“As cotas mudaram o Brasil universitário”, afirma socióloga; estudo aponta que negros e pobres já são maioria nas universidades públicas
Organizado por Márcia Lima e Luiz Augusto Campos, O Impacto das Cotas traz dados inéditos sobre inclusão e permanência no ensino superior

As ações afirmativas modificaram radicalmente o perfil das universidades públicas brasileiras nas últimas duas décadas. É o que revela o livro O Impacto das Cotas: Duas décadas de ação afirmativa no ensino superior brasileiro, organizado pelos sociólogos Luiz Augusto Campos e Márcia Lima e publicado pela editora Autêntica, na coleção Cultura Negra e Identidades.
A obra mostra que, entre 2001 e 2021, a presença de estudantes pretos, pardos e indígenas nas universidades públicas saltou de 31,5% para 52,4%. Já os alunos das classes D e E passaram de 20% para 52% dos matriculados no mesmo período, evidenciando também a dimensão econômica da mudança.
Segundo Márcia Lima, que foi secretária de Políticas de Ações Afirmativas do Ministério da Igualdade Racial, o estudo foi pensado para responder a perguntas fundamentais: negros e pobres estão de fato ingressando nas universidades públicas? Eles conseguem se formar? Seu desempenho é diferente do de estudantes não cotistas?
“A conclusão da investigação é que, por tratar-se de uma lei voltada a pessoas oriundas das escolas públicas, os mais pobres estão, sim, entrando na academia. Isso muda tudo. A universidade pública deixou de ser patrimônio da elite branca brasileira e hoje realmente se justifica o investimento público na educação superior”, afirma.
O estudo reúne textos assinados por cerca de 40 especialistas de diferentes regiões do país e formações acadêmicas. As análises são resultado de um consórcio nacional de pesquisadores da Uerj, UFRJ, UnB, UFBA, Unicamp, UFMG e UFSC, sob a coordenação do Afro Cebrap e do Gemaa/Iesp-Uerj.
Desempenho acadêmico derruba preconceitos
Um dos principais mitos enfrentados pelas políticas de ação afirmativa diz respeito ao desempenho dos cotistas. O levantamento mostra que, embora ingressem com notas ligeiramente menores no Enem, essa diferença desaparece ao longo do curso. Em instituições como UFSC, UFMG e UFRJ, a performance acadêmica, medida por notas semestrais globais, revela níveis equivalentes entre cotistas e não cotistas.
Outro dado relevante refere-se à evasão: as taxas de desistência são similares entre cotistas e não cotistas. Homens, especialmente homens negros, apresentam maior risco de abandono, independentemente da forma de ingresso. O dado reforça a necessidade de políticas de permanência estudantil mais robustas e articuladas.
O caso do ProUni também foi analisado. Nele, os estudantes precisam ter aproveitamento em ao menos 75% das disciplinas para manter a bolsa. “Os prounistas [egressos do programa do MEC ProUni] acabam sendo alunos com notas maiores e menos desistência do que os não beneficiários do programa”, aponta a socióloga Márcia Lima.

Para a pesquisadora, a diversidade é benéfica não apenas para a inclusão, mas para a própria ciência. “Muitos estudos atestam que o conhecimento produzido com diversidade abre perspectivas. Quando você forma um cientista, um professor, um engenheiro, essa pessoa será melhor profissional se vier de um espaço onde tenha vivido a diversidade.”
Novos desafios e uma nova geração
Professora universitária há três décadas, Lima aponta também transformações geracionais no ensino superior. “Existem mudanças que não estão diretamente ligadas às ações afirmativas, mas sim ao momento. Hoje, damos aula com TikTok, Instagram e inteligência artificial. É uma outra lógica, uma nova forma de relação com o conhecimento.”
Desde 2023, a nova Lei 14.723/23, que atualiza a Lei de Cotas, está em vigor. A reformulação reduziu o limite de renda para acesso às reservas de vagas e incluiu estudantes quilombolas entre os beneficiários.
A pesquisadora participou da redação do novo texto legal e avalia que ele respondeu às críticas feitas à versão anterior. “Reduzimos o corte de um salário e meio para um salário mínimo per capita, o que amplia o alcance da política. Outro avanço é que, se o candidato cotista tem nota para a ampla concorrência, ele entra por essa via, liberando a vaga para outro cotista.”
Apesar dos avanços, a permanência ainda é o principal desafio. “O governo Lula recuperou bastante o investimento em programas de permanência e assistência estudantil, mas a gente sabe que os valores e as bolsas ainda são insuficientes”, pondera.
Para Márcia Lima, outro ponto essencial é entender como a presença de novos públicos impacta a docência. “Saber como meus colegas olham, entendem e dão sentido a essa mudança em sua própria carreira docente é fundamental. Porque o preconceito racial dentro da sala de aula, as cotas não resolvem”.

O impacto das Cotas – Duas décadas de ação afirmativa no ensino superior brasileiro (2025)
Org.: Luiz Antonio Campos e Márcia Lima
272 páginas
Ed. Autêntica – Coleção Cultura Negra e Identidades