Ao lado de líderes do Chile, Colômbia, Uruguai e Espanha, na reunião “Democracia Sempre”, no Chile, Lula afirma que a defesa da democracia exige enfrentar a desigualdade, regular redes sociais, combater a desinformação e cobrar dos super-ricos sua contribuição com justiça tributária e bem-estar coletivo

Em Santiago, Lula chama super-ricos à responsabilidade democrática
Ricardo Stuckert

A América Latina conhece de perto o gosto amargo dos golpes. Sob o peso de botas, torturas e censuras, a região aprendeu, com o corpo, que a democracia é um bem conquistado e frágil. Por isso, não hesita quando sente o cheiro de retrocesso. E foi em Santiago, no Chile, na emblemática sede de La Moneda, que cinco chefes de Estado se reuniram nesta segunda-feira, 21 de julho, para reafirmar o que não pode ser negociado: a liberdade, a justiça social e o direito de viver em paz.

A reunião de alto nível Democracia Sempre foi convocada pelo presidente chileno Gabriel Boric, com apoio direto de Luiz Inácio Lula da Silva e do primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez. Estiveram presentes também os presidentes Gustavo Petro (Colômbia) e Yamandú Orsi (Uruguai). O evento, embora planejado antes da recente escalada de agressões por parte de Donald Trump, como o tarifaço de 50% contra o Brasil, ganhou urgência e densidade política diante do novo ciclo de ameaças.

“O mundo vive uma nova ofensiva antidemocrática”, alertou Lula. Sem citar Trump diretamente, o presidente brasileiro denunciou práticas intervencionistas e cobrou ação conjunta contra a desinformação, o ódio nas redes e o avanço de extremismos. “A defesa da democracia não cabe somente aos governos. Requer participação ativa da academia, dos parlamentos, da sociedade civil, da mídia e do setor privado”, afirmou.

Superar desigualdades é proteger a democracia

No discurso que emocionou lideranças presentes e ganhou destaque na imprensa internacional, Lula retomou um de seus temas centrais: a desigualdade social como inimiga da democracia. “Não há justiça em um sistema que amplia benefícios para o grande capital e corta os direitos sociais. O salário médio global de um presidente de multinacional é 56 vezes maior do que o de um trabalhador”, denunciou.

O presidente defendeu justiça tributária, o fortalecimento do G20 com a Aliança contra a Fome e a Pobreza e a cobrança de maior responsabilidade dos super-ricos. “Sem um novo modelo de desenvolvimento, a democracia seguirá ameaçada por aqueles que colocam seus interesses econômicos acima dos da sociedade e da pátria”, concluiu.

Lula também convocou empresários brasileiros a pressionarem seus parceiros norte-americanos contra o tarifaço imposto por Trump. “Antes mesmo de o governo resolver, os empresários precisam conversar com seus clientes nos Estados Unidos. Quem vai sofrer com isso são eles mesmos”, declarou.

Outros líderes: “Ninguém se salva sozinho”

No único intertítulo da matéria, destacam-se também as falas dos demais participantes. O anfitrião Gabriel Boric afirmou que o evento “não é apenas simbólico, é político e concreto”, com foco em enfrentar o crime organizado, a desigualdade e o colapso ambiental. “Se de uma coisa estamos convencidos, é que ninguém pode se salvar sozinho.”

Yamandú Orsi defendeu uma democracia ancorada em temas reais: “Se aterrissarmos a proposta da democracia em questões que as pessoas possam sentir, estamos construindo um novo caminho.”

Gustavo Petro destacou o aprofundamento de consensos e a urgência de reconstruir o multilateralismo. Pedro Sánchez, por sua vez, foi direto: “Preservar e cuidar da democracia não é apenas uma questão jurídica. É um dever moral.”

Um pacto pela democracia

O grupo divulgou uma carta conjunta reafirmando o compromisso com o multilateralismo e os direitos humanos, a reforma da governança internacional, a paz global e o enfrentamento às novas ameaças digitais. Entre as ações propostas, estão a regulamentação dos algoritmos, o combate à desinformação e o fortalecimento da cooperação sobre integridade informativa e climática.

Lula citou ainda o simbolismo de estar no Palácio de La Moneda, onde Salvador Allende foi assassinado no golpe de 1973: “Nossos países conhecem de perto os horrores das ditaduras que mataram, perseguiram e torturaram. Democracias não se constroem da noite para o dia. Zelar pelos interesses coletivos é uma tarefa permanente.”

O grupo voltará a se encontrar em setembro, durante a Assembleia Geral da ONU, com presença já confirmada de outros chefes de Estado, como os primeiros-ministros de Reino Unido, Canadá, Dinamarca e Austrália. A defesa da democracia global, como alertaram em Santiago, “não pode esperar mais um dia”.