Pela primeira vez, um ex-presidente da República é julgado por tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito. No banco dos réus, Bolsonaro e aliados militares respondem por trama golpista e planos de assassinato de autoridades

Julgamento de Bolsonaro no STF: Brasil enfrenta o passado e diz não ao golpe
Jair Bolsonaro durante ato com apoiadores; ex-presidente é acusado de ter usado a máquina pública e discursos incendiários para fomentar a tentativa de golpe de Estado. Fernando Frazão/Agência Brasil


Pela primeira vez, um ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, será julgado por tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito no Brasil. No banco dos réus, civis e militares compõem uma cena inédita, que agora já tomam conta de jornais, páginas em redes sociais, memes, mas o resultado do aguardado dia 2 de setembro é, em suma, um recado institucional forte em defesa da democracia. 

O país que não puniu seus torturadores e ditadores do passado, apesar dos gritos de “Ditadura nunca mais” e “não vai ter golpe” encara, agora, diante do Supremo, o fantasma de uma tentativa violenta de ruptura democrática, com relatos, inclusive, de planos que incluíam o assassinato do presidente eleito, do vice e de membros do Judiciário.

Estarão diante da Justiça o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete aliados, acusados de tentar um golpe de Estado após as eleições de 2022. A partir das 884 páginas do relatório da Polícia Federal (PF), eles responderão por organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça, além de deterioração de patrimônio tombado.

Um julgamento que fala de passado

O julgamento do processo que começa hoje não fala apenas de 2022 ou de 8 de janeiro de 2023. Ele reapresenta uma linhagem de autoritarismo que sobreviveu intacta por décadas, mas que vem à tona a revelia de seus autores: crimes da ditadura sem julgamento, violações registradas no relatório Brasil: Nunca Mais (1985), que documentou centenas de casos de tortura a partir de arquivos militares, e a criação da Comissão Nacional da Verdade (2011–2014), que identificou 434 mortos e desaparecidos e responsabilizou 377 agentes do Estado. Nenhum deles, contudo, foi condenado.

Essa ausência de responsabilização foi reforçada pela Lei da Anistia de 1979, que blindou agentes da ditadura e garantiu décadas de impunidade. Apenas em 2021, mais de 40 anos depois, ocorreu a primeira condenação relacionada ao período: um torturador punido por crime de sequestro considerado contínuo. A demora histórica ajuda a dimensionar a importância do julgamento atual.

A presidência como puxadinho do golpe

Agora, os réus são acusados de usar a Presidência e braços administrativos do Estado, como a Abin, para tramar um golpe de Estado e monitorar jornalistas, opositores e políticos. A gravidade dos fatos dá o tom do horizonte que se abre: enfrentar os monstros do passado para afirmar a força da Constituição e de apelos populares.

Além de Bolsonaro, estão entre os réus nomes de peso da antiga cúpula militar e política: Alexandre Ramagem (ex-diretor da Abin, com parte das acusações suspensas por foro e respondendo a três dos cinco crimes), o almirante Almir Garnier (ex-comandante da Marinha), Anderson Torres (ex-ministro da Justiça), os generais Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Walter Braga Netto, e o tenente-coronel Mauro Cid (ex-ajudante de ordens). 

O governo Bolsonaro entrou para a história como o que mais abrigou militares desde a ditadura de 1964.

Primeiro dia: entre a liturgia e os bastidores

Julgamento de Bolsonaro no STF: Brasil enfrenta o passado e diz não ao golpe
Lula Marques/Agência Brasil

O julgamento começou às 9h desta terça-feira (2), em sessão marcada pela leitura do relatório do ministro Alexandre de Moraes e pela peça acusatória apresentada pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet. A liturgia deu o tom da manhã, mas foram os bastidores que revelaram o clima da Corte.

A jornalista Kriska Carvalho, que acompanhou a sessão da galeria da Primeira Turma, descreveu o ambiente como de “pré-festa”: expectativa de desfecho e sensação de que o resultado já está encaminhado. A ausência da maioria dos réus decepcionou a imprensa — mais de 500 jornalistas estavam credenciados em Brasília — e frustrou quem esperava confronto direto.

Na saída da primeira parte, o advogado de Bolsonaro, Celso Villardi, evitou jornalistas. Já o defensor de Mauro Cid, Cezar Bitencourt, mostrou-se efusivo: afirmou estar feliz por “defender o Estado Democrático de Direito” e não escondeu a preocupação com a delação premiada de seu cliente. Ao cumprimentar os ministros, exagerou nos elogios e chegou a chamar Luiz Fux de “atraente”, arrancando risos e comentários irônicos entre repórteres.

Outros defensores também buscaram teatralidade. O advogado de Alexandre Ramagem tentou dissociar seu cliente da trama golpista com tom quase cinematográfico: “eles arquitetaram, planejaram, organizaram, tentaram… MAS RAMAGEM NÃO”. Recebeu, porém, corte seco da ministra Cármen Lúcia: “Uma coisa é eleição com processo auditável, outra é voto impresso. Vossa senhoria usa como se fosse a mesma coisa. Isso é dito para criar confusão na cabeça do brasileiro e colocar em xeque o sistema eleitoral”.

O advogado do almirante Almir Garnier gastou longos minutos elogiando o currículo dos ministros do STF, em tom interpretado como bajulação. Chegou a lembrar que cigarros funcionam como moeda de troca nas prisões, oferecendo-se a levar o produto para Bolsonaro caso condenado.

Defesas divididas e recados firmes do STF

A defesa de Anderson Torres, conduzida por Eumar Novacki, buscou robustez nos argumentos: negou envolvimento de seu cliente e apresentou documentos de viagem planejada meses antes do 8 de janeiro. Afirmou ainda que a “minuta do golpe” não tinha valor jurídico. O discurso, porém, não afastou a lembrança de que o ex-ministro era secretário de Segurança do DF quando ocorreu a invasão aos Três Poderes.

No plenário, Moraes foi incisivo. Afirmou que o julgamento não pode ser confundido com autoritarismo: “A pacificação depende do respeito à Constituição, das leis e do fortalecimento das instituições, e não da covardia do apaziguamento”. O ministro ainda rebateu pressões externas: “A soberania nacional não pode, não deve e jamais será vilipendiada, negociada ou extorquida”.

O papel da PGR e a acusação de trama golpista

Coube a Paulo Gonet reforçar a espinha dorsal da acusação. “Não é preciso esforço intelectual extraordinário para reconhecer que, quando o presidente da República e depois o ministro da Defesa convocam a cúpula militar para apresentar documento de formalização de golpe de Estado, o processo criminoso já está em curso”, disse.

Gonet listou manuscritos, mensagens, gravações de reuniões ministeriais e discursos públicos como provas. Ressaltou que não punir tentativas de golpe é abrir espaço para novos atentados contra a democracia. “O recrudescimento do autoritarismo ocorre quando não há responsabilização”, afirmou.

Julgamento de Bolsonaro no STF: Brasil enfrenta o passado e diz não ao golpe
Marcelo Camargo/Agência Brasil

Consequências para militares e para o bolsonarismo

As possíveis condenações vão além da prisão. Especialistas em direito militar lembram que, em caso de penas superiores a dois anos, os réus militares podem perder patentes. O processo envolve trâmites em Conselhos de Justificação das Forças, mas o efeito político é imediato: o Brasil pode assistir à primeira perda formal de postos militares de alta patente por crimes contra a democracia.

O julgamento também redefine o futuro do bolsonarismo. Jair Bolsonaro já está inelegível até 2030, mas agora enfrenta o risco real de prisão e de entrar para a história como o primeiro ex-presidente condenado por tentativa de golpe. Para muitos analistas, a responsabilização rompe um ciclo de impunidade que atravessou gerações, do golpe de 1964 aos atentados do Riocentro em 1981.

Se condenado, Bolsonaro se tornará símbolo de um divisor de águas: a transição de um Brasil marcado pela impunidade para um país capaz de afirmar que democracia não é negociável.

Como e quando assistir? (box lateral)

Você pode acompanhar o julgamento no site e no canal do PT no YouTube, com transmissão oficial do STF.

O Supremo recebeu mais de 3,3 mil inscrições de pessoas interessadas em assistir presencialmente, mas apenas 150 lugares foram disponibilizados.

As sessões estão programadas para:

·       2/9, terça-feira (9h–19h)

·       3/9, quarta-feira (9h–12h)

·       9/9, terça-feira (9h–19h)

·       10/9, quarta-feira (9h–12h)

·       12/9, sexta-feira (9h–19h)

*Colaborou Kriska Karvalho, de Brasília (DF)