As penas do golpe: como Bolsonaro e generais chegaram à prisão
Do ferro de solda à cela da PF, o STF fecha o ciclo do golpe e inicia a execução das penas contra Bolsonaro e generais

A primeira vez que o ex-presidente e réu Jair Bolsonaro ouviu, na rua, um profético “acabou, Bolsonaro!”, talvez tenha sido por ironia, desabafo ou desejo.
A frase cruzou o caminho de Jair no cercadinho do Alvorada em março de 2020 com o de um Haitiano e viralizou. “Você não é presidente mais!”, gritou o refugiado. Bolsonaro ficou em silêncio.
Quase seis anos, uma derrota eleitoral e uma tentativa de golpe de estado depois, o fim desse ciclo deixou de ser metáfora e virou fato: o ex-presidente está preso, em cela especial na Superintendência da Polícia Federal, em Brasília, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), enquanto generais de quatro estrelas e ex-ministros de seu governo começam a cumprir pena pela primeira trama golpista julgada e condenada na história recente do país.
O desfecho veio em duas etapas, para alimentar as brincadeiras que suscitam o “roteirista do Brasil”, que parece não estar de brincadeira.
Na madrugada de sábado (22), o ministro do STF Alexandre de Moraes decretou a prisão preventiva de Bolsonaro por violação da tornozeleira eletrônica e risco de fuga, após a combinação explosiva entre a utilização de um ferro de solda, confessada no momento da ocorrência, e uma vigília convocada por Flávio Bolsonaro. O ex-presidente cumpria medida cautelar em regime de prisão domiciliar.
Hoje, (25/11), três dias depois, o desfecho final. Com os recursos esgotados na ação penal do golpe, o STF declarou o trânsito em julgado da condenação de Bolsonaro a 27 anos e três meses de prisão, em regime inicial fechado, e deu início à execução das penas impostas também a generais como Walter Braga Netto, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e ao almirante Almir Garnier, além de Anderson Torres e Alexandre Ramagem.
É a primeira vez que militares são presos por Golpe de Estado no Brasil, país que viveu 21 anos de anos de chumbo sob a Ditadura Militar incitada pelo Golpe de 1964. O governo de Jair Bolsonaro foi considerado o mais militarizado desde a redemocratização.
A noite do ferro de solda
Desde agosto, Jair Bolsonaro cumpria prisão domiciliar, monitorado por tornozeleira eletrônica, por descumprir medidas cautelares impostas no inquérito que apura sua articulação com o governo Donald Trump contra instituições brasileiras.
Na sexta-feira (21), o sistema do Centro Integrado de Monitoração Eletrônica registrou um alerta às 0h07 de sábado: a tornozeleira apresentava sinais de violação.
Relatório da Secretaria de Administração Penitenciária do Distrito Federal e imagens entregues ao STF mostraram o que, mais tarde, o próprio ex-presidente admitiria: ele usou um ferro de solda para tentar abrir o equipamento.
O case de plástico exibia marcas de queimadura em toda a circunferência. A perícia da Polícia Federal concluiu, em laudo técnico, que houve uso de “fonte de calor” compatível com ferramenta pontiaguda de ferro ou aço, com calor contínuo, “sendo compatível com ferro de soldar”, além de resquícios metálicos na área queimada.
Um segundo laudo, em andamento, analisa o circuito eletrônico, embora o sistema tenha funcionado e disparado o alerta. O equipamento foi substituído, mas o estrago jurídico estava feito.
Para Moraes, a tentativa de abrir a tornozeleira configurou “violação dolosa e consciente” das medidas cautelares impostas pelo STF.
O ministro destacou que Bolsonaro é “reiterante” no descumprimento de restrições e que a combinação entre a violação e a vigília convocada pelo filho, na porta do condomínio onde o ex-presidente vivia, elevava o risco de fuga e de confronto com as autoridades encarregadas de cumprir eventual mandado de prisão definitiva.
Na decisão que converteu a prisão domiciliar em preventiva, Moraes determinou que o ex-presidente fosse levado sem algemas, sem exposição midiática, para uma cela individual de cerca de 12 m² na Superintendência da PF, com cama, frigobar, televisão, banheiro privativo e banho de sol garantido. A audiência de custódia, realizada no domingo (23), homologou a prisão preventiva e manteve Bolsonaro detido.
Surto, tornozeleira e a versão da defesa
A defesa de Bolsonaro apresentou uma narrativa que tenta deslocar o centro do problema para o campo médico. Em manifestação ao STF e na audiência de custódia, o ex-presidente afirmou ter sofrido um “surto” e disse acreditar que havia uma escuta instalada na tornozeleira.
Afirmou que teria tentado abrir apenas a tampa do dispositivo, e não retirá-lo, o que afastaria qualquer intenção de fuga.
Os advogados alegam que uma combinação indevida de medicamentos — entre remédios para crises de soluço crônicas e um antidepressivo — teria provocado confusão mental, desorientação e alterações cognitivas, conforme boletim médico anexado aos autos.
Esse quadro, segundo a defesa, tornaria o comportamento “ilógico” e incompatível com planejamento de fuga, o que justificaria a conversão da prisão preventiva em domiciliar humanitária, alegando ainda comorbidades decorrentes da facada de 2018.
Relatos de investigadores e de agentes que circulam pela Superintendência da PF, porém, descrevem outro cenário: Bolsonaro caminha pela cela, assiste à televisão, conversa com servidores e aparenta estar emocionalmente estável.
As divergências de horário também pesam contra a tese defensiva. No vídeo encaminhado pela Seape, Bolsonaro indica ter mexido na tornozeleira ainda à tarde. Na audiência, afirmou que o incidente ocorreu após a meia-noite. Para o relator, o conjunto de laudos, registros do sistema de monitoramento e a confissão do uso do ferro de solda formam um quadro mais consistente do que a explicação medicamentosa.
Cronologia, mentiras e a vigília da anistia
Uma parte importante da disputa de narrativas está na cronologia. A família Bolsonaro passou a dizer que o ex-presidente teria sido preso “antes” da violação da tornozeleira, por perseguição política e religiosa, e que a vigília convocada por Flávio seria apenas uma reunião pacífica de oração. Os autos mostram outra sequência.
A Polícia Federal havia solicitado, com aval da Procuradoria-Geral da República, a conversão da prisão domiciliar em preventiva por descumprimento de cautelares e pelo acirramento do ambiente político. Esse pedido ainda não havia sido decidido quando o sistema detectou a violação da tornozeleira e a Seape enviou ao STF o relatório com o vídeo em que Bolsonaro admite ter usado um ferro de solda no dispositivo.
A decisão de Moraes foi tomada na madrugada de sábado, com base em laudos, registro técnico, imagens e na convocação da vigília.
Na porta da PF, Flávio Bolsonaro passou a construir uma nova narrativa. Disse que o pai está “indignado e inconformado”, voltou a acusar perseguição e anunciou que o PL pressionaria o Congresso a votar o chamado PL da Anistia, rebatizado pelo relator, deputado Paulinho da Força, como “PL da Dosimetria”.
O próprio ex-presidente, segundo o senador, pediu que o filho intercedesse junto aos presidentes da Câmara e do Senado para a colocação do projeto em pauta. A mensagem é clara: transformar a execução penal de Bolsonaro e de seus aliados em discussão sobre perdão político.
Por enquanto, o projeto permanece travado no Legislativo e enfrenta resistência social e jurídica. A defesa da anistia ampla é criticada por reabilitar a lógica de impunidade que marcou o desfecho do golpe de 1964, movimento que o STF — com as decisões recentes — busca impedir que se repita.
Golpe, condenação e a primeira fila dos generais
Enquanto a defesa insistia na tese do surto e em pedidos de prisão domiciliar, o processo principal corria em outra velocidade. Em 14 de novembro, por unanimidade, a Primeira Turma do STF rejeitou os recursos iniciais de Bolsonaro e de outros seis réus do núcleo 1 da trama golpista.
No dia 24, encerrou-se o prazo para novos embargos. Sem segundo recurso da defesa, Moraes certificou, em 25 de novembro, o trânsito em julgado da ação penal e determinou o início da execução das penas.
Bolsonaro foi condenado a 27 anos e três meses de prisão, em regime inicial fechado, por cinco crimes: organização criminosa armada; golpe de Estado; tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito; dano qualificado ao patrimônio público; e deterioração de patrimônio tombado.
A acusação descreve o ex-presidente como liderança política e institucional de um plano golpista que atacou as urnas, convocou manifestações antidemocráticas, instrumentalizou órgãos públicos como a PRF e a Abin, e validou a minuta de decreto de exceção, além do plano chamado “Punhal Verde-Amarelo”, que previa assassinatos de autoridades.
Ao lado dele, foram condenados Anderson Torres (24 anos), Alexandre Ramagem (16 anos, um mês e 15 dias), o general Walter Braga Netto (26 anos), o almirante Almir Garnier (24 anos), o general Augusto Heleno (21 anos) e o general Paulo Sérgio Nogueira (19 anos).
Além dos mandados já cumpridos contra Braga Netto, Garnier e Ramagem, Moraes determinou também a execução das penas dos ex-ministros Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira. Generais do Exército, ambos foram conduzidos às instalações do Comando Militar do Planalto (CMP), em Brasília, onde iniciarão o cumprimento da pena. Heleno foi condenado a 21 anos de prisão; Nogueira, a 19 anos. A transferência marca uma etapa sensível da execução penal, com militares de alta patente presos por participação comprovada na trama golpista.
O STF enviou ao Superior Tribunal Militar o pedido para que se avalie a perda de patente de Bolsonaro — capitão reformado — e dos oficiais condenados. Se forem considerados “indignos do oficialato”, perderão o vínculo com as Forças Armadas e os direitos associados às patentes que ocuparam.
Devido processo, disputa política e fim da impunidade golpista
A defesa de Bolsonaro contesta até o último movimento da Corte. Em nota, o advogado Paulo Cunha Bueno argumentou que o regimento interno prevê embargos infringentes em decisões não unânimes e cita precedentes como o de Fernando Collor, contestando o momento da certificação do trânsito em julgado. Moraes, porém, considerou encerrada a fase recursal ao vencimento do prazo, sem novo protocolo, e determinou o início da execução da pena. A defesa diz que recorrerá.
Do ponto de vista jurídico, o caso de Bolsonaro é a antítese da informalidade que marcou os processos anulados na última década. Houve investigação, denúncia formal, julgamento colegiado, ampla defesa, recursos, laudos, audiência de custódia, sessão da Primeira Turma validando a prisão e a execução penal sem espetáculo, sem algemas, com cela individual, visitas familiares e atendimento médico.
Do ponto de vista político, não houve atalho. Entre o haitiano que disse “acabou Bolsonaro” e o réu que agora caminha sozinho em uma cela branca na PF, o país precisou enfrentar o 8 de janeiro, desmontar a ideia de que militares permanecem acima da lei e responder a uma pergunta que perseguiu gerações: o que acontece quando quem tenta derrubar a democracia finalmente é responsabilizado? Desta vez, a resposta não veio em forma de anistia, mas de trânsito em julgado.



