Estratégias de destruição das políticas de igualdade racial
Por Nilma Lino Gomes e Givânia da Silva *
Um olhar focado na população negra em tempos de pandemia revela a alta taxa de letalidade que recai sobre os pobres e, com maior contundência, sobre as pessoas negras (pretos e pardos) e pobres. Essa realidade não pode ser compreendida como uma simples coincidência da relação entre pobreza e raça. Ela é uma perversidade histórica e estrutural ativamente produzida que, no contexto de exacerbação do neoliberalismo e da crise sanitária, revela a imbricação entre raça, pobreza, saúde pública e Estado.
O Movimento Negro e o Movimento Quilombola continuam denunciando o descompromisso do Estado em relação aos efeitos da pandemia do novo coronavírus sobre a população negra e ajudam a comunidade negra a compreender os seus direitos em tempos de crise sanitária. Desenvolvem, também, ações de solidariedade e partilha.
É importante refletir sobre como o Golpe de 2016 representa um marco de aprofundamento desumano do quadro geral do descompromisso dos governos com a população negra, pobre e periférica. A atuação do presidente Jair Bolsonaro desde quando ainda era deputado federal, por meio dos seus depoimentos racistas, machistas, homofóbicos, fascistas e agora, como chefe da Nação, não gera surpresa.
A situação da população negra e pobre brasileira se agrava ainda mais quando refletimos especificamente sobre a paulatina destruição das políticas de igualdade racial. Podemos compreendê-la como parte de uma cronologia da destruição do público e da democracia.
Essa destruição se constitui no alicerce da perpetuação do racismo, um fenômeno perverso que produz efeitos devastadores em nosso país e alimenta o genocídio da população negra em curso.
Uma das formas de o racismo se alicerçar e ganhar espaço no cotidiano, nas práticas e na política é por meio da propagação dos discursos de ódio racial. O funcionamento discursivo produz, modifica, molda subjetividades. E ao fazer isso, conforma identidades.
Seja por meio de narrativas ou de gestos os discursos de ódio que afloraram, no Brasil, sobretudo após a ascensão da extrema direita ao poder são, também, práticas sociais. Caminham junto com o ódio e violência. E é isso que temos assistido quando acompanhamos a trajetória de Bolsonaro desde quando atuava como deputado federal.
A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e a Terra de Direitos realizaram levantamento dos discursos racistas proferidos por autoridades públicas no Brasil entre 2019 e 2020. As eleições de 2018 escancaram um alto nível de violência racial no debate político enquanto ferramenta adotada por autoridades públicas.
Foram levantados casos relevantes de discursos de ódio racial por parte das autoridades públicas presentes nas notícias dos principais órgãos de comunicação, notícias postadas na internet e redes sociais. Construiu-se, a partir desse material uma amostra de casos ilustrativos dos discursos racistas das autoridades públicas brasileiras de 1º de janeiro de 2019 a 30 de novembro de 2020.
Diz o levantamento sobre o período: “O maior número de ocorrências registradas teve como ocupantes de cargos de Direção e Assessoramento do Governo Federal (ministros, secretários e presidentes de autarquias), com 29% do casos”. E continua: “Em seguida, estão discursos do presidente da República computando 23% dos casos”. O levantamento ainda registra deputados estaduais, com 21% das citações; deputados federais, com 11%; vereadores, com 9%; membros do sistema de Justiça (juízes e procuradores), com 5%. O vice-presidente Hamilton Mourão surge com 2%.
Os dados apontam para uma disseminação do uso do discurso racista entre as autoridades públicas brasileiras, sendo reproduzido por representantes políticos nos três níveis (federal, estadual e municipal). É possível apontar para a ocorrência de uma espécie de efeito manada: o uso do discurso racista por algumas autoridades acaba por legitimar e encorajar a disseminação do ódio racial através do discurso por outras autoridades. Um realidade reforçada pelo fato de que em uma boa parte dos casos, não há aplicação de medidas de responsabilização eficazes”.
Discurso de ódio racial e ação política: estratégias de destruição
Podemos observar no levantamento realizado o lugar ocupado pelo presidente na propagação de discursos de ódio. Mas quando esse discurso e ação política se transformam em estratégia de destruição das políticas de igualdade racial, no Brasil?
A resposta é: quando inviabilizam que o combate ao racismo seja uma política de Estado. E uma das formas de realização desse intento é retirando-o da pauta do Orçamento. Ou seja, sem recursos orçamentários nenhuma política pública consegue ser efetivada. Ela pode até figurar como uma secretaria dentro de um ministério, como é o caso da atual Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), no Ministério das Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos, mas não terá poder de realizar nenhuma ação efetiva que garanta direitos para a população negra em nosso país.
Essa é a forma racista de fazer política por meio da qual o governo Bolsonaro age. Cada live, gesto, piada de caráter racista e fascista do presidente e seus asseclas palacianos têm a sua concretização por meio da exclusão do combate ao racismo da agenda e da prática do governo federal.
Essa realidade é comprovada no estudo “Um país sufocado – Balanço do Orçamento Geral da União 2020”, publicado em 4 de abril de 2021 pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). O relatório aponta que as políticas públicas específicas para comunidades quilombolas ou de igualdade racial no Plano Plurianual (PPA) 2020–2023 inexistem.
Mesmo assim, a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial continua a figurar no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, assim como o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR) e o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT). Na realidade são órgãos que não mais representam os coletivos sociais e raciais para os quais foram criados em tempos democráticos.
O estudo ainda aponta que o governo Bolsonaro extinguiu o Programa 2034: Promoção da Igualdade Racial e Superação do Racismo, que não recebeu nenhum real em 2020. Em 2019, tinham sido destinados R$ 10,3 milhões. O Ministério da Mulher chegou ao final do ano passado deixando de gastar 70% do recurso autorizado. Dos R$ 120,4 milhões previstos, usou R$ 35,4 milhões.
A partir de 2020, uma vez extinto do Plano Plurianual (PPA), o governo passou a executar somente restos a pagar de anos anteriores, no valor de R$ 2,4 milhões. Essa exclusão trouxe sérias consequências para os direitos da população negra, em especial aos povos quilombolas e as comunidades tradicionais.
As políticas de igualdade racial foram inseridas no Plano Plurianual dos governos do PT. Essa inserção ratificou sua importância e possibilitou maior transparência e controle social das ações realizadas. Garantiu, também, a sua legitimidade em dois aspectos: como política transversal, trazendo a especificidade da igualdade racial para as políticas dos outros ministérios e como política estrutural, com orçamento próprio e ações específicas realizadas pela Seppir.
Lutar contra o racismo é lutar pela vida com direitos. A destruição das políticas de igualdade racial insta-nos ainda mais a reconstruir e transformar o Brasil por meio de uma democracia radical que seja anticapitalista, antineoliberal, antirracista, antifascista, antipatriarcal e antiLGBTfóbica. •
* Professora titular Emérita da UFMG, é doutora em Antropologia Social/USP, pós-doutora em Sociologia pela Universidade de Coimbra e em Educação pela UFSCAR, foi ministra das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos no governo Dilma Rousseff.
** Givânia da Silva é professora e pesquisadora quilombola, sendo mestre em Políticas Públicas e Gestão da Educação e doutoranda em Sociologia da UNB