Manifestações de 21 de setembro levaram centenas de milhares às ruas em todo o Brasil contra a anistia e a PEC da Blindagem, recolocando a esquerda no centro do debate nas ruas

Esquerda nas ruas faz Câmara recuar e Motta classifica pautas da Anistia e da Blindagem como “tóxicas” 
Marcelo Camargo/Agência Brasil

Manifestações convocadas por frentes populares, movimentos sociais, centrais sindicais, partidos de esquerda e artistas levaram centenas de milhares de pessoas às ruas, em todas as capitais e dezenas de cidades do Brasil, no domingo (21), para rejeitar duas das propostas mais polêmicas em tramitação no Congresso: o Projeto de Lei 5.836/2023, que trata da anistia a condenados por tentativa de golpe de Estado, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro – sentenciado pelo STF no último dia 11 de setembro a 27 anos de prisão – e a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 28/2023, conhecida como PEC da Blindagem, que restringe a abertura de ações penais contra parlamentares.

Os dois projetos avançaram na Câmara em votações relâmpago na semana passada, com a aprovação do regime de urgência no fim da noite, sem debate público e sob forte articulação do bolsonarismo e do Centrão. A reação das e às ruas não tardou. Já na segunda-feira (22), o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), admitiu que “é o momento de tirar da frente todas essas pautas tóxicas” e focar em medidas que “beneficiem o povo”, como a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil.

Diferentemente dos atos bolsonaristas que marcaram o ciclo recente da extrema direita, organizados em motociatas ou grandes comícios com governadores aliados e militares no palanque, os protestos do dia 21 foram essencialmente civis, pacíficos e com forte presença de artistas.

Em Copacabana, no Rio, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque deram o tom cultural da mobilização, enquanto, em São Paulo, a Avenida Paulista reuniu mais de 42 mil pessoas, segundo o Monitor do Debate Político da USP. Nas redes, militantes contestam os números, comparando imagens com outros atos parecidos e de números mais vultuosos.

Também se apresentaram no já histórico ato no Rio artistas como Maria Gadu, que abriu a apresentação cantando “Como Nossos Pais” e Marina Sena, que arrebatou o público com “Brasil”, clássico na voz de Gal Costa; além de Lenine, Frejat, Ivan Lins, Pretinho da Serrinha, Djavan e outros.

O presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva não convocou, não discursou e tampouco subiu em palanque: acompanhou à distância e aplaudiu a mobilização popular. A palavra de ordem das ruas, estampada em cartazes e ecoada em coro, foi a mesma de Brasília às capitais do interior: “sem anistia”.

Espetáculo da democracia 

Nesta segunda-feira (22), o presidente Lula da Silva afirmou que os protestos que levaram milhares de pessoas às ruas neste domingo contra a PEC da Blindagem e a proposta de anistia a envolvidos em atos golpistas foram “espetáculo da democracia”.  

“Quero saudar todos os artistas que se uniram ontem a dezenas de milhares de pessoas nas ruas de todo o Brasil para defender a justiça e lutar contra a impunidade e a anistia”, afirmou Lula. 

O presidente comparou os atos de domingo (21) a outros movimentos populares históricos pela redemocratização e as Diretas Já, movimento que teve como objetivo a retomada das eleições diretas ao cargo de presidente da República, durante a ditadura militar.  

Datafolha mostra que 54% da população rejeita anistia para Bolsonaro e aliados golpistas

“Isso nos traz a lembrança dos anos 1970, durante a redemocratização, quando suas vozes [dos artistas] se somaram à voz de uma população que clamava pela liberdade. E das Diretas Já, nos anos 1980, quando entoaram ao lado do povo o grito pelo direito de votar para presidente. Essa é a maior de todas as artes: o espetáculo da democracia”, apontou o presidente. 

As capitais registraram grandes concentrações ao longo do dia. Em São Paulo, o Monitor do Debate Político no Meio Digital (USP) e a ONG More in Common estimaram 42,4 mil pessoas na Avenida Paulista. No Rio, 41,8 mil se reuniram em Copacabana.

Ao todo, foram registrados atos em 33 cidades, com palavras de ordem contra a anistia e a PEC da Blindagem. Em Brasília, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Natal, Manaus, Belém, Porto Alegre e outras capitais, os cortejos misturaram música, cartazes e faixas em defesa da democracia.

Cultura em primeiro plano: protagonismo civil

Em Copacabana, depois dos discursos de políticos, a cena foi tomada pela música e por manifestações artísticas. Caetano classificou a mobilização como resposta aos “horrores” que cercam a agenda de retrocessos; Ivan Lins chamou a PEC da Blindagem de “a maior cara de pau da história”. 

Na Paulista, sindicatos, coletivos estudantis e movimentos de moradia dividiram espaço com famílias, jovens, profissionais liberais e trabalhadores. Havia verde-amarelo, vermelho, branco e azul – e um denominador comum: adesivos e faixas de “Sem anistia” e “Congresso inimigo do povo”. 

Em Salvador, Daniela Mercury e o ator Wagner Moura puxaram o coro; em BH, Fernanda Takai ocupou a Praça Raul Soares; em Brasília, o cortejo saiu do Museu Nacional rumo ao Congresso.

Opinião pública e os recuos de Motta

Levantamento Datafolha da última semana indica que 54% dos brasileiros são contra anistiar Jair Bolsonaro; 39% são a favor. No governo, os trackings internos do domingo (21) captaram melhora pontual de humor nas redes e leve avanço na avaliação do presidente frente à desaprovação, um efeito imediato atribuído aos atos. 

Há, contudo, divergência com pesquisas de série como a Quaest, que na semana anterior mantinha a aprovação estável (46%) e desaprovação em 51%. Ainda assim, o recado político do 21/9 é inequívoco: há maioria social contrária à anistia e sensível a medidas econômicas de impacto popular, como a faixa de isenção do IR e o combate a privilégios.

Esquerda nas ruas faz Câmara recuar e Motta classifica pautas da Anistia e da Blindagem como “tóxicas” 
Após protestos, presidente da Câmara sinaliza recuo sobre PEC da Blindagem e anistia: ‘pautas tóxicas’
Foto: Reprodução

Um dia após as manifestações, Hugo Motta reconheceu o desgaste e defendeu “destravar” a agenda econômica (IR até R$ 5 mil, reforma administrativa e segurança pública). 

No Senado, o presidente da CCJ, Otto Alencar (PSD-BA), pautou a PEC da Blindagem para quarta-feira (24) com a expectativa de rejeição, posição já antecipada por ele e pelo relator, Alessandro Vieira (MDB-SE). 

No tabuleiro da anistia, o relator Paulinho da Força (Solidariedade-SP) tenta empurrar uma “saída intermediária”: reduzir penas, sem perdão amplo, movimento que enfrenta resistência no Supremo e resistência social nas ruas.

Diferenças de natureza: de motociatas a atos cívico-culturais

Os protestos de 21/9 contrastam com a estética e o método das mobilizações pró-Bolsonaro: em vez de comícios centrados em figuras políticas e aparato de campanha, prevaleceu o formato de festival cívico com artistas, coletivos e frentes populares (Brasil Popular e Povo sem Medo) articulando uma pauta clara: sem anistia para crimes contra a democracia e sem blindagem para parlamentares

A iconografia também mudou: a bandeira do Brasil foi ressignificada ao lado de símbolos da cultura popular; jovens voltaram a protagonizar os atos, com criatividade e linguagem de redes.

Narrativa em disputa, ruas em alta

A repercussão dos números impressionou até adversários: relatos de bastidores apontam surpresa entre lideranças bolsonaristas, que adotaram a estratégia de minimizar a adesão. Ainda assim, o tamanho das concentrações em SP e RJ e a capilaridade nacional ampliaram a pressão sobre o Congresso. Lula, em nota e posts, qualificou o 21/9 como “espetáculo da democracia” e cobrou foco em “medidas que tragam benefícios ao povo”, alinhando o Planalto ao recado das ruas sem apropriar-se da convocação.

O curto prazo será decidido no Senado: a tendência é travar ou derrubar a PEC da Blindagem na CCJ; no plenário, líderes como MDB e PSD já sinalizam voto contrário. 

Na Câmara, o presidente promete pautar a isenção do IR na semana seguinte e reduzir a temperatura da “pauta tóxica”. No campo da anistia, qualquer tentativa de contornar decisões do STF, seja por perdão amplo, seja por “dosimetria” oportunista, encontrará resistência jurídica e política. Com as ruas reacendidas, a mensagem é cristalina: democracia não se negocia – e a agenda social volta ao centro do debate.