Símbolo da música brasileira, Milton Nascimento representa uma obra que atravessa gerações, unindo fé, poesia e resistência em mais de seis décadas de carreira reconhecida no Brasil e no mundo

Milton Nascimento e a voz que o tempo não apaga: é preciso celebrar o legado de Bituca
Milton Nascimento em seu show de despedida dos palcos, no Mineirão, em Belo Horizonte Foto: Reprodução

A notícia de que Milton Nascimento, 82, foi diagnosticado com demência por corpos de Lewy (DCL) veio a público (2/10) e comoveu fãs e admiradores. A confirmação foi feita pela família, e o filho, Augusto Nascimento, publicou um depoimento sensível nas redes sociais, descrevendo o processo de diagnóstico e o cotidiano recente com o pai.

“Tem sido uma batalha diária, uma dor intensa e um vazio enorme no peito”, escreveu, ao relatar a progressão dos sintomas e a decisão de tornar o assunto público após entrevista à revista Piauí.

A DCL é um distúrbio neurodegenerativo progressivo, considerado uma das formas mais comuns de demência depois do Alzheimer. Caracteriza-se por flutuações cognitivas, alterações de atenção e alerta, alucinações visuais recorrentes e sintomas motores semelhantes aos da doença de Parkinson, decorrentes do acúmulo de proteínas anormais (corpos de Lewy) no cérebro. O tratamento é sintomático e multidisciplinar, com medicamentos e suporte às rotinas de cuidado.

Milton Nascimento e a voz que o tempo não apaga: é preciso celebrar o legado de Bituca
“Seguimos juntos, com amor e serenidade”, escreveu Augusto Nascimento ao anunciar o diagnóstico do pai
Foto: Reprodução Instagram/@augustonascimentoo.

Bituca, apelido que o acompanha a vida toda, construiu uma obra que se tornou parte da memória afetiva coletiva. Sua voz única, doce e potente, foi reconhecida por pares e crítica como um patrimônio sonoro. Elis Regina sintetizou essa percepção: “Se Deus cantasse, seria com a voz de Milton Nascimento”. Décadas depois, pesquisas e listas internacionais consagraram sua discografia e sua interpretação como referências da música popular contemporânea.

Turnê de despedida e o encontro com uma geração inteira

A turnê A Última Sessão de Música (2022–2023) foi um grande rito de celebração. Em mais de 30 apresentações no Brasil e no exterior, Milton revisitou canções que atravessaram cinco décadas — de Travessia e Nada Será Como Antes a Maria, MariaCoração de Estudante e Canção da América.

Em março de 2023, já aposentado dos palcos, viveu um momento inesquecível ao cantar com o Coldplay no Rio de Janeiro, num registro amplamente compartilhado e ovacionado pelo público.

Nascido em 1942, no Rio de Janeiro, e criado em Três Pontas (MG), Milton formou, já na capital mineira, em Belo Horizonte, ao lado de Lô Borges, Beto Guedes, Wagner Tiso, Márcio e Fernando Brant, o núcleo que daria origem ao Clube da Esquina.

O álbum homônimo (1972) misturou MPB, jazz, folk, psicodelia e rock, sob a atmosfera da ditadura, e tornou-se marco da música brasileira e referência mundial. Milagre dos Peixes (1973), gravado sob censura, respondeu com soluções artísticas — vocalizes, instrumentais — que transformaram limites em estética.

Além das composições históricas, Milton mergulhou no cancioneiro brasileiro e fez emergir tradições dos povos originários, do sertão e do Vale do Jequitinhonha, das irmandades do Congado e das folias de Reis — uma trama que também alimenta o pulso dos Tambores de Minas. Esse universo se cruza com a MPB de resistência à ditadura e com a valorização de ofícios e profissões em canções como Canção do Sal.

Em Barbacena (MG), a Bituca – Universidade de Música Popular, criada (2004) pelo grupo Ponto de Partida e que leva o apelido do artista, oferece formação gratuita e tornou-se referência no ensino de música, acolhendo jovens de dezenas de cidades. O projeto traduz a crença de Milton no acesso à arte como transformação social.

Reconhecimentos e prêmios

Ao longo de mais de seis décadas de carreira, Milton Nascimento acumulou prêmios e homenagens que reafirmam sua dimensão artística e humana. Recebeu cinco Grammys Latino, incluindo o de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira, além do Grammy Internacional de World Music, em 2000, por Nascimento. Foi condecorado com a Ordem do Mérito Cultural, em 2007, e reconhecido por instituições como a Unesco e o Ministério da Cultura, que o homenagearam por sua contribuição à identidade musical brasileira.

Em 2012, Milton foi eleito pela revista Rolling Stone Brasil uma das maiores vozes do país e figura entre os 100 artistas mais influentes da música brasileira. Sua trajetória também é celebrada fora do país: recebeu títulos honoríficos em universidades estrangeiras e prêmios em festivais internacionais, do Montreux Jazz Festival, na Suíça, ao Festival de San Sebastián, na Espanha. Cada distinção reafirma o que o público sempre soube — que Bituca é mais que um cantor: é uma referência viva da cultura universal.

Diante do diagnóstico, o gesto coletivo não é de fim, mas de gratidão. A obra de Milton mistura fé, humanidade e solidariedade — e segue inspirando novas escutas. Como disse Caetano Veloso, “Milton é o Brasil que deu certo”. É esse Brasil mestiço, musical e plural que permanece vivo em cada nota.

Cinco discos essenciais de Milton Nascimento

Tambores de Minas (1998) – Ao vivo, celebra ritmos e espiritualidade em performance de grande potência

Clube da Esquina (1972) – Manifesto estético mineiro em parceria com Lô Borges; síntese de influências brasileiras e universais

Milagre dos Peixes (1973) – Resposta criativa à censura; vocalizes e instrumentais ampliam o alcance expressivo

Geraes (1976) – Canções populares e conexão latino-americana em repertório que consolidou sucessos

Caçador de Mim (1981) – Introspecção poética com canções como Nos Bailes da Vida e Canção da América

Tambores de Minas (1998) – Ao vivo, celebra ritmos e espiritualidade em performance de grande potência

Uma voz que o mundo reconhece

As homenagens a Milton Nascimento ultrapassam fronteiras. De Elis Regina a Sting, de Mercedes Sosa a Chris Martin, artistas de diferentes gerações e países expressaram, ao longo das décadas, o impacto de sua música. As palavras reunidas abaixo formam um retrato coletivo de como a voz e a obra de Bituca se tornaram universais — um canto capaz de unir corações e culturas em torno da beleza e da emoção.

O que artistas nacionais e internacionais já disseram sobre Milton

Elis Regina

“Se Deus cantasse, seria com a voz de Milton Nascimento.” A frase se tornou uma das mais icônicas da música brasileira — um tributo vindo de uma de suas maiores parceiras e admiradoras.

Caetano Veloso

“Milton é o Brasil que deu certo.” A frase resume o sentimento de reverência e fraternidade que une os grandes nomes da MPB em torno de Bituca.

Chico Buarque

“Milton é um milagre de sensibilidade. Ele canta o que todos nós gostaríamos de sentir.” Companheiro de gerações de festivais, Chico sempre o descreveu como um “irmão de alma”.

Wayne Shorter (saxofonista norte-americano)

“Milton é a alma do Brasil.” Parceiro no disco Native Dancer (1975), o lendário músico de jazz foi um dos primeiros a projetar a voz de Bituca para o público internacional.

Mercedes Sosa (cantora argentina e parceira de Milton)

“Milton é um rio que atravessa fronteiras.” A argentina, com quem gravou Volver a los 17, dizia que cantar com ele era “como rezar”.

Sting

“Há algo na voz dele que é pura luz.” O britânico, que já citou Milton entre suas influências, definiu sua música como “uma oração que não precisa de tradução”.

Chris Martin (Coldplay)

Durante o show no Rio em 2023, o vocalista dedicou uma música ao brasileiro e o chamou ao palco: “Um dos maiores artistas da história da música mundial. Um privilégio cantar com ele.”