Ligiana Costa e as vozes que o tempo tentou calar
Cantora, compositora e musicóloga, Ligiana Costa estreia como diretora no prestigiado Théâtre du Châtelet, em Paris, com um espetáculo que resgata trajetórias apagadas de mulheres negras na música brasileira

Artista de múltiplas linguagens, Ligiana Costa transita com fluidez entre o canto barroco, a música popular, a pesquisa acadêmica e a dramaturgia contemporânea. Sua estreia como diretora no Théâtre du Châtelet, em Paris, um dos palcos líricos mais prestigiados do mundo, marca não apenas um novo momento de sua carreira, mas também um gesto político e poético: dar voz a duas cantoras negras brasileiras que a história tentou calar.
Mais do que um concerto, trata-se de uma homenagem poético-documental a duas cantoras líricas negras brasileiras cuja trajetória foi silenciada pela história: Joaquina Maria da Conceição Lapinha, do século XVIII, e Maria D’Apparecida, falecida em 2017. A obra integra a programação oficial do Ano do Brasil na França e é uma coprodução entre os dois países.
Na direção de Marias do Brasil, Ligiana Costa assina também a dramaturgia, em parceria com Sofia Boito. Cantora, compositora, musicóloga e autora premiada, Ligiana possui formação em canto lírico e doutorado em ópera veneziana do século XVII.
Sua trajetória híbrida cruza ecoestética (buscando criar ambientes de aprendizagem que promovam a sensibilidade, a conexão com a natureza e a responsabilidade socioambiental), decolonialidade, teatro e pensamento crítico. Já passou por instituições como o Conservatório Real de Haia e a Juilliard School (prestigiada escola de música, dança e dramaturgia de Nova Iorque), e é autora de “Córrego” (Flaiano/Itália, 2018), obra de musicologia com a qual venceu prêmio internacional. Ao recebê-lo, fez história ao erguer um xale com a faixa “Free Lula”, gesto que repercutiu em diversos países.
“São duas mulheres, duas brasileiras, duas negras, com realidades curiosamente muito parecidas, mas em séculos muito distintos”, explica a diretora.
O desafio foi criar uma dramaturgia que cruzasse suas histórias, não como representação biográfica, mas como ressonância artística. O espetáculo é protagonizado por dois grandes nomes da cena lírica brasileira: Bruno de Sá, sopranista, e Luanda Siqueira, soprano radicada em Paris.
Silêncios reconstruídos por um repertório que atravessa séculos
Maria D’Apparecida, nascida no Rio de Janeiro, foi a primeira mulher afro-brasileira a interpretar Carmen, de Bizet, na França. Faleceu em Paris, em 2017, e permaneceu dois meses no IML, sem que seu corpo fosse reclamado, episódio que trouxe à tona sua história esquecida. Já Joaquina Lapinha brilhou em Portugal e foi descrita pela Gazeta de Lisboa como uma artista de “voz de grande extensão e extrema agilidade.
Embora tenha alcançado notoriedade no século XVIII, nunca teve seu rosto retratado, o que, para Ligiana, é símbolo do apagamento racial e histórico dessas vozes.
Na dramaturgia, as duas trajetórias são entrelaçadas por narração da atriz Camila Pitanga e por um repertório que percorre séculos da música brasileira. A trilha inclui desde composições barrocas até modinhas e peças contemporâneas, entre elas obras de José Maurício, Villa-Lobos, Waldemar Henrique e Alberto Nepomuceno. A proposta não é reencenar as cantoras, mas celebrar o que representaram e o que reverberam.
“Este espetáculo nasce da ausência: da Lapinha, que nunca teve imagem; e da D’Apparecida, que foi esquecida mesmo em vida. Trabalhar com essas lacunas é também uma forma de reconstruir a nossa história”, afirma Ligiana.
Leia abaixo trechos da entrevista de Ligiana Costa à Revista Focus para este perfil. A entrevista completa está disponível no YouTube.

Ligiana, falando sobre esse concerto poético documental que você dirigiu, Marias do Brasil, que estreou em Paris, esse foi um projeto que aconteceu para participar do Ano do Brasil na França? Como foi a recepção do público?
Este concerto faz parte do Ano do Brasil na França, inclusive, ele foi organizado, digamos assim, com a produção da própria Embaixada Brasileira. E eu fiquei muito feliz, porque, na realidade, esse concerto partiu de uma ideia de um brasileiro que mora em Portugal há muitos anos, o Ricardo Bernardes, que tem uma orquestra dedicada ao repertório brasileiro do século XVIII, chamada América Antiga, e a ideia dele era fazer, no Teatro Châtelet – que é um dos teatros mais importantes do mundo – um fim de semana dedicado à música brasileira, um concerto em homenagem à memória de duas grandes cantoras líricas negras brasileiras. Uma delas é a Joaquina Lapinha, nossa primeira grande diva do Brasil, que viveu no século XVIII, e a outra é a Maria D’Apparecida, uma cantora carioca negra também, que faleceu em 2017. Ou seja, duas cantoras com realidades curiosamente muito parecidas – afinal, duas mulheres, duas brasileiras, duas negras – mas em séculos completamente distintos. O desafio foi exatamente criar essa dramaturgia entre as duas figuras e montar esse espetáculo que acabamos de estrear. Agora a esperança é que ele circule tanto pela Europa quanto pelo Brasil – esse é o plano. Contamos com dois grandes cantores brasileiros: o Bruno de Sá, para quem eu criei meu primeiro espetáculo como diretora no ano passado, o “O Grão da Voz”, e a maravilhosa Luanda Siqueira, uma cantora carioca negra que mora em Paris há muitos anos. A recepção foi absolutamente impressionante, sem falsa modéstia, fomos ovacionados no Châtelet, um teatro conhecido por seu público exigente. Sabemos que na França raramente se vê plateias se levantando para aplaudir de imediato, mas tivemos uma acolhida entusiasmada e profundamente emocionada. Trazer à tona a história dessas duas artistas negras brasileiras – cada uma apagada pelo tempo à sua maneira, cada uma silenciada pelo contexto histórico em que viveu – em um templo da ópera como o Châtelet, foi uma experiência de tirar o fôlego. Trabalhamos com músicas separadas por séculos, unidas pela dramaturgia narrada pela voz poderosa da Camila Pitanga, um verdadeiro luxo ter seu talento conosco. Estou feliz por estrear nesse lugar de diretora criadora, não exatamente de óperas tradicionais, mas de espetáculos líricos que exigem casas de ópera (com orquestra, com uma abordagem vocal distinta da música popular). É um território novo, híbrido, e parece estar ressoando de forma muito especial.
E o roteiro é seu também, né?
O roteiro e a dramaturgia surgiram a partir do trabalho fundamental do maestro Ricardo Bernardes – um musicólogo excepcional que tem resgatado esse repertório brasileiro, especialmente do século XVIII. Mas é importante destacar que tive o privilégio de contar com a colaboração das duas maiores especialistas na vida dessas cantoras: Rosana Orsini Brecha, pesquisadora brasileira radicada na Espanha, que se dedica a estudar a Lapinha e outras cantoras líricas negras do século XVIII, e sim, havia várias, algo que muitos desconhecem; e Mazé Chotil, jornalista brasileira residente na França há décadas, que foi a primeira a investigar, quase de forma militante, a vida de Maria D’Apparecida. Quando Maria faleceu em 2017, seu corpo ficou dois meses no IML. É uma história que parece saída de uma ópera trágica – o completo abandono no momento final, sem família, sem alguém que a reclamasse. Essa dimensão de esquecimento, ainda em vida e após a morte, foi crucial para nossa abordagem dramatúrgica. Isso também é, obviamente, síndrome ou sintoma, talvez, do próprio racismo, pois era filha de uma empregada doméstica, adotada, mas não formalmente, por uma família branca. Essa informalidade na adoção significou que, legalmente, ela não tinha familiares que pudessem reclamar seu corpo, isso despertou a comoção no meio lírico brasileiro e fez com que sua história viesse à tona. Foi na morte que sua vida ganhou visibilidade. A Mazé Chotil, que hoje se dedica a reconstruir sua biografia, tomou conhecimento dela justamente por conta desse episódio doloroso.
Por que a decisão de escolher um sopranista para fazer esse repertório? Você recebeu alguma crítica nesse sentido?
Em primeiro lugar, este não é um concerto, nem um espetáculo biográfico, os dois cantores não estão interpretando as personagens Joaquina Lapinha e Maria D’Apparecida. Este é um concerto de dois grandes artistas brasileiros que têm relevância. Bruno de Sá talvez seja o maior nome lírico brasileiro da atualidade, ele acabou de fazer história como primeiro brasileiro a se apresentar no concerto do 14 de Julho em Paris, cantando Bachianas na Torre Eiffel, aliás, era para essa notícia estar no Fantástico, e não sei como é que não estava. Ter o Bruno neste projeto foi um privilégio – ele estava com a agenda sobrecarregada, mas topou participar. E temos também a extraordinária Luanda Siqueira. São dois artistas brasileiros não-brancos celebrando a existência dessas mulheres, mas sem encarná-las. Não há aqui reconstituição histórica ou dramatização biográfica. São vozes contemporâneas dialogando com esse legado. E isso é fundamental: são artistas de relevância internacional sendo eles mesmos, trazendo sua própria identidade artística para esse tributo. Não se trata de representação, mas de ressonância e essa distinção é essencial para entender a proposta do espetáculo. Este espetáculo nasce da ausência do rosto desaparecido da Lapinha. Enquanto outras cantoras dos séculos XVII e XVIII foram retratadas em pinturas e retratos, ela nunca foi imortalizada em imagem. Para nós que pesquisamos a história da música brasileira, essa omissão é gritante – e, na minha opinião, gritantemente racista. Já no caso de Maria da D`Apparecida, conhecemos seu rosto belíssimo, mas seu apagamento se deu por outro viés: o esquecimento puro e simples. A imagem de divulgação é uma criação do artista brasileiro Rodrigo Bueno, parte da exposição que virou livro, Enciclopédia Negra, um projeto fundamental que resgata personalidades negras brasileiras históricas cujos rostos se perderam no tempo. Artistas contemporâneos foram convidados a imaginar e recriar essas figuras através de pinturas, esculturas e outras formas de representação. E aqui está o paradoxo mais cruel: mesmo nesta exposição dedicada a resgatar vidas negras apagadas, a Lapinha foi mencionada, mas não retratada. Foi excluída mais uma vez. Quando descobri isso, foi um choque. Nossa dramaturgia, que eu e a Sofia escrevemos, vai muito por esse lugar, um lugar que é um pouco da pesquisa e da própria imaginação.
A revista Concerto fez uma crítica sobre o trabalho, e tem uma passagem que diz que as vozes “foram reconhecidas em vida, não sobreviveram ao tempo e não as preveniram que fossem apagadas da história”. A que você atribui esse desconhecimento e essa postura dos grandes corpos musicais brasileiros de não explorarem esses autores, de não trazerem compositores daquele período, explorando nomes como o Emérico Lobo de Mesquita, por exemplo. Por que você acha que a gente não consegue quebrar essa barreira de que a música clássica tem que ser sempre a música europeia branca?
Você mesma falou, acho que temos um pouco dessa síndrome de vira-lata… Mas veja, há vários motivos. Primeiro, não é sempre que essa música é boa simplesmente porque é nossa, porque é maravilhosa por si só. Pra mim, uma das grandes qualidades deste trabalho é justamente conseguir misturar repertórios distintos, desde o barroco brasileiro de José Maurício (que, cá entre nós, confesso ter certa dificuldade em apreciar plenamente) até os compositores com quem me identifico mais Villa-Lobos, Alberto Nepomuceno, Waldemar Henrique, com os quais me sinto mais próxima, em termos de criação, de sonoridade. Esse tipo de espetáculo, exatamente a qualidade que ele tem, é que conseguimos misturar uma modinha com o repertório mais contemporâneo brasileiro, mais próximo da gente, e aí vai ficando tudo mais gostoso, porque você não fica só em um período, travado, é um vai e vem, que é também a beleza do Brasil. Tem essa coisa de você celebrar o passado, mas sempre comemorando o presente, sabe? Sinceramente, acho que a gente vê uma melhora interessante, de maior perspectiva, mais estudiosos se debruçando sobre esses repertórios todos do Brasil, mais interesse também de quem realiza a pesquisa, de quem faz edições críticas. Porque eu me lembro quando eu comecei a estudar música antiga e que eu começava a frequentar os cursos de música antiga pelo Brasil, que era tudo muito novo, a gente estava se aproximando desse repertório. Eu lembro do Paulo Castanha, das primeiras palestras dele, eu sou super fã dele. Até hoje eu sempre falo para ele que é um dos meus mentores. E eu mesma, se você pensar, eu fui estudar musicologia, mas eu não me dediquei à música brasileira. Minha dedicação é à música europeia do século XVII. Foi o meu caminho. Enfim, eu acho também que é interessante esse vai e vem, entre todas essas possibilidades, mas tem um um pouco de síndrome de vira-lata.
Você tem uma carreira muito versátil, você é cantora lírica, você fez música eletrônica, você tem samba gravado que você escreveu com seu pai, você fez um projeto de usar a voz como instrumento, enfim. Então, agora o que você está pensando para o próximo período e como foi a experiência de ficar no backstage, de não estar lá na frente do palco?
Olha, essa é a pergunta que o meu psicanalista tá querendo responder e eu também, há algum tempo. Bom, primeiro que eu acho que a história da cantora, é muito difícil. Meu último trabalho, último no sentido de mais recente, espero que não seja o último da vida, chamado Sá, Um Oratório para a Terra é um trabalho complexo, muito importante para os tempos atuais porque fala sobre o planeta, mas é difícil do ponto de vista da formação: tem um coro no palco, uma dançarina, mais quatro cantores solistas… Não é uma coisa que você monta de qualquer jeito, em qualquer lugar. E aí vem a frustração: eu fiz o espetáculo uma vez, num dia só, e nunca mais consegui colocá-lo no palco. Fiz Lei Rouanet, não consegui captar recursos, bati na porta do SESC, mas ninguém comprou. Então tem esse lado meu meio frustrado, como cantora, de perceber que meu trabalho mais recente – que foi um estrondo no único dia que apresentei – não circulou. Porque realmente é um trabalho muito bonito, a melhor coisa que eu já fiz na vida.
Eu tenho feito até a ponte entre o popular e o erudito de uma forma muito interessante, por ser uma artista que está um pouco no meio do caminho entre teatro ou é música, dança ou é música, erudito ou popular, fica tão no meio do caminho que as pessoas não conseguiram encaixar e eu não consegui vender o trabalho. Então, tem um lado meu um pouco frustrado, querendo voltar a estar no palco, com dificuldades de estar no palco. O que tenho dirigido são criações minhas, então acabo assinando como criadora também. E sabe? Nesse sentido, me sinto incrivelmente realizada como artista. Não é uma sensação de falta, pelo contrário! Tenho adorado estar no backstage. Quando vejo o resultado lá do palco, penso: Nossa, isso também sou eu!. Descobri uma forma nova de existir artisticamente. Claro, não quero abandonar as outras facetas como cantora, compositora. Mas encontrei mais uma possibilidade de atuação. Pra ser sincera, não me vejo fazendo outra coisa que não seja arte. Vender imóvel? Cozinhar para encomenda? Minha cabeça não dá, já tenho trabalho suficiente com o que faço. Mas expandir meu território como criadora? Isso sim me deixa feliz da vida.
E sem que te aborrecer muito, eu queria ouvir o que é que você está pensando, sobre esse momento que a gente está vivendo no Brasil, qual é a sua expectativa para esse período, porque também essa coisa do complexo de vira lata acaba afetando de alguma forma os artistas, a música, etc. E teve um resgate nos últimos dois anos pra cá, que deve ter afetado também a sua produção, o seu trabalho, a sua vida, de uma forma geral.. Enfim, então, como é que está essa questão pra você, que sempre foi uma artista muito vocal quanto e sempre se posicionou.
Olha, eu vou te falar uma coisa que você vai ficar, talvez, chocada, mas todos os dias, eu ouço algum canal de esquerda no Brasil, eu tenho esse hábito. E é estranho, mas, eu tenho sentido que ouvir essas coisas, pra mim, atualmente, é quase um alívio, porque é quase uma piada perto do que a gente está vendo em relação ao genocídio palestino. Na verdade, é bom que tudo esteja vindo à tona, que a verdadeira face dessas figuras esteja finalmente sendo revelada para os seus seguidores, e que isso ainda vai trazer mais esgoto à tona e eu quero que ele venha à tona mesmo. Essa situação com o Trump, sinceramente, eu acho que eles deram uma bola fora gigantesca, a família Bolsonaro, porque acabou unindo o Brasil. Mas, repito, pra mim é quase leve ouvir isso, eu fico até quase rindo quando eu ouço as histórias do Eduardo Bolsonaro, é meio Os Trapalhões. Porque a gente está vivendo uma coisa que, pra mim, ultrapassou tanto o que eu esperava do ser humano e da humanidade, mas ultrapassou num tanto, que tem horas que eu não consigo entender como é que a gente está existindo. Eu não consigo compreender como é que tem tanta gente calada. Eu não consigo compreender como é que a gente está aqui conversando sobre música, sim, tudo tem seu lugar de interesse, mas eu tenho muita dificuldade, e esse talvez seja o meu grande ponto de complexidade até humana, que é esse de existir enquanto tudo isso está acontecendo, comer um prato de macarrão, pegar a minha gatinha no colo. Tudo parece que ganha um contorno tão diferente, que eu, sinceramente, não estava preparada pra viver, nessa existência, sabe? Isso é tão, tão pequeno perto do horror, que estamos sendo obrigadas a presenciar e a testemunhar, que vira quase uma blogueira falando de maquiagem na internet. Não estou diminuindo o que a gente viveu, sabemos que somos vítimas. Esses dias eu estava ouvindo o Bolsonaro lá falando, eu estava pensando, meu Deus, quanta gente eu perdi na Covid, que loucura que foi aquilo que a gente viveu, que humilhação, que coisa horrível, a gente não esquece, né? E eu acho que cabe a todos nós não esquecer mesmo, mas eu diria que isso ganha pra mim um novo contorno nos últimos dois anos.