, não é exagero dizer que o processo golpista teve inicio no exato instante – 20h27m53s do dia 26 de outubro de 2014. Foi quando a GloboNews anunciou oficialmente a minha vitória na eleição.

Minutos depois, a bancada de jornalistas da emissora já discutia a possibilidade de um impeachment. Dois dias antes da eleição, Merval Pereira, que fazia parte da bancada da GloboNews, já havia escrito em sua coluna no Globo, com base em matéria mentirosa da Veja, que antecipou sua edição em 72 horas para reagir às pesquisas que mostravam minha ascensão: “O impeachment da presidente será inevitável, caso ela seja reeleita no domingo”.

Antes de o processo chegar ao Senado, a imprensa defendeu a minha renúncia. A Folha publicou editorial em primeira página cobrando que eu renunciasse, antes mesmo de a Câmara dos Deputados votar a autorização para o processo de impeachment. Claro que eu não renunciei. Se o fizesse, estaria me submetendo ao que os golpistas queriam e estaria desonrando a minha história pessoal.

Em seguida, a imprensa passou a defender a tese de que eu não deveria ir pessoalmente ao Senado para me defender, no dia da votação do impeachment. Isso porque seria confrontada e hostilizada pelos senadores da oposição, sobretudo a maioria formada por homens. De novo estava evidente a misoginia, o menosprezo e o machismo de quem entende que uma mulher não pode ter força para enfrentar situação tão difícil. E de novo fiz o que a vida me ensinou: desobedeci e encarei meus algozes de frente, porque entendia que estava no lado certo da história e tinha o dever de defender minhas posições.

Desfechado o golpe, a foto oficial do ministério nomeado por Michel Temer, é praticamente um retrato da ordem misógina: um numeroso grupo de homens, não por acaso, também, todos brancos e nenhum deles jovem, sucedendo o governo de uma mulher, num período em que houvera crescido a participação feminina na política, em postos de poder e em direitos. Claramente, o tablado em que se exibiam era o pódio da vitória do patriarcado neoliberal.

Segundo o jurista Lucas Correia de Lima, que escreveu a respeito da cena, a misoginia, o repúdio à mulher e a exclusão de gênero estiveram na origem e no desenvolvimento do processo de perturbação política e institucional que levaram ao golpe e, seria possível acrescentar, nos conduz ainda hoje ao colapso do Brasil como Nação civilizada. Para ele, o impeachment é tão carente de justificativa jurídica quanto é farto de ódio misógino.

Tal ressentimento já havia sido copiosamente exibido na infame sessão plenária da Câmara que deu andamento ao impeachment. Em 16 de abril de 2016, em meio a tantas manifestações grosseiras e abjetas, um deputado do baixo claro cometeu a ignomínia de prestar homenagem ao homem que, segundo ele, foi o meu “terror” porque teria me torturado durante a minha prisão na ditadura.

O deputado não foi punido por isto e nem rechaçado pela mídia com a devida severidade. Pelo contrário, dois anos depois, saltou do papel de defensor de torturador em plenário para presidente da República. Foi eleito sob o obsequioso apoio, explícito ou implícito, da imprensa. Não pelo que ele era, pois todos o sabiam, mas pelo que representava: uma aposta do mercado e do neoliberalismo.

São da mesma época do golpe duas capas que escancaram a campanha misógina contra uma presidenta eleita que a mídia queria derrubar. Uma foto publicada no Estadão, na cerimônia de lançamento da pira olímpica, exibe uma sobreposição de imagens que cria a ilusão de ótica segundo a qual a minha cabeça estaria em meio a chamas. A imagem fazia lembrar, aos mais atentos, a condenação a que eram submetidas, na Idade Média, as mulheres acusadas de bruxaria por afrontar os dogmas e a servidão feminina impostos por um mundo em que apenas os homens, da aristocracia e do clero, mandavam e tinham direitos.

A outra capa foi da revista IstoÉ. Ali, nem era preciso recorrer a analogias históricas para perceber a forte agressão misógina. A revista inventou, da foto de capa à última linha de texto, a acusação de que eu havia me tornado emocionalmente desequilibrada. A imagem da capa era uma fraude para sustentar o insulto: uma foto em que eu gritava, de fato, comemorando em um gol da seleção brasileira e, cortada em close no meu rosto, fazia com que parecesse uma reação de descontrole em outro ambiente.

A misoginia e, em muitos casos, o machismo truculento contra mim nunca receberam da imprensa a devida repreensão. Com raríssimas exceções, nem das mulheres jornalistas. Aliás, um dos autores da reportagem falsa da IstoÉ era uma repórter.

A filósofa australiana Kate Manne, dedicada à pesquisa no campo do feminismo e da moral, facilita a identificação de atitudes misóginas nas relações sociais, no seu livro mais conhecido – Down Girl: The Logic of Misogyny. Ela define a misoginia como uma dimensão específica da ordem social ainda amplamente patriarcal, exercida por homens que agem como uma espécie de “polícia”, cuja função é punir, reprimir e suprimir as violações às normas do patriarcado.

Segundo Kate Manne, “quando uma mulher se aventura a entrar no território historicamente reservado aos homens, sofrerá reações mais prováveis de ressentimento, indignação e hostilidade, devido à misoginia que tanto os homens como as mulheres podem demonstrar. Vários seguirão tentando colocá-la de volta em seu lugar, usando estratégias como desencorajar, ridicularizar, humilhar, desacreditar ou mesmo aludir a sua sexualidade – em suma, para silenciá-la”.

A misoginia não foi por si só o único instrumento ou a única dimensão de um golpe de estado como o que aconteceu no Brasil em 2016. Serviu aos golpistas e foi usada pela mídia para construir um ambiente de rejeição à primeira mulher presidenta da República.  Contra Lula a mesma imprensa, em nome das mesmas elites, lançou mão de outros tipos de preconceito: como um operário de origem pobre, que não frequentava os salões da burguesia e se sentia à vontade no chão de fábrica poderia suceder um intelectual tido como refinado e governar bem o Brasil?

Tanto o operário como a mulher comandaram um dos períodos de prosperidade e inclusão de nossa história. A rigor não foram perseguidos apenas  porque eram operário e mulher, mas porque repeliram o neoliberalismo e governaram para os trabalhadores, os pobres e os vulneráveis. Esse foi o nosso grande e imperdoável crime.

Lutemos contra a misoginia, o neoliberalismo e pela democracia.