Em depoimento ao STF, Bolsonaro recua, nega plano de golpe, pede desculpas a Moraes e diz que, após a eleição de Lula, era apenas “uma carta fora do baralho”. Outros aliados, civis e militares, também tentam se descolar da trama que levou à invasão de 8 de janeiro

Frente a frente com Moraes, Bolsonaro pede desculpas, nega golpe e diz ser “carta fora do baralho”
Foto: STF

Ao ser questionado nesta terça-feira (10) no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre os indícios de uma trama para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-presidente Jair Bolsonaro adotou uma postura conciliadora, negou a intenção de dar um golpe de Estado e afirmou ser, na época dos atos de 8 de janeiro, uma “carta fora do baralho”. O depoimento, transmitido ao vivo pela TV Justiça, marcou o momento mais simbólico da semana de oitivas de réus no processo que apura a tentativa de ruptura institucional após as eleições de 2022.

“Não tive reunião com ninguém, absolutamente ninguém, sobre 8 de janeiro. Eu era uma carta fora do baralho. O governo era outro”, afirmou Bolsonaro, ao responder a perguntas do ministro Alexandre de Moraes, relator do caso e alvo frequente de ataques durante seu mandato.

Ao contrário da postura beligerante que costumava adotar em lives e discursos públicos, Bolsonaro se dirigiu a Moraes de forma respeitosa, chegando a pedir desculpas por declarações passadas. “Era um desabafo, uma retórica. Não tenho indício nenhum, senhor ministro”, disse ao ser confrontado com sua fala, feita durante uma reunião ministerial em julho de 2022, de que ministros do Supremo teriam recebido dinheiro de maneira irregular. “Me desculpe. Não tinha a intenção de acusar qualquer desvio de conduta dos senhores três”, disse, em referência a Moraes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso.

O peso da minuta e o “jogo dentro das quatro linhas”

Bolsonaro negou ter assinado ou aprovado a chamada “minuta do golpe”, documento que sugeria a decretação de Estado de Defesa com o objetivo de reverter o resultado das eleições. Ainda assim, reconheceu que recebeu o texto de Mauro Cid, então ajudante de ordens, e admitiu ter lido versões semelhantes. “Recebi sim, mas não dei prosseguimento”, disse.

Ao falar sobre os questionamentos ao sistema eleitoral, sustentou que nunca acusou o TSE formalmente, embora tenha falado em possíveis fraudes. “Falei que poderia haver fraude, sim. E poderia mesmo. Mas nunca tive a intenção de dar um golpe. Sempre joguei dentro das quatro linhas”, disse. Sobre a reunião de 5 de julho de 2022, na qual mencionou “indícios” de irregularidades, afirmou que usava o termo de forma coloquial. “Aquilo foi um desabafo. Eu tinha dados de que, nas eleições de 2018, alguns votos de candidatos proporcionais haviam sido desviados. Mas nunca afirmei que houve fraude nas urnas em si.”

Ministros e militares tentam se desvincular de conspiração

A fala de Bolsonaro foi apenas uma entre as dezenas de depoimentos colhidos esta semana no STF. Um dos primeiros a ser ouvido, Mauro Cid confirmou que o ex-presidente revisou minutas de decretos para instaurar Estado de Defesa e impedir a posse de Lula. Em sua delação premiada, o ex-ajudante de ordens relatou que os documentos circularam entre assessores próximos e que Bolsonaro discutiu alternativas jurídicas à transição de governo. No entanto, disse desconhecer qualquer ação direta do presidente em relação aos ataques de 8 de janeiro.

Já o general da reserva Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional, optou por responder apenas a perguntas de seu advogado. Disse nunca ter tomado conhecimento do chamado plano “Punhal Verde Amarelo”, que, segundo a Polícia Federal, previa atentados contra autoridades, incluindo o próprio Lula. “Nunca soube da existência desse gabinete. Quando li, achei até difícil de acreditar”, declarou Heleno. Questionado se havia planejado alguma operação militar, negou veementemente. “Não, de jeito nenhum.”

Outro militar ouvido foi o almirante Almir Garnier, ex-comandante da Marinha. Ele rejeitou a hipótese de ter colocado tropas à disposição de Bolsonaro e afirmou que se manteve “dentro do papel institucional”. Perguntado por Moraes se as Forças Armadas encontraram qualquer irregularidade nas eleições, respondeu: “Não que tenha chegado ao meu conhecimento.” Sobre a alegação de que o então comandante do Exército teria ameaçado prender Bolsonaro caso tentasse um golpe, classificou como “surreal”.

Anderson Torres fala em “falha grave” e culpa a PM

No depoimento mais tenso até aqui, o ex-ministro da Justiça Anderson Torres reconheceu que houve uma “falha grave” na aplicação dos protocolos de segurança no dia 8 de janeiro. Disse que estava de férias com a família nos Estados Unidos e foi “surpreendido” com a invasão das sedes dos Três Poderes. “Quando eu tive a informação, eles já tinham entrado no Congresso e no Palácio do Planalto. Eu, desesperado, mando uma mensagem para o meu secretário executivo, em uma mensagem que foi mal interpretada, em que eu falei: ‘Não deixe chegar ao Supremo’”, relatou.

Torres voltou a dizer que a minuta de decreto encontrada em sua casa era uma “sugestão tirada da internet” e não passava de “uma minuta do Google”. Afirmou ainda que nunca teve provas de fraudes nas eleições de 2022. “Eu não tinha. Eram apenas colocações pessoais minhas.”

Outro nome central no inquérito, o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), ex-diretor da Abin, negou a existência de uma estrutura paralela de inteligência. Também afirmou que nunca compartilhou vídeos falsos sobre as urnas. Segundo ele, o material enviado a Bolsonaro era uma gravação pública de testes técnicos da Justiça Eleitoral. “Não era algo contra as urnas, mas uma exposição técnica, feita em audiência pública no STF”, justificou.

O que acontece com os réus a partir de agora?

Com os depoimentos desta semana, encerra-se a fase de instrução do processo. As partes ainda poderão solicitar diligências complementares — como novas oitivas ou juntada de documentos. Em seguida, será aberto prazo de 15 dias para que as defesas e a Procuradoria-Geral da República apresentem suas alegações finais.

A sentença será julgada pela Primeira Turma do STF, composta por cinco ministros, incluindo Alexandre de Moraes, relator do caso. As penas para crimes como tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e associação criminosa podem ultrapassar os 20 anos de prisão.