‘O funk é uma cultura de emancipação para as mulheres’, afirma pesquisadora
Em entrevista à Focus Brasil, a fundadora da Frente Nacional de Mulheres do Funk, Renata Prado, defende o funk como espaço de liberdade, denuncia a repressão do Estado e critica projetos de lei que criminalizam a cultura periférica
Rose Silva

Nascida e criada no Itaim Paulista, no extremo da Zona Leste de São Paulo, a dançarina, pesquisadora e produtora cultural Renata Prado costuma dizer que tem uma relação orgânica com o movimento funk, desenvolvida desde a adolescência, nos anos 2000. Começou a frequentar os bailes porque eram – e ainda são, praticamente, os únicos espaços culturais disponíveis nas periferias. “O funk dá esse espaço emancipatório. Ele permite que as mulheres sejam o que são”, afirma.
Formada em pedagogia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), foi na universidade que Renata teve contato com as frentes políticas, o movimento estudantil e participou da criação do Núcleo Negro Unifesp Guarulhos, ao lado de outros militantes e estudantes. Sua pesquisa acadêmica na área da educação abordou o funk no contexto da Lei 10.639, que trata do ensino da história afro-brasileira nas escolas. A partir de seus estudos, percebeu a ausência de políticas públicas voltadas à valorização desse movimento cultural periférico, marcado pela criminalização, pela repressão e por uma intensa resistência das mulheres negras que o constroem.
Frente Nacional de Mulheres do Funk
Inspirada pela Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop, Renata foi uma das fundadoras da Frente Nacional de Mulheres do Funk, que surgiu com o objetivo de criar diálogo com o poder público. Trata-se de um coletivo de mulheres negras das periferias de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Pernambuco, quatro estados onde o funk se consolida como fenômeno cultural, mas onde a política pública continua ausente. “A cultura funk não pode ser tratada como caso de polícia”, afirma.
Nesta entrevista, Renata fala sobre o papel do funk na emancipação das mulheres, a criminalização da juventude periférica e o avanço de projetos de lei que tentam censurar artistas que expressam as contradições sociais vividas nas quebradas. “Estão querendo punir mais uma vez o jovem por uma responsabilidade que não é dele.”
Muitas pessoas veem o funk como um espaço de objetificação do corpo feminino. O que você pensa a respeito disso? É uma forma preconceituosa?
Eu acredito veemente que o funk seja uma cultura de emancipação para as mulheres, particularmente aqui, um país onde tudo que se diz sobre vivência feminina acaba se tornando tabu: o corpo, a sexualidade, o erotismo. E isso também faz parte de um processo de manipulação da nossa sociedade. As mulheres estão nesse foco de manipulação social, e quando aparece o funk dizendo que elas podem usar a roupa que quiserem, comportar-se como quiserem, dançar e cantar o que quiserem, começa a ruptura de alguns tabus. Por isso eu acredito que o funk é emancipatório, justamente por abrir espaço para as mulheres serem o que são. Hoje as mulheres do funk têm uma postura muito mais libertária dentro de suas escolhas. Quando se fala no geral do comportamento feminino, principalmente dentro do movimento funk, naturalmente entende-se que essas mulheres não são capazes de fazer suas escolhas sexuais e artísticas, ou que são manipuladas. Na verdade, nós escolhemos falar sobre sexo, mostrar os nossos corpos, decidimos fazer parte dessa cultura. Não existe nada que viole o nosso direito de escolha. Se hoje as mulheres estão falando sobre sexo, liberdade econômica, rompimento de relacionamento abusivo, entre tantas outras pautas colocadas nas músicas de funk, por exemplo, é porque ele dá esse espaço emancipatório. E quando eu trago essas reflexões, estou pensando em mulheres adultas. Acho que é muito importante a gente dizer isso, porque quando se fala do funk a partir da conotação sexual, do erotismo, é importante destacar que são mulheres adultas que escolhem consumir esse tipo de arte e isso precisa ser respeitado.
Agora, quando a gente olha para uma juventude que consome um tipo de conteúdo que talvez não seja indicado para determinada idade, é importante entender que falta educação dentro do ambiente escolar. Se hoje há jovens que acessam questões sexuais a partir do funk de uma forma que não seja socialmente adequada, entendo que falta uma educação sexual e que isso tem que ser resultado de políticas públicas. O que será que o Ministério da Saúde faz para pensar uma educação sexual voltada para a juventude do funk? O que a Secretaria de Educação pensa no plano pedagógico para falar sobre educação sexual nas escolas, voltada para a juventude do funk? Por isso é muito importante a gente pensar o funk a partir dessas perspectivas, de políticas públicas com foco na cultura para as mulheres no sentido libertário. E quando se trata de meninas e adolescentes que consomem esse tipo de música, é necessário olhar para as perspectivas educacionais. Cercear não é o melhor caminho, educar é o melhor caminho. A participação feminina do funk não fica restrita ao campo da sexualidade. Se hoje o mercado de trabalho exclui as mulheres, existe um mercado dentro do funk que as acolhe. Temos DJs, dançarinas, MCs, produtoras que vivem, economicamente falando, das suas profissões dentro dessa cultura. Outro ponto é o campo da formação política. Vivemos numa sociedade onde as mulheres não têm tantos direitos. Então, para pensar que o funk é um caminho de possibilidades, é preciso entender que essa cultura emancipa as mulheres dentro do grupo.
Observa-se uma prática de repressão ao funk hoje que é muito similar à ocorrida com outras manifestações culturais afro-brasileiras no passado e no presente. O rap passou por isso, o samba, a capoeira. Como é que o movimento se organiza para enfrentar essa repressão?
Hoje o movimento funk está organizado mediante todos esses ataques justamente porque compreendemos que passa por diversas nuances de perseguição dentro de sua história. Desde a primeira CPI do funk, em 1999 no Rio de Janeiro, até o entendimento do funk pela mídia como fenômeno cultural, no início dos anos 1990, no Rio, quando fica muito claro ser uma cultura voltada para jovens negros da periferia. E quando o Estado entende o funk como cultura, lá em 1992, começa a se perseguir essa cultura. O impacto disso foi a criminalização dos bailes de corredor que resultou na CPI do funk. No início dos anos 2000, a gente teve a perseguição dos funkeiros na Baixada Santista. Depois, em 2010, a perseguição com os jovens funkeiros no extremo Leste de São Paulo, no rolezinho, um fatídico dia em que a juventude marcou pela rede social encontros no Shopping Itaquera e isso se tornou um problema para esse espaço. Então, começa uma violência, uma perseguição a esses corpos de jovens funkeiros. Depois tivemos prisões arbitrárias, como sempre houve na história do funk. E hoje lidando com a lei anti-Oruan, a CPI dos pancadões, a gente teve a morte dos nove jovens no baile da DZ7 em Paraisópolis, em dezembro de dois mil e dezenove, pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, na prefeitura do Covas. Trata-se de uma perseguição do Estado com essa juventude, que tem cor e tem classe. Penso que é preciso pensar quais são os caminhos a seguir para fazer com que essa perseguição não aconteça e que o movimento funk se organize para fazer o enfrentamento. Mediante todas essas medidas inconstitucionais, assim eu as enxergo, com a Polícia Militar perseguindo um movimento cultural, estamos com um problema muito grande. Temos a Frente Nacional de Mulheres do Funk, um coletivo autônomo, e a Frente Estadual Parlamentar do Funk, que surgiu no ano passado, resultando em articulações entre movimento funk, organizações da sociedade civil que dialogam com o movimento e representantes do poder público. No caso, a parlamentar que responde pela Frente Nacional de Mulheres do Funk é a Ediane Maria, do PSOL, uma parlamentar que convidou o movimento para dentro do gabinete para a gente fazer essa construção, e resultou em um espaço democrático para fazer esse enfrentamento político. Posso dizer que o movimento funk está se organizando de uma forma orgânica por conta dessa repressão massiva que vem sofrendo historicamente, pois é a primeira vez que um projeto de lei atua nacionalmente para perseguir uma cultura. O funk é muito diferente do movimento hip hop, porque o ar de politização dentro do hip hop já é algo que vem da sua cultura. O movimento funk surge de um lugar muito despretensioso, politicamente falando, e hoje nós temos de lidar com essas questões políticas.
Como atua o projeto de Lei Antioruan?
Ele tem o propósito de fazer com que artistas da periferia que cantam as suas vivências não sejam contratados com recursos do poder público em casas de cultura, apresentações, shows e afins. A Lei Anti-oruan está sendo construída com base na moral e nos bons costumes, pois o que está colocado nesse projeto de lei já existe constitucionalmente falando. Em relação a crianças e adolescentes, encontramos isso no ECA. Sobre a questão da garantia de direitos, do cuidado, do dever do Estado com a juventude, a gente encontra no Estatuto da Juventude. Quando se trata de questões da juventude negra, há vários documentos que garantem a política no seu campo de constituição cultural. Então, já existem projetos de leis que cuidam da cidadania da criança e do adolescente. Um projeto como a lei Anti-Oruan retira o direito de jovens funkeiros e do rap, pois trata do funk do trap, que faz parte da cultura hip hop, justamente para perseguir culturas que são altamente consumidas por jovens da periferia. Ela persegue a partir dessa leitura de que são músicas com apologia ao crime, conotação sexual ou algo que se entende não ser de “bom tom”, e por isso não vão mais ser contratados. Um classismo absurdo, um racismo absurdo, porque esses jovens estão cantando em suas letras somente aquilo que está dado socialmente. Então, se há parlamentares incomodados com as letras de músicas que estão sendo cantadas, eles precisam trabalhar para fazer com que a sociedade fique livre da violência que os jovens cantam em suas músicas. Porque se hoje vivemos numa sociedade violenta, não é por conta do funk, não é por conta do trap, e sim da governabilidade que leva a esse lugar. Esse projeto de lei busca proibir os equipamentos públicos de cultura a contratar esses artistas e na minha leitura como pesquisadora militante ativista e funkeira eu posso afirmar que isso é nada mais nada menos que uma estratégia racista de distanciar os jovens artistas dos seus direitos, porque eles têm direito de cantar a sua música, assim como o direito de ocupar o centro cultural da sua quebrada para isso. Não pode existir um projeto de lei que proíba um jovem de ser contratado para cantar a sua realidade. Então, estão querendo punir mais uma vez o jovem por uma responsabilidade que não é dele.
O crescimento da extrema-direita, cada vez mais fortalecida no Brasil e no mundo, tem afetado diretamente os jovens do funk. Mas, contraditoriamente, grandes produtores apoiam políticos de direita. Como você vê essa questão?
Quando a gente olha para a atual conjuntura política, percebe o avanço do neoliberalismo no mundo. E o funk não iria ficar de fora disso. Quando avança a cultura do neoliberalismo, isso vai impactar os jovens do funk, que não entenderam ainda a importância dos direitos trabalhistas, não acessaram universidades de qualidade, apesar das cotas, de programas como ProUni, Sisu e afins, ainda assim não é o suficiente para a juventude. Outro ponto é pensar que empresários não têm aval para construir política pública. Empresário precisa atuar no campo corporativo e repartição pública não é um espaço corporativo. Não existe motivo para empresários do funk dialogarem com o poder público para construir políticas públicas, isso é inconstitucional inclusive. Essa relação do empresariado com as instituições e o poder público são um problema. Existe uma parte do movimento funk que é contrária a essas articulações porque nós entendemos que quem desenvolve políticas públicas é o movimento, é a sociedade civil, juntamente com representantes do poder público. O empresário deveria atuar apenas dentro do campo corporativo. Mas, ainda assim, como falamos de um momento político onde o avanço do neoliberalismo está dado, naturalmente empresários só pensam em dinheiro, e vão dialogar com esses representantes do poder público para fazer os seus acordos em nome do movimento.
O funk contribui para a formação de lideranças periféricas no Brasil?
Sim, está acontecendo porque é necessário. Realmente, hoje, a gente está numa forte onda de perseguição da direita com o movimento funk. Isso faz com que se articule com esses representantes do poder público dispostos a dialogar, para começar a criar caminhos contra a repressão. A Frente Nacional de Mulheres do Funk surgiu em dois mil e dezessete, e a Frente Estadual Parlamentar do Funk no ano passado. Essas articulações são jovens, e diante de todo o histórico de perseguição com o movimento funk, eu acredito que é a primeira vez que sentimos isso nacionalmente. É muito importante a gente fazer esse debate com pessoas que compreendem o funk como cultura. O funk tem várias questões que eu acho, sim, precisam ser repensadas, ser construídas socialmente com atores da sociedade civil. A cultura funk não pode ser tratada como caso de polícia, assim como também o movimento funk não ignora as questões sociais que permeiam o baile funk, por exemplo. Então, é muito importante a gente entender que o movimento está aberto ao diálogo, para compreender qual é o tipo de baile funk a gente quer. Sabemos o que não queremos: a polícia invadindo e matando funkeiro em baile, em nome da ordem social. Fazendo debates como esse fica mais claro quais são as nossas proposições políticas. A gente quer construir uma sociedade melhor, que seja boa para todo mundo, a partir de uma visão cultural.