O fracasso do neoliberalismo
O mercado pujante sem rédeas parece ter os dias contados. Após 40 anos da implementação da agenda que atacou a ideia do Estado de Bem-Estar Social e colocou as privatizações como dogma, a pandemia reabriu o espaço nos EUA e na Europa para a discussão sobre a regulação do capital e o papel do Estado
Um mercado incontrolável, sem peias e sem amarras, livre para fazer dinheiro. Os dias do neoliberalismo desenfreado e do Estado Mínimo parecem contados. A pandemia da Covid, afinal, reacendeu a luz sobre o papel central do governo na economia. E, curiosamente, é na América de Ronald Reagan que dogmas como impostos mínimos para os ricos e um Estado tímido e miserável começam a ser quebrados. O presidente Joe Biden está recolocando no foco do debate político o governo como indutor do desenvolvimento. Vem aí uma nova era keynesiana.
Biden parecia o homem errado para a tarefa inglória: ressuscitar a ideia do governo como indutor do desenvolvimento. Com 50 anos de carreira política, sempre em Washington, fazendo cara de paisagem para o establishment, o democrata parece que veio para refundar os Estados Unidos. Em apenas quatro meses à frente da Casa Branca, mostrou que pode estar encarnando as vestes de Franklin Delano Roosevelt em pleno século 21. À frente de um plano ousado e inovador, está apostando alto.
É que a pandemia demonstrou como a erosão dos serviços públicos tornou as sociedades capitalistas vulneráveis à ruptura, menos competitivas internacionalmente e, em última análise, menos resilientes. Além disso, por conta da proeminência e a força da China, que anunciou nesta semana um crescimento de inacreditáveis 18,3% no PIB, Biden precisa recolocar a paquidérmica economia norte-americana de novo nos trilhos. E, para fazer isso, não teve dúvidas em preparar dois pacotes ambiciosos. Aprovou no Congresso um plano de US$ 1,9 trilhão – o equivalente a quase R$ 12 trilhões (para se ter ideia, o PIB do Brasil é algo perto de US$ 1,6 trilhão – para reaquecer a economia. E ainda mandou outro de US$ 2,3 trilhões para reacender o emprego. Como se não bastasse, sinalizou que vai taxar os ricos e as grandes empresas para custear a proposta.
O Financial Times, a bíblia dos liberais e do mercado financeiro, elogiou a primeira iniciativa, quando conseguiu aprovar o primeiro pacote no Congresso. “A enorme intervenção fiscal de Biden ocorre ao mesmo tempo em que o governo também está conduzindo uma rápida campanha para lançar as vacinas da Covid – os EUA agora estão prestes a entregar doses de 100 milhões”, publicou o jornal em artigo, ainda em março. “Em conjunto, essa explosão de ativismo governamental carrega ecos do New Deal de Franklin Delano Roosevelt durante a Depressão e das reformas da Grande Sociedade de Lyndon Johnson na década de 1960”, comparou.
O plano democrata prevê recursos públicos em infraestrutura e energia limpa. Para reanimar o mercado de trabalho, Biden pretende reverter aperto fiscal de Donald Trump. O pacote do democrata é ousado. A ideia é que o Plano de Empregos Americanos permita gastar US$ 250 bilhões em cada um dos próximos oito anos na América. A ideia é que esse pacotão e mais outro destinado à infância e educação permitam aos Estados Unidos retomarem a liderança em tecnologia e preparar o terreno para a disputa global com a China.
Biden quer usar esse plano de infraestrutura para corrigir injustiças raciais. Ele quer reconstruir rodovias, pontes e linhas férreas. Os investimentos federais massivos e grandiosos pareciam coisa do passado. Nos Estados Unidos, não ocorriam de maneira expressiva desde meados do século 20. A iniciativa de infraestrutura mais famosa da América, o sistema rodoviário interestadual, lançou uma rodovia elevada atravessando o centro da avenida Claiborne, em Nova Orleans, no final dos anos 1960.
O New York Times lembra que o presidente e seus assessores descrevem essa agenda nos termos grandiosos da competitividade econômica e na linguagem granular da redução do tempo que as pessoas passam para deslocar-se entre casa e trabalho. Mas eles também destacaram o potencial do plano de promover a equidade racial e reduzir lacunas entre os resultados econômicos de diferentes setores da população.
Biden quer aumentar impostos sobre as grandes empresas, voltando aos 28% que existiam, antes de o governo Trump baixá-los para 21% em 2017. Esse corte tributário “permitiu a maior redução de impostos para as multinacionais sem nunca exigir que elas investissem nos EUA ou contratassem trabalhadores domésticos”. A reclamação é do próprio Biden. Agora, ele propõe evitar o aumento da carga tributária para quem ganha menos de US$ 400 mil – R$ 2,3 milhões – por ano, com a ideia de “proteger a classe média” e os de baixa renda.
O democrata propôs ainda tributar ganhos de capital e um aumento do imposto de renda de 37% para 39,6%, para aqueles que ganham mais de US$ 1 milhão por ano. Essas medidas fazem parte da reforma que visa arrecadar cerca de US$ 4 bilhões.
Não deixa de ser ousado que um político da estirpe de Biden – a própria cara do establishment político dos Estados Unidos – venha a liderar os sonhos de uma América menos desigual, com distribuição de renda e redução das inúmeras disparidades econômicas e sociais que fazem do país um dos mais desiguais do mundo. A situação só não é pior do que o Brasil, onde a desigualdade campeia e os ricos não querem nem saber de reforma tributária. Que o diga Paulo Guedes e a Faria Lima.