O parlamento sequestra o orçamento e constrange o presidencialismo, por Alberto Cantalice
Diretor da FPA, Alberto Cantalice, analisa como o Congresso distorceu o presidencialismo: ‘É um golpe continuado contra a vontade popular do plebiscito de 1993’
Alberto Cantalice

Em plebiscito realizado em 21 de abril de 1993, a população, chamada a se pronunciar sobre o sistema de governo – presidencialismo versus parlamentarismo – decidiu por 54,7% a 24,9% pela manutenção do presidencialismo. Desde então, instituiu-se uma espécie de “presidencialismo de coalizão”, já que a pulverização do quadro partidário brasileiro dificultava significativamente a formação de maiorias parlamentares.
Foi nesse contexto, como subproduto da maioria conservadora constituída na Constituição de 1988, que surgiu a figura do Centrão: uma mistura de oligarcas, fisiológicos e herdeiros da recém-extinta ditadura, que se agruparam no Congresso Nacional com o objetivo de, através do Parlamento, obstruir os avanços sociais conquistados pelas lutas populares e em grande parte garantidos na Constituição Cidadã.
Esse agrupamento foi chamado de “chupins de gabinete” pelo então presidente Itamar Franco, devido à sua obsessão por nomeações e sua peregrinação pela Esplanada em busca de verbas públicas. Foi dessa prática que o então deputado federal Roberto Cardozo Alves cunhou a expressão “é dando que se recebe” – uma paródia grosseira de um princípio de Francisco de Assis.
A aliança de maioria formada por Fernando Henrique Cardoso (PSDB com PFL e PMDB) inicialmente reduziu o ímpeto desse grupo, que ressurgiu com força durante a votação da proposta de reeleição de FHC.
Eleito com grande votação no segundo turno, em aliança com PL, PCdoB, PSB e PDT, Lula acabou por buscar no Centrão uma alternativa para romper o cerco do “mercado” e as dificuldades de diálogo com os setores articulados em torno da candidatura de José Serra. As consequências negativas dessa aliança são amplamente conhecidas.
Na fase atual do processo político brasileiro, a influência desse grupo tornou-se evidente com a transferência do orçamento para o Congresso promovida pelos governos Temer e Bolsonaro. O primeiro, para custear o impeachment da presidenta Dilma Rousseff; o segundo, para se livrar de pressões e incluir militares no governo. Essa situação resultou no absurdo do orçamento secreto – inconstitucional desde sua criação e marcado por polêmicas devido à falta de transparência entre Legislativo e STF.
Esse legado, herdado pelo governo Lula III, prejudica sua gestão e cria um ambiente ambíguo: o Legislativo usurpa as funções do Executivo e derruba vetos indiscriminadamente, assumindo em muitos casos tanto o papel de legislador quanto de executor.
Essa situação concreta representa uma clara distorção da vontade popular manifestada no plebiscito de 1993. Na prática, significa a implantação de um semipresidencialismo sem base constitucional ou consulta à população. É um golpe em curso.
A desconsideração pelos anseios populares não é novidade na história política brasileira – daí nosso histórico de golpes e quarteladas. Mas presenciar essa repetição em tempo real, ao vivo e a cores, é algo inédito na República. É um péssimo sinal.