Vereador propõe debate sobre regulamentação da manifestação cultural em São Paulo com a participação dos blocos 

“O Carnaval de rua precisa ser livre e democrático”, defende Nabil Bonduki
Maior festa popular da capital, o Carnaval de rua de São Paulo mobilizou centenas de blocos em 2025 e volta ao centro do debate sobre direito à cidade e cultura democrática Foto: Thomaz Silva/Agência Brasil

A quatro meses do Carnaval de 2026, blocos e prefeitura se preparam para dias de grandes concentrações em diferentes regiões da capital.Para ter dimensão do tamanho do evento, no ano passado, 767 blocos se inscreveram para participar da festa. 

Com o crescimento da manifestação cultural surgem novos desafios, já que as regras mudam a cada ano, pela falta da consolidação de uma regulamentação. Na Câmara Municipal, tramita um Projeto de Lei apresentado em 2016 pelo vereador Nabil Bonduki.

Uma década depois, o tema continua em debate. Ao longo dos anos, a prefeitura passou a privilegiar grandes blocos com estrutura de shows, distantes das manifestações comunitárias que dão origem ao Carnaval de rua.

Em uma audiência pública realizada na Câmara de Vereadores, na terça-feira (30), com Bonduki na presidência dos trabalhos, questões como a restrição de horários, a delimitação de espaços e o impeditivo para o surgimento de novos blocos, apareceram entre as demandas dos grupos culturais que se organizam em torno do tema. 

Confira a entrevista, que também tratou das concessões dos parques da cidade.

“O Carnaval de rua precisa ser livre e democrático”, defende Nabil Bonduki
Para Nabil Bonduki, o Carnaval paulistano deve ser tratado como expressão cultural e não apenas como evento turístico Foto: Reprodução

Antes de entender a atual situação do Carnaval de rua em São Paulo, você pode contextualizar o histórico de como a prefeitura tem lidado com a questão na última década? 

É importante a gente dizer que o Carnaval de rua até 2013 não estava regulamentado pela prefeitura. Ele era, muitas vezes, perseguido, tinham algumas poucas iniciativas. E, na verdade, a grande maioria dos paulistanos que curtiam Carnaval acabavam indo curtir em outras cidades, como Rio, Recife, Salvador. O que aconteceu a partir de 2013, com a gestão Haddad, foi uma espécie de um grande debate sobre como regulamentar o Carnaval de rua em São Paulo, quando o secretário [de Cultura] era o Juca Ferreira. 

Isso também foi estimulado pelo ‘Manifesto Carnavalista’ que foi feito pelos blocos naquele período. E a partir daí, então, surgiu toda uma preocupação em criar uma condição favorável para os blocos poderem sair em São Paulo. E isso começa principalmente a partir de 2014, com o primeiro decreto que está baseado na lógica da prefeitura garantir a infraestrutura e a condições para os blocos poderem ocupar as ruas, bancando a limpeza, retirando as taxas que normalmente eram cobradas para eventos e fazendo com que dessa maneira o Carnaval pudesse crescer. Quando eu fui secretário, que foi 2015 e 2016, eu participei da coordenação do Carnaval, e quem coordenava, isso é uma coisa importante, era a Secretaria de Cultura. Ele era visto como uma manifestação de cidadania cultural. 

Não era visto como turismo, como infraestrutura, como mercado. O projeto de lei que eu elaborei em 2016 está muito baseado nessa lógica, de um Carnaval democrático, livre, aberto, transparente, sem abadá, sem corda, sem limitações, e muito voltado para expressão que vem de baixo para cima. Mas, ao mesmo tempo, já vinha se desenvolvendo na cidade uma outra lógica de Carnaval, que é o Carnaval como evento. Ou seja, produtoras culturais contratavam artistas para fazer o Carnaval com outra dimensão e isso já estava presente ali, embora não com tanta força. 

E como foi essa virada de chave desse processo que começou ali na gestão Haddad?

O que aconteceu a partir de 2017, com a gestão Dória, e que foi se aprofundando daí para frente, é que o Carnaval de rua foi se transformando, cada vez mais, em um evento que começou a limitar os espaços de circulação, né? Não que isso não tivesse acontecido em alguma medida anteriormente. Mas, eu lembro, por exemplo, que em 2016, como a questão na Vila Madalena era muito, muito grave, muito forte, uma quantidade de pessoas nas ruas do bairro, começou a ter algum controle para poder limitar a entrada de pessoas em um certo perímetro. Mas isso não limitava, de maneira nenhuma, a manutenção do Carnaval como um Carnaval livre e democrático. E o que vai acontecer a partir daí é um um amplo conjunto de limitações. 

É claro que o Carnaval vai crescendo e vai se transformando em um dos maiores eventos da cidade. E aí então vai surgir uma série de problemas que eu acho que precisam ser enfrentados nos dias de hoje. Além dessa visão do Carnaval das produtoras, cada vez mais de mercado, com os grandes blocos, tem também o ponto da limitação de horário, que não é só uma limitação em função do impacto que gera para os moradores, mas, é também uma limitação que acaba gerando público para os eventos privados, que acontecem nas noites, em lugares fechados. 

Portanto, quem quiser curtir o Carnaval depois das 18 horas, como está agora delimitado esse horário, acaba sendo obrigado a ir para um lugar fechado, privado, cobrado, o que na verdade descaracteriza a ideia de um Carnaval livre, democrático. É claro que a grande questão do Carnaval, assim como dos eventos em espaço público, é a compatibilização do direito ao sossego com o direito à circulação das pessoas e as manifestações culturais. 

Por isso, eu acho que essa é uma das grandes questões que estão envolvidas, não só no Carnaval de rua hoje, mas, como em todos os eventos que acontecem na cidade.

E na gestão de Ricardo Nunes? Como isso está desenhado?

Recentemente, o prefeito tentou aprovar uma legislação, praticamente, retirando os limites de ruído para eventos que são autorizados pela prefeitura. E isso acabou sendo aprovado como um jabuti na Câmara Municipal e caiu agora por uma decisão judicial. Então, esse é um conflito que está hoje muito presente na cidade, o conflito do ruído. 

Agora, veja, o Carnaval é uma manifestação cultural restrita a um período limitado do ano. É uma manifestação cultural muito importante da população. E não se iguala a eventos que acontecem praticamente toda semana e, às vezes, vários dias por semana o ano todo. Por isso, também existem algumas teses que são defendidas por quem tem estudado e participado dessa discussão sobre regulamentação do Carnaval, do entendimento de que um período de exceção seria justificável, assim, como o próprio Carnaval sempre foi do ponto de vista de costumes também. E nós temos visto, não só a limitação do horário, como, inclusive, o uso de força policial para dispersar os blocos de Carnaval que ficam depois do horário estabelecido. 

Temos visto uma crescente tendência da prefeitura de delimitar circuitos de Carnaval, como existe em outras cidades, o que perde o caráter de um carnaval livre, democrático, mais aberto. Existe uma tendência de concentrar o Carnaval em certas regiões, em certas ruas, em certos lugares, o que pode correr o risco de transformar o Carnaval de rua numa espécie de Carnaval de escola de samba, sabe? E não deveria ser essa a intenção, né? 

A lógica do Carnaval de rua. Então, vejo que temos três grandes tendências. Uma que é um Carnaval de mercado, feito por produtoras muito interessadas em levar muito público, geralmente com patrocínios. Outra que são os blocos que nasceram como blocos comunitários, com grupos de pessoas, mas que cresceram e viraram grandes grandes blocos.

 Eles não têm exatamente o mesmo caráter do primeiro, porque eles têm sim uma raiz na cidade, mas viraram grandes eventos, grandes blocos, com a mobilização de dezenas, até centenas de milhares de pessoas. Tem blocos que exaltam o fato de terem 100 mil pessoas na rua, enquanto há outros que nem mesmo querem divulgar o dia e o local de saída para continuarem sendo um bloco onde as pessoas daquele coletivo, de determinada região, se encontrem. 

Então, hoje estamos em um processo crescente de transformar o Carnaval em grande evento turístico da cidade, tanto que o Carnaval saiu da Secretaria de Cultura, como era na nossa época, e foi para a Secretaria de Infraestrutura, como se o papel da prefeitura fosse cuidar somente dessa parte. E agora foi para SPTuris [empresa de turismo], que pode até ser uma perspectiva do Carnaval, mas não sei se é a mais adequada para a cidade. 

Eu acho que esse governo está trabalhando muito nessa perspectiva de fazer São Paulo a grande cidade de eventos, o que é importante porque isso gera emprego, gera movimento econômico, mas, nós temos moradores, e nem sempre a cidade que é boa para o turista é boa para os moradores, né?

Então, como podemos elencar as principais reivindicações dos blocos atualmente?

Acho que tem toda uma discussão sobre patrocínio, porque os blocos menores dizem que são passados para trás nesse processo, com os apoios voltados para os eventos que chegam de fora. Tem a questão da flexibilidade de horário, que é um reivindicação muito grande hoje. Além da necessidade de olhar para o ponto da definição dos espaços dos blocos. 

A regulamentação do Carnaval 2026 é muito rigorosa, muito rígida. Existe uma proibição, por exemplo, em algumas regiões, do surgimento de novos blocos, o que é um absurdo porque o Carnaval é uma manifestação cultural viva. Além do projeto que propõe que somente blocos com CNPJ tenham apoio da prefeitura. 

Nas suas redes sociais, você tem feito muitas denúncias do mau uso do espaço público, em uma perspectiva de cerceamento da circulação da população, como no caso do Vale do Anhangabaú, e concessões que encarecem os espaços, a exemplo das mudanças no Ibirapuera, e no Parque da Água Branca. Como você avalia a pauta do direito à cidade atualmente em São Paulo?

Olha, eu acho que nós estamos muito preocupados com essa reversão de uma política que parecia consolidada, de a gente ter o direito à cidade de maneira ampla e democrática. Hoje, a gente vê situações como, por exemplo, vou falar o caso que eu considero o mais grave, que é o do Anhangabaú. 

O Anhangabaú é uma praça pública, principal praça da cidade, no centro, e que, com a concessão, durante muitos dias, quando existem eventos, ela fica cercada para a livre circulação das pessoas. É um lugar onde a prefeitura fez um grande investimento, gastou ali mais de 100 milhões de reais para fazer um projeto que, inclusive, tem sido bastante questionado. 

Por exemplo, foram colocados 800 jatinhos de água, que em dias de calor, deveriam funcionar intensamente. E nunca funcionam, funcionam raramente, três vezes por dia quando funcionam. E muitas vezes também o pessoal fica cercado. As pessoas não entram. Então, essa é uma situação. 

E temos os parques públicos, os mercados, os cemitérios, a Zona Azul, tudo concedido para o setor privado, que, muitas vezes, criam fatos consumados não respeitando a própria legislação do próprio contrato de concessão. E vão rentabilizando esse espaço e as concessionárias falam: “bom, nós rentabilizamos o espaço porque nós temos que pagar uma outorga onerosa para prefeitura. Temos que fazer investimento, temos que fazer a manutenção, segurança, limpeza, isso tem custos, então eu preciso comercializar esse espaço para poder, dessa maneira, garantir recursos para cobrir essas despesas”. 

Então, a gente chega a conclusão que a concessão é feita cerceando o direito à cidade. Em suma, estão cobrando de pessoas que vão correr no entorno dessas áreas. Então, o espaço público começa a perder a sua característica. Daqui a pouco, vão cobrar para a gente andar nos lugares. Por exemplo, o Ibirapuera está até relativamente bem cuidado, né? Mas, há determinados serviços que acabam sendo proibitivos para boa parte da população. Em outros parques, como no da Água Branca, a coisa é muito pior. 

Ali a concessionária sequer está cuidando bem, ela mudou as características do parque. Muitas vezes áreas importantes estão cercadas, serviços que existiam, não existem mais. Coisas que estão no contrato, como, por exemplo, a educação ambiental, que deveria ser feita nos parques, não são realizadas. 

No Parque Villa Lobos, o centro de educação ambiental está fechado. Então, a gente vê que, realmente, é uma tendência da prefeitura comercializar os espaços públicos. É claro que eu não sou contra, pode existir concessões de parque, desde que tenham regras que garantam as condições básicas. Não sou contra que você tenha um restaurante de qualidade dentro de Ibirapuera, mas você tem que ter, ao mesmo tempo, um restaurante popular, por quilo.

E como está a mobilização da sociedade em defesa desses espaços?

Essa semana passada nós tivemos uma Audiência Pública sobre o Carnaval de rua e uma outra sobre as concessões de parques. Os conselhos gestores dos parques estão mobilizados. Há um movimento na sociedade para debater esse tema. Eu tenho alguns projetos de lei já, que vão no sentido de não cercear a concessão, porque a concessão é um contrato de longo prazo, mas com exceção do Anhangabaú, que eu acho que é uma concessão que foi feita sem autorização legislativa, de resto, a gente precisa fazer com que haja contratos e planos diretores desses parques que garantam essa convivência da concessão com o direito do cidadão, do usuário dos parques. E sobre o Carnaval de rua, os blocos estão convocando uma assembleia para que a gente possa dar andamento, inclusive aos debates da regulamentação dos blocos de rua na cidade.