Luiz Carlos Azenha: “O alto grau de soberania cultural e tecnológica do Irã é surpreendente” 
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“Parece uma cidade brasileira”, diz Luiz Carlos Azenha ao lembrar da movimentação nas ruas de Teerã.Convidado por uma fundação local a integrar uma comitiva de jornalistas da América Latina, ele passou oito dias no Irã e voltou com uma visão surpreendente de um país muitas vezes reduzido, no Ocidente, a imagens militares e de repressão. O que encontrou foi uma sociedade em movimento, com jovens conectados, ruas cheias, lojas abastecidas e mulheres circulando sem hijab, mesmo com décadas de sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos.

“O Irã tem um alto grau de soberania cultural e tecnológica”, afirma. “Eles fazem seus próprios drones, mísseis, novelas, filmes e animações. Não importam conteúdo de fora, têm uma indústria própria.” A fala de Azenha aponta para um aspecto menos discutido do Irã: sua capacidade de produzir tecnologia e cultura de forma autônoma, mesmo diante do bloqueio econômico.

A viagem recente ao Irã rendeu impressões vívidas. Azenha esperava encontrar um país isolado e empobrecido pelas sanções impostas há décadas pelos Estados Unidos e Europa. Encontrou ruas movimentadas, comércio aquecido e jovens usando redes sociais por meio de VPN. “As lojas estão cheias. Vi mulheres sem hijab, o que me surpreendeu. Em Teerã, parece uma cidade do Brasil, com gente tirando selfies, indo ao cinema, frequentando parques”, relata. O jornalista destaca o orgulho nacional e a resistência iraniana como traços marcantes: “É uma sociedade que aprendeu a se virar. E tem muito orgulho de si mesma.”

Da televisão brasileira à edição artesanal

Reconhecido por uma trajetória de décadas no jornalismo televisivo, com passagens pela Globo, Manchete e Record, Luiz Carlos Azenha hoje vive uma fase mais artesanal de sua carreira. É ele quem roteiriza, filma, narra e edita seus próprios documentários para a Revista Fórum. Foi assim com Ato 18, sobre os atos golpistas de janeiro de 2023, que ultrapassou um milhão de visualizações.

“Tenho mais prazer hoje nesse trabalho, que é quase autoral, do que nas pequenas reportagens da televisão”, conta. Ele gravou toda a viagem ao Irã e está finalizando um novo documentário, com destaque para duas cenas: uma celebração religiosa em mesquita e a visita às instalações militares. “Quis mostrar o cotidiano, os mercados, a cultura. Tem cinema, tem 1.000 salas no país, uma televisão forte que faz animações, novelas… Eles têm soberania cultural de verdade.”

“A guerra a gente nunca sabe quando termina, como termina”

Com décadas de experiência como correspondente internacional, o jornalista enxerga no atual conflito do Oriente Médio uma combinação perigosa de imprevisibilidade e desinformação. “Trump prometeu negociação, mas agiu com má-fé. É a segunda vez que ele promete diálogo e ataca no fim de semana. Como confiar?” O risco, segundo ele, não está apenas no ataque isolado, mas no padrão de ação unilateral dos EUA, com o apoio de Israel, que desestabiliza a região e empurra o mundo para uma guerra de proporções imprevisíveis. 

Leia a entrevista completa: 

Você foi ao Irã recentemente, o que você viu lá?

Foi a minha primeira vez no Irã, então eu fiquei muito surpreso. Primeiro, eles têm sido sancionados pelos Estados Unidos e muitos países europeus desde 1987, quase 40 anos de sanções. Então, eu não esperava ver um país tão vivo, com muitas pessoas nas ruas. Você vai para as lojas e elas têm tudo disponível. Primeiro, fiquei surpreso com isso. Depois, eu esperava ver as mulheres vestindo o hijab, e de repente, saí do hotel e vi mulheres sem o hijab, sem as capas, mostrando o cabelo, em todo o Irã. Fiquei muito surpreso. Eu sabia disso, mas não imaginava que fosse assim, porque em 2022 e 2023, as mulheres fizeram grandes protestos, houve uma revolução dentro da revolução, porque as mulheres hoje, no Irã, estão fazendo tudo. E muitas delas estão nas ruas sem o hijab, então isso me surpreendeu.  Parece uma cidade no Brasil, você vai a todos os lugares e as pessoas estão tirando selfies, fotos… é engraçado. Pelo menos em Teerã, que é uma cidade enorme com 17 milhões de pessoas em uma cidade. É uma cidade enorme. Eu fiquei muito impressionado com o Irã. É uma civilização de 3.000 a 4.000 anos, os iranianos têm muito orgulho de si mesmos. Nós chamávamos, os europeus os chamavam de persas, mas eles não gostavam, não que não gostassem, mas a Pérsia, para eles, é apenas uma província do Irã, chama-se Irã desde 1935. E eles são pessoas muito orgulhosas, com uma indústria muito desenvolvida.

Eles têm acesso livre à comunicação, à rede social? Eles são, em qualquer nível, controlados ou algo assim?

Eles têm suas próprias mídias sociais. O YouTube, o Instagram e o X são bloqueados, mas muitas pessoas, incluindo pessoas do governo, usam VPN. Você pode usar VPN e parecer que não está no Irã, pois recebe um IP da Alemanha ou dos EUA. Muitas pessoas no Irã postam no Instagram.

Quem te convidou para ir lá? E qual foi a intenção da viagem?

Uma fundação local que está tentando estabelecer boas relações entre o Irã e a América Latina, chamada Fundação Khayyam. Eles nos trouxeram, e, na verdade, foi um grande grupo de pessoas, éramos eu e outros três colegas de outras mídias do Brasil.

Nossa visita se deu alguns dias antes do grande discurso do Ayatollah Khamenei, então a segurança estava muito, muito rígida. E eu entendo isso—nossos guias lá explicaram: “Israel matou muitas pessoas aqui no Irã” no ano passado, mataram o presidente do Hamas no mesmo dia em que o novo presidente do Irã assumiu. Israel matou o líder do Hamas em um hotel—numa residência oficial, para ser sincero.

Então, sim, mesmo antes de Israel atacar Teerã e o Irã, já havia um certo medo. Eles estavam muito receosos, porque, como ouvi e me disseram, havia uma vigilância em torno de jornalistas que buscavam informações. Israel conseguiu quase destruir o Hezbollah no Líbano, fez o mesmo com o governo sírio, quase fez o mesmo com os Houthis, e agora está atacando o Irã.

Tinha representantes de outros países?

Sim, estavam convidados da Turquia, países ao redor como o Azerbaijão, Rússia… Eu não vi nenhum convidado da China, mas o Irã tem boas relações com alguns países. Agora está melhorando as relações com a Arábia Saudita, por exemplo. Eles reestabeleceram laços com a Arábia Saudita, e o Irã já é membro do BRICS há muito tempo. Acho que estão tentando usar o BRICS para contornar as sanções.

Mas fiquei realmente surpreso. Fui a um mercado comercial lá e vi que o comércio está indo muito bem. Eles têm problemas econômicos, como inflação, mas o preço do petróleo, da gasolina, é muito barato. A gasolina é barata se você só usar sua cota mensal—você paga US$ 0,02 centavos por litro, desde que você use a cota mensal, que é de 60 litros. Depois, passa a custar US $0,35 por litro, o que ainda é mais barato que no Brasil. Mas não há grandes dificuldades. Você vê lojas cheias, muitas pessoas nas ruas… É um país que está se reerguendo. Ficamos oito dias, e nos levaram para visitar muitas cidades lindas. É realmente um país bonito. Lindo. Porque, quando você pensa no Irã—pelo menos no Brasil ou nos EUA—só vê imagens do Ayatollah Khamenei ou os murais políticos pelas ruas. Mas, na realidade, não é tão presente assim.

Eu fui ao Iraque algumas semanas antes do país ser atacado pelos Estados Unidos, e em Bagdá, você via Saddam Hussein em todo lugar. No Irã, é diferente. As cidades são lindas, com pinturas abstratas, muitas árvores e parques. Fiquei impressionado. O Irã é realmente um país belíssimo.

Você viu alguma coisa, ou eles mencionaram algumas histórias sobre  uso nuclear atômico? Alguma coisa relacionada a isso?

Eles nos levaram ao Guardião Revolucionário, que é uma espécie de museu – um parque aéreo, um museu militar. Ficamos surpresos, porque nos levaram lá em grupo justamente para filmar e conversar com um general. Acabamos fazendo uma entrevista com ele, que nos mostrou – não os mísseis mais avançados – mas os modelos básicos de mísseis e drones que estavam expostos no local. Ele nos explicou tudo detalhadamente.

Perguntamos como isso foi possível, já que o país está sob sanções há quase 40 anos. Ele respondeu que foram forçados a se desenvolver: em 1980, como sabemos, Saddam Hussein, com forte apoio da França, Grã-Bretanha e Estados Unidos, atacou o Irã, foi uma guerra horrível, terrível – eu li muito sobre isso. Oito anos de conflito, cerca de 200 mil iranianos morreram (provavelmente até mais). Saddam chegou a usar armas químicas contra as tropas iranianas, foi realmente atroz. Ele explicou que essa sociedade se desenvolveu militarmente porque Saddam começou a lançar mísseis Scud (que obteve da França) por todo o Irã, isso obrigou o país a desenvolver seus próprios mísseis. Quando vemos hoje eles lançando mísseis contra Israel, na verdade esses armamentos não foram desenvolvidos para enfrentar os EUA, mas sim um vizinho – o Iraque. Os Estados Unidos esperavam que o Iraque derrotasse o Irã, mas no final o Irã quase venceu a guerra, essa é uma população acostumada a lutar, que não tem medo. Quando vejo a situação atual, com eles lançando mísseis contra bases americanas no Oriente Médio, fica claro que esses caras realmente têm coragem.

O que é que você espera agora que pode acontecer?

Olha, com esse ataque de agora há pouco do Irã, as bases dos Estados Unidos no Iraque e no Catar, a situação fica muito mais complicada. A base do Catar é a maior base americana, né? Então, eu tenho a impressão que o regime do Khamenei fez os cálculos e pensou o seguinte: olha, o Trump não vai desistir, ele vai vir para cima da gente para derrubar o governo e fazer a troca do regime. Essa história da bomba nuclear do Irã parece muito com a história das armas de destruição em massa do Saddam Hussein. Aliás, uma assessora muito importante do Trump disse que o Irã ainda não tinha a bomba, o Trump mandou ela se calar, isso foi antes do ataque. Ela falou, não, o Irã não tem a bomba ainda, essa é a avaliação do Serviço de Inteligência dos Estados Unidos. Acredito que foi um pretexto e que Israel quer, na verdade, trocar o regime, porque se Israel teve uma derrota política, Israel não teve uma derrota militar, você não pode dizer que teve uma derrota militar, pode ter tido uma derrota política, pode ter tido uma derrota estratégica até, no que eu acredito que tenha tido uma derrota estratégica do Israel, porém, do ponto de vista militar, Israel desmantelou o Hezbollah no Líbano, que era uma força muito importante para o próprio Irã, para a defesa do Irã, depois caiu o governo da Síria, ou seja, não tem mais a Síria como base para o Irã. O governo do Iêmen não é nem um governo do país, é um país dividido, então uma parte do Iêmen, os Houthis, que estão dando apoio, e o Iraque tem lá algumas milícias dentro do Iraque que apoiam também.  Então se você atacar o Iraque, e é até compreensível, que não vai haver uma reação popular do Iraque, pelo contrário, os iraquianos estão indo para a rua, estão pedindo que a embaixada americana seja fechada no Iraque. 

No Catar é diferente, veja bem, o Catar foi um dos países que condenaram verdadeiramente o ataque dos Estados Unidos, e obviamente, se ataca a base americana no Catar, não é território no Catar, mas é, de certa forma, você mandar um míssil em outro país, em um terceiro país. A impressão que eu tenho com esse ataque é que o regime do Ayatollah chegou à conclusão de que os Estados Unidos estão nessa de derrubar, de acabar com o regime mesmo, de fazer troca do regime. Como você faz isso? Veja, Israel atacou uma emissora de TV, um alvo civil, uma emissora de TV. Pode ser até uma emissora estatal, mas isso não é um alvo militar, Israel cometeu assassinatos, matou muitos civis, inclusive no Irã, atacou muito perto do hotel onde eu estava hospedado, inclusive, que é uma área residencial, e ficou claro que o escopo do ataque de Israel dá indícios de que foi claramente uma tentativa, e vem sendo uma tentativa de mudar, de derrubar o governo e instalar um governo no lugar do governo islâmico, da Revolução Islâmica de 1979, do regime dos Ayatollahs. 

Eu acho que eles entenderam isso e falaram, vamos primeiro retaliar os Estados Unidos, e segundo, a gente precisa bater em alguma coisa importante deles aqui na região, que é esta gigantesca base que os Estados Unidos tem no Catar. Obviamente, os americanos já tinham tirado muito do seu equipamento, desta base, então, muitas vezes, na política internacional, com a minha experiência, eu vejo isso. Você faz uma coisa mais para consumo do público. Talvez esse ataque americano não tenha sido tudo isso que o Trump vendeu lá como destruição, mas também não sei se esse ataque do Irã é aquele ataque em que falam “vou mandar a bala para você só para dar satisfação para a minha população”. Então, a gente tem que ver para onde vai, o que vai acontecer nas próximas horas, porque se os Estados Unidos realmente forem entrar na guerra, aí eles vão mexer mundos e fundos. 

Mas, acredito que uma guerra é uma loucura completa, porque você vai colocar no Golfo Pérsico, o Irã tem 700 quilômetros de costa no Golfo Pérsico, que é ali que passa 20% do petróleo do mundo, quer dizer, você começar uma guerra ali, você pode contar aí que nós vamos elevar o preço da gasolina, do barril do petróleo, a US$ 100 dólares para mais, e isso é uma crise internacional.

O Catar tem prestado um papel pacificador, de modo geral, independente do que foi o alvo, é um país que está buscando soluções. E também foi meio jogo sujo do Trump dizer que ele ia tomar uma decisão em duas, três semanas, e de repente acordamos com a notícia de que tinha acontecido esse ataque. Qual a sua expectativa quanto ao Trump,  uma pessoa absolutamente imprevisível, a gente não sabe o que sai da cabeça dele. Você acha que tem alguma possibilidade de, enfim, de algum acordo, porque a Europa também está sendo muito criticada pelo silêncio. Como é que você vê esse cenário de todas essas peças aí dispersas?

O Irã é muito importante para a Rússia e para a China. A posição estratégica do Irã, se você for olhar projetos, por exemplo, o Irã primeiro tem acordos estratégicos, não de defesa, mas estratégicos no sentido de troca, de 20 anos com a Rússia e de 25 anos com a China. A China prometeu investir US$ 400 bilhões de dólares no Irã. A China quer fazer uma ferrovia ligando o seu território, passando por vários países da região, inclusive pelo Afeganistão, e chegando ao Irã, e depois prometeu uma ferrovia de Teerã até a fronteira com o Afeganistão para fazer a conexão. Se você olhar essa nova rota da seda chinesa, o Irã é um entroncamento essencial. Além disso, o Irã é o grande fornecedor de petróleo para a China. Então, a China tem grande interesse. A Rússia, mais ainda, porque a Rússia recebe drones, recebeu tecnologia de drones do Irã para usar na guerra da Ucrânia. Então, tanto a Rússia quanto a China, para eles, é meio que inaceitável essa ideia de derrubar um regime e colocar um regime pró-americano, porque se os Estados Unidos emplacarem um regime pró-americano no Irã, o Iraque vai junto, e aí, bem na barriga, né? É até ruim até falar disso, mas geograficamente é bem na barriga da China, estou vendo um mapa aqui agora, o Irã não tem fronteira direta com a China e nem com a Rússia, mas ele compartilha com a Rússia um pedaço do Mar Cáspio, um ponto muito estratégico, a ponte terrestre entre a Ásia e a Europa, além de ser o terceiro maior produtor de petróleo do mundo. Eu penso que podemos caminhar para uma guerra regional; e guerra, a gente nunca sabe quando termina, como termina.

Eu lembraria você hoje o que o nosso Celso Amorim disse em uma entrevista “a ordem mundial acabou”, eu achei muito forte o Celso Amorim dizer isso. 

Esse ataque do Trump foi completamente unilateral – sem autorização do Congresso americano, sem passar pelo Conselho de Segurança da ONU, sem consultar a OTAN, a França, o Reino Unido, sem consultar ninguém. Um ataque flagrante contra a soberania do Irã, feito sob pretextos, sem provas materiais. Como se justifica bombardear instalações nucleares que estão sob inspeção regular da Agência Internacional de Energia Atômica? O Irã é signatário do Tratado de Não-Proliferação Nuclear. Enquanto isso, Israel possui armas nucleares, não assinou o tratado e não permite inspeções. E mesmo assim, os EUA vão e bombardeiam as instalações iranianas? Isso depois que o próprio Trump havia prometido uma sexta rodada de negociações com o Irã. Ele chegou a mencionar que isso aconteceria em duas semanas. Há duas artimanhas particularmente enganosas nisso tudo, pois havia uma reunião marcada para um domingo, mas Israel atacou dias antes. Quando eu estava no Irã, as pessoas comentavam sobre mais uma rodada de negociações que estava sendo discutida, Trump agiu de má-fé. Não há como o Irã confiar nele – é a segunda vez que ele promete negociações e ordena um ataque surpresa no fim de semana.

Você acha que avança o pedido de impeachment feito pela deputada Alexandria Ocasio-Cortez? 

Não vai avançar, não tem a menor chance. Isso é puro jogo político interno. O Trump tem maioria no Senado e na Câmara dos Representantes. Na minha avaliação, isso é basicamente política interna dos Estados Unidos. A situação dentro do próprio movimento Trump está mais fragmentada do que nunca – nunca vi tanta disputa interna. Lembra que o Trump foi eleito prometendo paz mundial? Durante a campanha, ele dizia: “Vou resolver a crise no Oriente Médio”, “Vou acabar com a guerra na Ucrânia”, “Não vou gastar um dólar sequer fora dos Estados Unidos”, “Vou trazer de volta o dinheiro que damos à Europa e investir aqui”. E agora? O Trump está gastando – ou melhor, Israel está gastando US$ 200 milhões por dia em interceptadores fabricados nos Estados Unidos. Provavelmente os EUA acabarão doando esses mísseis interceptadores para Israel. No final das contas, ele está gastando tanto dinheiro quanto os políticos que sempre criticou por serem belicistas.

Você viveu a era pré-rede social. Queria que você comentasse um pouco sobre esse mundo extremamente digital que vivemos, isso influencia o seu trabalho também?

Eu já fui uma pessoa muito entusiasmada com a internet, com as redes sociais. Tive um grande entusiasmo naquele comecinho, achando que as redes sociais iam transformar a comunicação no planeta, etc. Bom, elas se transformaram, por causa do fato de que hoje é tudo muito instantâneo – já aconteceu no Catar, você está sabendo agora, tal, assim. E aí, no meu ponto de vista, isso me favoreceu, essa instantaneidade. Por quê? Porque, como tem uma superoferta de informação, eu posso usar e aproveitar da minha experiência para colocar as coisas mais no contexto. Então os leitores gostam de receber uma coisa com um pouquinho mais de contexto, né? É uma coisa você ir para o Irã e falar do Irã: ‘ah, eu fiz isso, isso, aquilo’, assim, fazer uma coisa. Ou outra coisa: você entender o mundo em que o Irã está inserido. E eu, como tenho uma experiência de correspondente que foi longa no mundo, né? Que eu comecei em 1990, na TV – em 1980, 1985 eu já era correspondente, aí fiquei quase 20 anos fora lá, morando em Nova Iorque, em Washington. Então eu já tinha essa experiência para me favorecer. Agora eu acho que as redes sociais passaram por uma transformação nos últimos cinco, seis anos, que tem muito a ver com o algoritmo. E como agora eu lido com isso diretamente aqui na revista Fórum, para a qual eu trabalho, você vê o humor do algoritmo, né?

O humor do algoritmo pode fazer ter 100 mil views no vídeo, pode fazer um milhão, ou três, ou quatro, quer dizer, essa é uma grande preocupação. Essas grandes empresas – tipo Meta, Google –  elas controlam a comunicação do mundo hoje, pois dependendo da maneira como elas trabalharem o algoritmo, como funciona isso? Quanto mais tempo você ficar na rede social, obviamente, mais dinheiro eles ganham. Permanência é tudo, e o que é que gera permanência? Coisas que causem emoção nas pessoas. Então você tem o gatinho, você tem o cachorrinho, mas você tem o ódio, você tem a briga política. O ódio gera muita renda. Eu fico espantado. Ontem eu estava vendo o meu X, por exemplo, e começaram a cair uns antissemitas americanos enlouquecidos. Tinha um cara lá no X – eu não sou seguidor – apareceu na minha timeline, um cara falando do Hitler. Eu falei, meu deus, deixa eu bloquear esse cara! O que é que isso tá caindo aqui? Por quê? O Elon Musk assumiu o Twitter e falou ‘seja o que Deus quiser, cada um por si’. Então tem de tudo nessas redes sociais – não é só no Twitter não. O Twitter piorou muito, O X, que é o novo Twitter, tá um horror. Mas o TikTok também tem muita coisa.

E me preocupa muito isso – não só na questão da comunicação, mas no ódio que vai levar a feminicídio, no ódio que leva aos ataques nas escolas, no ódio que faz as crianças chegarem em casa chorando porque receberam ataques pela internet, no ódio que faz esses desafios que matam gente, a molecada fica brincando de desafio: ‘vamos ver quem respira mais desodorante’. Aconteceu de uma menina aqui do Brasil aparentemente morrer por causa disso. Então isso me preocupa – esse poder dessas grandes empresas, que é um poder superior ao poder de Estados hoje. A gente tem o exemplo brasileiro, que é muito claro disso: o STF tendo que enfrentar essas redes, e o Congresso Brasileiro não passa nada, porque as redes têm uma grande influência. E não é só aqui não – não passa no congresso americano, tem dificuldade pra passar em qualquer país que não seja… Alguns países europeus, a União Europeia ainda conseguiu fazer alguma coisa, a Austrália fez um pouco. Mas países com menor poder de enfrentamento estão sujeitos ao poder desses caras, que são meia dúzia de bilionários.

Queria que você falasse um pouco sobre esse documentário. Quando é que ele vai sair? Você pode adiantar alguma coisa?

Esse eu fiz correndo, correndo mesmo. Porque eu falei pro Renato Rovai, que é o meu chefe: ‘Ô, Rovai, a situação do Irã tá andando tão rápido que vai ver que eu e os colegas do Brasil, e os convidados, fomos os últimos a ver um discurso público do Ayatollah Khamenei’. Porque ele vai levar um tempo pra fazer uma aparição pública, ele tá lá num bunker gravando vídeos, tá com medo dos ataques de Israel e dos Estados Unidos. Disse vamos botar esse material logo no ar, porque tem muita curiosidade sobre o Irã. Sabe-se muito pouco sobre o Irã,  eu acho que as pessoas vão ficar surpresas, principalmente aqui no Brasil. Rendeu muito material, mas duas coisas que renderam material muito bom: o dia que a gente passou – as horas que a gente passou na mesquita, que festejou o dia do sacrifício – e também as horas que passamos com o general da Guarda Revolucionária, olhando o equipamento. Todo o equipamento militar, o mais avançado do Irã, e como eles fazem engenharia reversa, né? A construção de tudo foi feita com engenharia reversa.

Por exemplo: eles pegaram um drone dos Estados Unidos, desmontaram e aprenderam muita coisa que usaram pra fazer seus próprios drones. O Irã é hoje um dos países mais avançados na produção de drones, fizeram o mesmo com foguetes e outras tecnologias. Pegavam aqueles foguetes do Saddam que caíam sem explodir, desmontavam e entendiam o funcionamento. E claro, receberam ajuda de outros países também, conseguiam informações da Rússia, da China, e provavelmente do Paquistão. Mas esses dois aspectos foram importantes, captamos muito do dia a dia, o cotidiano. Tivemos um problema, por causa do nosso tradutor, uma pessoa maravilhosa, tinha experiência como intérprete de técnicos de futebol. O Irã teve um técnico brasileiro muito importante para o desenvolvimento do futebol deles, e esse nosso tradutor havia trabalhado com vários técnicos brasileiros. Mas jornalismo era outra coisa… A gente acabava tendo dificuldade para conseguir informações precisas na hora. Mesmo assim, nos viramos – andamos pra caramba, correndo de um lado para outro, com três ou quatro compromissos por dia durante aqueles sete, oito dias. Acumulamos um material bem rico. E eu queria especialmente mostrar esse cotidiano dos iranianos. Falei bastante do cinema também, que é uma coisa impressionante… Sabia que o Irã tem mil salas de cinema? Veja só: hoje o Irã é um país, para comparar, o Brasil tem três mil salas de cinema – sendo que o Brasil é muito maior que o Irã. Isso mostra que eles têm uma tradição cinematográfica muito forte. Eu tive a oportunidade de visitar aquela televisão que foi bombardeada? Estive lá uma semana antes do ataque. Não exatamente no prédio onde morreram duas pessoas, mas no prédio da TV que produz animação, eles tem uma soberania completa na área de televisão. Eles não importam programas de ninguém. Produzem suas próprias novelas, dramas (nada daqueles mexicanos), desenhos animados – tudo feito localmente. Essa soberania cultural se estende a várias áreas, têm um cinema robusto, uma história muito longa… Mas o que realmente me marcou foi o alto grau de soberania cultural e tecnológica do Irã. Confesso que me surpreendeu bastante.