Em artigo direto e contundente, o jornalista Paulo Pereira analisa a crise do peronismo e o avanço da extrema direita na Argentina após a vitória de Javier Milei nas legislativas de 2025

O peronismo dança na sacada, por Paulo Pereira
Foto: Senado Argentina/Divulgação


Desde as primeiras horas do domingo eleitoral, algo parecia fora do lugar. Às 12h, os números de participação divulgados pelo DINE já acendiam o alerta: menos de 30% do eleitorado, de cerca de 36 milhões de argentinos, havia votado até o meio-dia – o que se confirmou após o fechamento das urnas.

O pleito registrou a menor participação popular em mais de quarenta anos, 67,85%, e uma abstenção de cerca de 12 milhões de eleitores. Nas ruas, o clima era de desinteresse, cansaço e descrença. A indiferença, mais do que a convicção, anunciava o resultado que viria.

Na segunda-feira, com as manchetes estampando a vitória arrasadora de Javier Milei e o colapso eleitoral do peronismo, a dimensão da crise ficou evidente. Mas a verdade é que a crise não começou nas urnas, apenas se aprofundou nelas. 

O peronismo chegou a esta eleição dividido, burocratizado e paralisado por disputas internas que corroem sua base militante e sua capacidade de diálogo com a sociedade. O resultado eleitoral, portanto, é tanto consequência quanto catalisador de um desgaste mais amplo. Um movimento que, durante décadas, foi o espelho do povo argentino, hoje parece refletir apenas o próprio labirinto.

Javier Milei, com o seu recém-criado partido La Libertad Avanza (2021), conquistou 40,68% dos votos válidos em todo o país, quase nove pontos acima do peronismo, que ficou com 31,7%. 

O resultado garantiu ao presidente o controle de pelo menos um terço do Congresso, e o coloca muito próximo de uma maioria legislativa com o apoio de governadores e aliados ocasionais. 

A vitória fortalece o projeto político e econômico libertário, abrindo espaço para Milei aprofundar as reformas prometidas, da flexibilização trabalhista aos cortes mais profundos no Estado. 

O resultado das urnas também deve facilitar o socorro financeiro internacional prometido por Donald Trump, condicionado ao desempenho eleitoral. Mas afirmar que este é o fim do peronismo seria precipitado. O movimento que moldou a política argentina ao longo de oito décadas já sobreviveu a exílios, proscrições e fragmentações. 

O desafio agora é outro: confrontar suas próprias limitações e burocracias internas, reencontrar o contato com o povo e reconstruir uma agenda capaz de dialogar com as novas ansiedades da sociedade. Por enquanto, isso ainda não aconteceu.

O referendo permanente

As eleições de meio de mandato, nos últimos anos, têm sido vistas como um teste do governo, tornando-se um referendo sobre o poder de turno. Mas as eleições de meio de mandato nunca são boas para vaticinar o que pode acontecer nas presidenciais seguintes: em 2009, Cristina Fernández de Kirchner perdeu as legislativas, mas venceu as presidenciais quando concorreu à reeleição; Mauricio Macri venceu as de meio de mandato em 2017, mas perdeu a reeleição; Alberto Fernández perdeu as de meio de mandato em 2021, não concorreu à reeleição e o peronismo, com Sergio Massa como candidato, perdeu as presidenciais seguintes.

As legislativas de 2025 dão indícios sobre a dinâmica no Congresso nos próximos dois anos e sobre a governabilidade do presidente, que, embora ainda tenha que seguir negociando com a oposição, fortaleceu sua representação em ambas as câmaras. 

Mesmo em meio a uma crise social e econômica profunda, com queda do consumo, retração do emprego e uma estabilidade cambial artificialmente sustentada, o chamado “voto pelo bolso” não se confirmou. 

Javier Milei e sua coalizão La Libertad Avanza conquistaram 40,7% dos votos, ampliando expressivamente sua representação no Congresso: de 29 para 64 deputados e de 6 para 13 senadores. O resultado revela uma reconfiguração inédita do comportamento político argentino, em que o descontentamento econômico não se traduziu automaticamente em desgaste do governo nas urnas.

O movimento que implodiu

A derrota não veio de fora. Veio de dentro. O peronismo perdeu porque se devorou. A disputa antecipada pelo protagonismo de 2027 paralisou o movimento. As facções se enfrentaram com mais ferocidade do que enfrentaram Milei. O kirchnerismo, ressentido e desconfiado, cruzou os braços. Preferiu ver a derrota do conjunto a ver Axel Kicillof se consolidar como nova liderança.

O peronismo agora terá que resolver suas disputas internas e enfrentar seus problemas de liderança. Estas eleições, assim como as de 7 de setembro, mostraram o esgotamento do kirchnerismo, não apenas na província de Buenos Aires, mas em nível nacional. 

Assim como a autoridade de Cristina Kirchner ficou enfraquecida após a vitória de Kicillof e dos prefeitos nas eleições provinciais, os candidatos e a articulação política do cristinismo na província de Buenos Aires não foram suficientemente atraentes nas eleições legislativas nacionais.

Os prefeitos tiveram um papel forte nas eleições provinciais e apoiaram Kicillof, mas não participaram da estrutura eleitoral para as nacionais e permaneceram, em grande parte, à margem. 

Embora haja troca de acusações entre os seguidores de Cristina e os de Kicillof pelo desdobramento das eleições: foi uma boa decisão? foi ruim? a quem beneficiou? Oresultado eleitoral volta a abrir o caminho para que Kicillof articule seu próprio espaço com os prefeitos e outros governadores, consolidando sua liderança dentro do peronismo, que continua demonstrando a necessidade de renovação.

A máquina eleitoral que tantas vezes garantiu vitórias tornou-se um amontoado de engrenagens sem direção. Na noite da derrota, Cristina Kirchner apareceu dançando na sacada do seu apartamento, uma imagem que ficará na memória coletiva como o retrato de um movimento que celebra enquanto desaba.

O voto em lista e a burocracia sem alma

O sistema de listas fechadas, que em outros tempos assegurava unidade, revelou-se agora o espelho da decomposição. O peronismo fragmentado foi obrigado a costurar o possível, e o possível foi pouco. As candidaturas surgiram de acordos de gabinete, não da rua.

Em Buenos Aires, Itai Hagman encabeçou uma chapa sem apelo popular, incapaz de emocionar e mobilizar. No estado, Jorge Taiana, símbolo da velha guarda, representou mais o peso da tradição do que a esperança de futuro. Nenhum dos dois mobilizou a sociedade. O peronismo, que nasceu como movimento popular, hoje se parece mais com um condomínio de dirigentes. Vive do passado de glórias incapaz de apresentar um projeto de futuro que enamore o povo. 

A máquina libertária e a vitória da ideologia

Enquanto isso, Milei fez o que o peronismo esqueceu: política. Seu núcleo duro, comandado pela irmã e estrategista Karina Milei, montou uma estrutura nacional com disciplina de quartel. Enfrentou as pressões do PRO, ignorou as tentativas de cooptação de Mauricio Macri e impôs uma lista única, ideológica e coesa.

O resultado foi uma vitória acachapante que ninguém previu. La Libertad Avanza capitalizou a raiva, transformou a antipolítica em programa e o ressentimento em projeto de poder. 

A motosserra, antes metáfora, agora volta a rugir com mais força. Milei promete aprofundar os cortes no Estado, avançar sobre direitos trabalhistas e implementar uma reforma que ameaça reconfigurar o país.

A direita argentina já não é uma expressão conservadora tradicional, é um projeto revolucionário, no pior sentido do termo.

O epílogo de um mito

O peronismo, que durante décadas ditou o ritmo da política argentina, chega a 2025 como uma fração da potência que um dia foi. A derrota de agora não é apenas eleitoral, é simbólica e espiritual. 

Quando as classes trabalhadoras votam em quem promete desmontar o Estado, quando a juventude entoa hinos libertários e as fábricas se entusiasmam com a motosserra, é porque algo se partiu no coração da Argentina.

O ciclo iniciado em 2003, que sob Néstor e Cristina Kirchner devolveu ao peronismo vitalidade e sentido histórico, parece hoje esgotado. O movimento que renasceu como projeto de inclusão e soberania se fragmentou em disputas internas, perdeu conexão com as novas sensibilidades sociais e já não oferece respostas ao mal-estar contemporâneo.

O peronismo já não é o partido do povo é o partido da nostalgia. Enquanto o movimento celebra o passado dançando em sua própria sacada, Javier Milei governa um país distinto, nascido, ironicamente, das ruínas do velho. Talvez seja tempo de o campo nacional e popular reinventar suas formas de ação e imaginação política, se quiser voltar a falar em nome do futuro.

Paulo Pereira é jornalista brasileiro, graduado pela PUC-Campinas e mestre em Cinema pela Fundación Universidad del Cine de Buenos Aires