Por Tamires Gomes Sampaio *

 

A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil. Este é o dado apresentado no Mapa da Violência que expressa a realidade brutal da violência que os jovens negros são submetidos no Brasil. O racismo é uma determinante estrutural em nossa sociedade e molda os princípios de organização de todas as nossas relações sociais. O tráfico negreiro teve fim, a escravidão foi abolida no país, mas até hoje, mais de 330 anos depois, temos reflexos de séculos de exploração do povo africano e dos afrodescendentes no Brasil.

Sabemos que com a abolição da escravidão não houve um processo de inserção desse povo que foi objetificado, explorado e violentado durante mais da metade da história desse país, e isso resultou em uma sociedade extremamente desigual e racista, em que a população mais pobre e carente tem cor e endereço, que são os negros periféricos.

O Estado brasileiro, além de não proporcionar políticas públicas de inserção do negro na sociedade, agiu apenas a partir do seu viés de repressão. Se por um lado não houve nenhuma alternativa de trabalho, por exemplo, para os que outrora foram escravizados, imediatamente após a abolição da escravatura foram criados mecanismos legais para a promoção da criminalização da cultura negra, para o isolamento social, para o encarceramento em massa e para a manutenção das desigualdades sociais e raciais no país que possuem reflexos na sociedade até os dias de hoje.

Os dados do Atlas da Violência de 2020, em levantamento feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), são alarmantes. Em 2018, 75,7% das vítimas de homicídio no Brasil eram negras. No contexto histórico, de 2008 a 2018, o número de homicídios de pessoas negras no país aumentou 11,5%. Já entre pessoas não negras caiu 12,9%.

A taxa de mortalidade de jovens negros no Brasil é 2,88 vezes maior do que a de jovens brancos, segundo a 5ª edição do Índice de Homicídios na Adolescência (IHA), divulgada em 2019.

O índice de violência contra as mulheres negras também vem aumentando: 68% das mulheres assassinadas em 2018 eram negras. A taxa de homicídios das mulheres negras é 5,2 para cada 100 mil, quase o dobro do que o dado de 2,8 por 100 mil para não negras. Embora o homicídio de mulheres tenha caído 8,4% entre 2017, enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras caiu 11,7%, a taxa entre as mulheres negras aumentou 12,4%.

Quando cruzamos os dados históricos com os índices de mortalidade da juventude negra, a denúncia de que existe um genocídio da juventude negra no Brasil se escancara em uma terrível realidade.

Neste cenário, é possível avaliar como a política de segurança pública surge como justificativa social e legal para a exclusão e encarceramento dos negros e negras após a abolição da escravidão, pois a manutenção da ordem, uma das bases da segurança pública no Brasil, nada mais é do que a manutenção de uma estrutura social pré-determinada e de privilégios de poucos em detrimento da maioria da população que é menos favorecida.

É possível afirmar que a política de segurança pública no Brasil, ao reproduzir institucionalmente o racismo de nossa sociedade, se torna um fator determinante para a promoção da exclusão, criminalização e extermínio da população negra, principalmente da sua juventude. Isso se reflete no que o movimento negra há muitos anos denuncia como genocídio da juventude negra.

O Estado Democrático de Direito deve garantir, como pontua a Constituição Federal de 1988, a pluralidade e a diversidade humana. Portanto, o crime de genocídio afronta com os princípios de nossa Constituição, além de infringir os bens jurídicos da vida, integridade física e mental.

De 2008 a 2018, o número de homicídios de pessoas negras no país aumentou 11,5%. Já entre pessoas não negras caiu 12,9%

 

O crime de genocídio tem como cerne a intenção de destruir determinado grupo, por motivos discriminatórios. No caso do Brasil, o genocídio contra a juventude negra não é somente a intenção de uma pessoa contra toda a população jovem e negra, é uma política de Estado, baseado na reprodução do racismo pelas instituições estatais, que visam o extermínio dessa população.

Tendo como pressuposto a necropolítica, que se baseia na organização do poder – do Estado – para a produção da morte, é possível analisar como as instituições brasileiras ligadas ao sistema de segurança pública estão institucionalmente estruturadas a atingir principalmente a população negra e pobre do país.

É importante ressaltar que a Polícia Militar é apenas o soldado de rua dessa política de criminalização. Temos também envolvidos nesse sistema a Polícia Civil que arquiva ou que não investiga os homicídios cometidos pelos policiais militares, a Promotoria de Justiça que ao invés de proteger a sociedade surge como um carrasco do Estado, justificando a violência policial e criminalizando a população negra, bem como os juízes que arquivam os processos ou invés de dar seguimento a investigação.

Precisamos construir uma reforma no sistema e na política de segurança pública no Brasil. Enquanto a segurança de poucos se sobrepuserem aos direitos de muitos e enquanto o direito à segurança se mantiver como um direito individual e baseado na manutenção da ordem e prevenção de riscos, o racismo estrutural em nossa sociedade garantirá que a população negra seja sempre criminalizada, excluída e exterminada.

O direito à segurança em um Estado Democrático deve existir em função dos direitos fundamentais. Ou seja, a segurança de todos somente poderá ser garantida se for direcionada à defesa e garantia dos direitos sociais e da cidadania.

O histórico de exploração e criminalização, somados ao racismo estrutural em nossa sociedade, que se reproduz no atual sistema de segurança pública visando à proteção de poucos em detrimento da criminalização de muitos, gera a grande taxa de homicídios contra a juventude negra brasileira. Além disso, gera uma verdadeira política de criminalização e extermínio dos negros e negros no Brasil, que se reflete desde a ação ostensiva do policial até os arquivamentos dos processos de homicídios pelo Judiciário.

Está em curso no Brasil um processo sistemático de exclusão, extermínio e criminalização do povo negro que tem como foco a população jovem. Diante disso é inegável afirmar que vivemos diante de um verdadeiro genocídio da população negra, em especial da juventude.  •

 

* Advogada e mestre em Direito Político e Econômico pela Mackenzie, é secretária-adjunta de Segurança Cidadã de Diadema e autora do livro “Código Oculto: política criminal, processo de racialização e obstáculos à cidadania da população negra no Brasil, publicado pela editora Contracorrente.