Depois do inverno vem a primavera
Por Fabya Reis * e Ailton Ferreira **
Em princípio, a Covid-19 não seleciona as suas vítimas pelo gênero ou pertencimento étnico-racial, mas as desigualdades que estruturam a sociedade brasileira definem a variação dos impactos do vírus e a sua maior letalidade para a população negra e pobre.
Nos Estados Unidos a desigualdade racial explica as diferenças nas taxas de infecção e letalidade, onde a população negra corresponde a 18%, mas a letalidade entre negros e negras é de 58% das mortes por Covid-19. Na Lousiânia, por exemplo, as negras e negros representavam 33% da população, enquanto que o número de óbitos foi de 70%. No Alabama, os negros representam 26% da população total, todavia representam 44% dos óbitos por covid 19, naquele estado. Em Chicago, os 30% da população negra responderam por 68% das mortes e em Michigan os negros que são 14% da população, representavam 40% dos óbitos. No Brasil o projeto “necropolítico” do presidente capitão tem um público alvo: a população negra, que representa 56,1% da população total
Não se pode esquecer que a primeira morte por Covid-19 no Brasil foi de uma mulher negra, empregada doméstica com 63 anos de idade, contaminada por sua patroa. Segundo dados do Instituto Pólis, no segundo semestre de 2020, morreram 250 negros para cada 100 mil, enquanto que entre os brancos morreram 150. A população negra morre em função das comorbidades e do racismo estrutural, das doenças prevalentes que agravam a doença e das condições precárias de moradia, trabalho e saúde, além da ausência de alimentação.
Segundo a pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN) 116,8 milhões de brasileiros não tem acesso pleno e permanente a alimentos e 19,1 milhões estão literalmente passando fome. Este universo também tem cor, gênero e território. Dos lares habitados por pessoas negras 10,7% passam fome e nos lares habitados por pessoas brancas esse dado é de 7,5%. Nos lares chefiados por mulheres 11,1% estão passando fome e, em relação aos lares em que os homens são referência, são 7,7%. Já com relação aos territórios a região Nordeste apresentou em número absoluto 7,7 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar e o Norte 60%, acima da média nacional de 55,2%.
Evidenciando, ainda, que a pandemia impacta de maneira desigual grupos étnicos diferenciados, observamos os dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em que 29 milhões de brasileiros e brasileiras não dispõem de serviços de saneamento básico e 6,2 milhões não tem água potável em suas casas e precisam fazer grandes deslocamentos para acessar serviços de saúde. Some-se a isto as condições de vulnerabilidades e inseguranças do trabalho informal, que ocupa uma maioria negra –entre os negros são 47% e brancos 33% – e os 13 milhões na extrema pobreza, em que os negros e negras representam 75%.
Acrescentam-se às análises os dados da saúde, nos quais a maioria da população negra é usuária do Sistema Único de Saúde (SUS), um exitoso sistema de saúde pública conquistado pela sociedade brasileira, que agora está superlotado depois que a doença chegou nas camadas populares. Pois bem, quando o resultado do “turismo” que nos trouxe o coronavírus se democratizou, as mortes de pacientes negros quintuplicaram – saiu de 180 para 930 entre 11 a 26 de abril do ano passado. No mesmo período o número de brancos quase triplicou. Para os grupos humanos historicamente desassistidos e vulnerabilizados, a exemplo de indígenas, quilombolas, negros e ribeirinhos, os resultados são desastrosos. Esses números, no entanto, ainda não estão devidamente sistematizados, uma vez que o governo não autorizou o Ministério da Saúde a fazê-lo, sendo objeto de uma luta dos movimentos sociais a tramitação de um projeto para que os dados da Covid-19 contenham o quesito raça/cor.
O pós-pandemia anuncia o agravamento das condições de vida do povo brasileiro, mais ainda, dos 56,10% da população, esta preta e parda que se autodenomina negra e aos povos e comunidades tradicionais. O mercado informal será aumentado e, com ele, o comércio precário nas ruas. Também é notório o agravamento dos conflitos fundiários nos territórios tradicionais, incentivados pelas campanhas institucionais negativas a respeito dos modos de vidas desses grupos, particularmente, indígenas e quilombolas.
O fenômeno do desemprego vai nos alertar para a insuficiência do Estado nos cuidados previdenciários e de assistência social, o que agrava as vulnerabilidades do público historicamente desservido.
Poderíamos mencionar um conjunto de outros dados que não deixam nenhuma dúvida que o impacto da crise sanitária, econômica, social, ambiental para a população negra e pobre será alarmante, aliada à postura fascista do governo federal, cujas orientações, ou seria melhor dizer, desorientações, negam a ciência, desmobilizam as campanhas de governos estaduais, negando o distanciamento social, o uso de máscaras, receitando o kit de tratamento precoce. Há, ainda, notória falta de planejamento para compra de medicamentos para o kit de intubação, de oxigênio e de vacinas, além da descontinuidade de repasse do auxílio emergencial.
Está comprovado que o atual governo segue um projeto da “necropolítica” para deixar morrer pela fome, pela doença ou ambas, aquelas que mais precisam de uma ação forte do Estado: a população negra e as pessoas pobres deste país. Não há dúvida de que o desgoverno que vivemos é o principal responsável pelas mortes por Covid-19.
No inverno deste ano poderemos chegar ao estarrecedor número de mais de 500 mil óbitos. Por isso, diante desse cenário caótico devemos ser rigorosos e vigorosos em nossos esforços de enfrentamento e construções de superações. Alertamos! Não haverá saída individual, será como ancestralmente aprendemos, uma luta coletiva, numa frente ampla em defesa da vida, da democracia, da saúde, da comida, do trabalho e do SUS.
A tragédia da pandemia parece nos dizer: o remédio é lutar, retomar a democracia e, nesse momento, exercer a “solidariedade estendida”, aquela que vai além do “dar o que sobra”, mas ofertar o que temos, por pouco que nos pareça. É o que fazem os movimentos sociais espalhados pelo Brasil. Nesse momento de fome de comida, de ciência, de democracia, de equidade, de humanização das relações e de trabalho, o pouco alento é a partilha curativa, a luta curativa, os ideais da luta antirracista e antifascista.
O campo progressista está intimado a buscar a unidade democrática que possibilite um novo pacto liderado pela soberania popular e a luta contra o capitalismo, o fascismo, o racismo e o patriarcado em que a vida com direitos seja o bem maior. Depois do inverno chega a primavera. Esperançar é preciso. Sigamos em luta. •
* Fabya Reis é doutora em Ciências Sociais e secretária de Promoção da Igualdade Racial do Estado da Bahia.
** Ailton Ferreira é sociólogo e dirigente do Instituto de Reparação da Bahia