O Golpe de 1964
No aniversário da derrubada de Jango, o Brasil revive o pesadelo de um mergulho no arbítrio, com as novas ameaças de Bolsonaro à democracia. A hora é de revogar a Lei de Segurança Nacional
Desde a queda de Dilma Rousseff, derrubada pelo Congresso Nacional em 2016 com um impeachment sem crime de responsabilidade, o fantasma de 1964 assombra o país. Em abril daquele ano, o voto do então deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) sinalizava que o arbítrio tinha sido colocado num altar perigoso. Ao votar pelo impedimento da presidenta, o capitão foi o ponto da vergonhosa sessão plenária da Câmara: “Pela memória do Capitão Carlos Alberto Brilhante Ustra, o terror de Dilma Rousseff”. A saudação a um dos mais terríveis torturadores do regime militar não fez corar nenhum comentarista político brasileiro, embora tenha estarrecido a imprensa internacional. Dilma foi pessoalmente torturada por Ustra, enquanto esteve presa durante a ditadura. O sadismo de Bolsonaro desde então o levou a incensar o terrível médico em inúmeras oportidades.
Desde que ascendeu à Presidência da República, por ação direta do então juiz Sérgio Moro – algoz de Lula, que o condenou sem provas e ainda o retirou da disputa eleitoral de 2018 – o presidente não se cansa de flertar com o autoritarismo. Não apenas exaltou entusiasmadamente a ditadura militar, que mergulhou o país durante 21 anos em um regime opressivo, como vem ameaçando fechar o regime para sufocar a democracia brasileira. Agora, as comemorações serão oficiais. E ganharam o beneplácito do Judiciário.
No último dia 17, por 4 votos contra 1, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, sediada no Recife, aprovou um recurso da Advocacia Geral da União defendendo o direito do governo federal de promover atividades em alusão ao Golpe Militar de 1964. O assunto chegou à Justiça depois que a deputada Natália Bonavides (PT-RN) pediu a retirada do site do Ministério da Defesa de uma nota que reproduzia a Ordem do Dia de 31 de março de 2020, uma recomendação militar que celebrava o Golpe de Estado.
A 5ª Vara Federal do Rio Grande do Norte determinou, ainda em 2020, a retirada da publicação. Na decisão, a juíza federal disse que o texto “é nitidamente incompatível com os valores democráticos da Constituição de 1988”. A União recorreu da decisão ao TRF5. Além de argumentos técnicos – como dizer que a ação não causou lesão ao patrimônio nem seria a Ação Popular o instrumento jurídico adequado para a querela – a AGU defendeu o direito do governo de celebrar a data.
A deputada Natália Bonavides reagiu: “É inaceitável! O Judiciário acaba de autorizar o governo Bolsonaro a comemorar a ditadura militar. Comemorar assassinatos, torturas e estupros? A perversidade? Vamos recorrer da decisão! Mais do que nunca, é hora de defender a vida, não de comemorar mortes”.
O absurdo já havia sido inaugurado em 2019, quando Bolsonaro decidiu comemorar o 55º aniversário do golpe de 1964, para espanto e surpresa da comunidade internacional. Na época, o relator da ONU Fabián Salvioli, que trata da promoção da verdade, mostrou-se estupefato: “Comemorar o Golpe de 1964 é imoral e inadmissível”. Ele lembrou que é dever do Estado brasileiro preservar as evidências de crimes horrendos como os cometidos durante a ditadura, e não celebrá-los.
O Golpe de 1964 é celebrado desde o início da ditadura como tendo ocorrido em 31 de março. A data marcou a deposição do presidente João Goulart e a tomada do poder pelas Forças Armadas, com o apoio de setores da classe média, empresários e o governo dos Estados Unidos. O regime inaugurou um dos períodos mais autoritários e selvagens da história do Brasil. O regime estabeleceu censura à imprensa, restrição de direitos políticos, cassação de mandatos, prisões, torturas e assassinatos.
Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída em lei no governo da presidente Dilma Rousseff, apresentou seu relatório final. O documento concluiu que a prática de detenções ilegais e arbitrárias, tortura, violência sexual, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres resultou de uma política estatal, de alcance generalizado contra a população civil, caracterizando-se como crimes contra a humanidade. Foram identificados 434 casos de mortes e desaparecimentos de pessoas sob a responsabilidade do Estado brasileiro durante o período de 1946-1988. Em capítulo referente à autoria de graves violações de direitos humanos, o relatório da Comissão Nacional da Verdade enumerou 377 agentes públicos envolvidos diretamente com os crimes praticados.
Em 10 dezembro de 2014, logo depois de ter sido reconduzida à Presidência da República pelo povo brasileiro, numa votação expressiva de 54,5 milhões de votos, Dilma fez um emocionado discurso ao receber o relatório da comissão. “Esperamos que esse relatório contribua para que fantasmas do passado doloroso e triste não possam mais se proteger das sombras do silêncio e da omissão. A ignorância do passado não pacifica”, disse, entre lágrimas e visivelmente emocionada.
Um grupo de militares tentou conseguir na Justiça a proibição do governo de divulgar o relatório. O desembargador federal Souza Prudente, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), negou o pedido. A tentativa de impedir a divulgação do documento havia sido protocolada pelo Clube Naval, pelo Clube Militar, pelo Clube da Aeronáutica, e por três militares da reserva: Paulo Frederico Soriano Dobbin, Gilberto Rodrigues Pimentel e Marcus Vinícius Pinto Costa.
A atração mórbida de Bolsonaro e da família por este período triste da história — com o apoio de alguns dos oficiais que integram o governo federal desde 2019 e de milhares de brasileiros fantasiados de verde e amarelo que pedem a volta dos militares ao poder — deveria provocar algum tipo de alerta na sociedade civil. Agora, quando o país mergulha em um novo período terrível de sua história, com a marca de mais de 300 mortos pela pandemia do Covid-19, tudo que não se deve fazer é repetir o passado.
CRONOLOGIA DO GOLPE DE 1964
17 de Janeiro
O governo João Goular regulamenta a lei de remessa de lucros.
13 de Março
Jango participa do Comício da Central do Brasil, defendendo “reformas de base”. Nacionalistas e a esquerda realizam ato político.
19 de Março
Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade em São Paulo (SP). A direita e a classe média ganham as ruas.
20 de Março
O chefe do Estado-Maior do Exército, General Humberto de Alencar Castelo Branco, divulga circular reservada entre seus subordinados contra Jango.
21 a 29 de Março
Em diversas cidades de São Paulo, são realizadas novas “Marchas da Família, com Deus, pela Liberdade”. Todas tendo como alvo o governo Jango.
31 de Março
Inicia-se o movimento militar em Minas Gerais com deslocamento de tropas comandadas pelo general Mourão Filho. A ameaça é de uso da força contra o presidente.
1º de Abril a 8 de Junho
O país assiste à ascensão da direita. Quarenta e duas “Marchas da Família, com Deus, pela Liberdade ocorrem em São Paulo, Minas, Rio, Piauí, Paraná e Goiás.
2 de Abril
Jango segue de Brasília para Porto Alegre. O General Costa e Silva autonomeia-se comandante-em-chefe do Exército e organiza o “Comando Supremo da Revolução”.
4 de Abril
O nome do general Castelo Branco é indicado para a Presidência da República pelos líderes do Golpe.
9 de Abril
Decretado o Ato Institucional 1 que confere ao presidente da República poderes para cassar mandatos eletivos e suspender direitos políticos até 15 de junho de 1964, entre outros poderes.
10 de Abril
A sede da UNE é incendiada por apoiadores do regime e estudantes são espancados.
13 de Abril
O Diário Oficial publica decreto que extingue o mandato de todos os membros do conselho diretor da Universidade de Brasília. Em seguida, o campus da UnB é invadido por policiais, oficializando a intervenção.