Luiz Inácio Lula da Silva fala sobre Trump, Putin e a ordem global em colapso

Jon Lee Anderson, publicado originalmente na revista New Yorker 

Perfil de Lula na ‘New Yorker’: presidente brasileiro enfrenta um mundo em transformação
Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, Sessão de abertura do IV Fórum CELAC-China. China National Convention Center II, Pequim – China.
Foto – Ricardo Stuckert / PR

Não muito tempo atrás, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva me recebeu em seu gabinete em Brasília e compartilhou um sonho perturbador que tivera. Nos meses anteriores, Lula havia completado 79 anos e passado por uma cirurgia de emergência para tratar uma hemorragia cerebral e, embora parecesse em forma e saudável quando nos encontramos, estava reflexivo. Ele havia sonhado na noite anterior com seu antecessor José Sarney, agora com 94 anos. Sarney é uma figura reconhecida no Brasil: na década 1980, tornou-se o primeiro Presidente do país a tomar posse após duas décadas de regime militar. “No meu sonho, ele veio à minha casa e dormiu no chão, e de manhã eu fiz café para ele”, disse Lula. “Acordei preocupado, imaginando se algo havia acontecido com ele durante a noite”.

Sarney estava bem, mas não por acaso, Lula estava preocupado com um símbolo da democracia. Ele me disse que todo o sistema ocidental estava ameaçado. “A democracia com a qual aprendemos a conviver depois da Segunda Guerra Mundial, o funcionamento do multilateralismo como um papel importante nas relações entre os estados, o respeito à diversidade, a soberania de cada país estão agora desaparecendo”, disse ele. “O que vem depois, não sabemos.” Toda a ordem pós-Segunda Guerra Mundial, criada em grande parte pela intervenção dos Estados Unidos, parece à beira do colapso. “Pensávamos que estávamos criando uma sociedade mais civilizada, mais solidária, mais humana”, disse ele. “O resultado é pior: é como se houvesse uma buraco, e quando você abre a tampa, as pessoas más aparecem.” 

Lula construiu uma carreira com princípios de esquerda inabaláveis, mas também sempre se orgulhou de sua capacidade de se dar bem com uma variedade de líderes. Agora, porém, confessou estar perplexo com os populistas de direita e antiglobalistas ganhando poder ao redor do mundo. Na Assembleia Geral das Nações Unidas em setembro passado, ele tentou organizar uma reunião de presidentes progressistas. “Quando nos sentamos para fazer a lista, descobri que não havia mais progressistas!”, disse ele. Na América Latina, restam apenas um pequeno grupo de líderes de esquerda, incluindo Gustavo Petro, da Colômbia, Gabriel Boric, do Chile, e Claudia Sheinbaum, do México. “Para evitar que a reunião ficasse muito pequena, mudei ‘progressistas’ para ‘democratas’, para poder convidar Biden, Macron e outras pessoas”, explicou Lula. “Tivemos duas reuniões desde então, para discutir como criar uma narrativa para justificar a importância do sistema democrático como a melhor coisa já criada para a coexistência da humanidade — um sistema com regras, onde todos têm direitos e os direitos de alguém terminam quando infringem os direitos dos outros. Foi o que funcionou no mundo. Monarquias, impérios — não funcionaram. O nazismo não funcionou. O comunismo de Stalin não funcionou.”

Tanto em seu país quando nos EUA, ele sugere que grandes parcelas da população parecem ter perdido o contato com a realidade. “Há pessoas que acreditam em coisas que todos deveriam entender que são mentiras, de tão absurdas”, disse-me ele. “E minha preocupação é como vamos construir uma narrativa para destruir isso.” O preocupante, disse ele, é que “ainda não temos uma resposta”.

Parte do problema é econômico, diz ele. “A democracia começa a cair quando não atende mais aos interesses do povo. Desde 1980, a classe trabalhadora nos países que construíram o estado de bem-estar social só perdeu, enquanto a concentração de renda aumentou. Então, que resposta podemos dar à sociedade brasileira? E à sociedade alemã e americana?” Havia também uma questão de liderança. “Os EUA eram o espelho da democracia, o pilar da democracia para o planeta”, disse ele. “Apesar de ser o país que trava mais guerras, é o país que mais fala em paz, o que mais fala em democracia. E, no entanto, agora há Trump, que às vezes se comporta como—” Lula se interrompe, depois segue. “Vi um discurso dele no Congresso dos EUA recentemente, e foi absurdo — aqueles republicanos aplaudindo qualquer bobagem que ele dissesse. Era quase o mesmo tipo de discurso que os anarquistas costumavam fazer na Itália e no Brasil no início do século, defendendo uma sociedade sem instituições, uma sociedade onde o império do capital governa.”

O Presidente Donald Trump deixou claras as suas intenções intervencionistas em relação à América Latina assim que reassumiu o cargo; no seu discurso de posse, prometeu “retomar” o Canal do Panamá. Desde então, a maioria dos líderes da região tem lidado com Washington com muita cautela. Os populistas de direita esforçaram-se para exibir a sua lealdade e afinidade. Javier Milei — um liberal extremista que cortou metade dos ministérios do governo da Argentina — deu a Elon Musk uma motosserra gravada e saudou Trump como “um dos dois políticos mais relevantes do planeta Terra” (o outro, claro, sendo ele próprio). Ele foi recompensado com o apoio dos EUA a um empréstimo de US$ 20 bilhoẽs do Fundo Monetário Internacional e elogios de Trump, que disse que Milei está fazendo um “trabalho fantástico”.

Em El Salvador, o presidente Nayib Bukele ofereceu-se para receber migrantes indesejados deportados pelos EUA, que seriam mantidos em uma prisão terrível, um verdadeiro inferno. Durante uma visita recente ao Salão Oval, Bukele e Trump trocaram piadas arrogantes sobre o acordo, com Trump dizendo que gostaria de deportar também os “nativos problemáticos”, enquanto Bukele zombou da ideia de devolver aos EUA o migrante Kilmar Abrego Garcia, que havia sido deportado por engano.

Entre os líderes de esquerda da região, o colombiano Petro foi o primeiro a resistir a Trump. Depois de se recusar a permitir que aviões militares dos EUA transportando deportados pousassem na Colômbia, ele sugeriu em suas redes sociais que Trump era um “senhor de escravos brancos”, ao mesmo tempo em que se comparava ao Coronel Aureliano Buendía, o herói condenado de “Cem Anos de Solidão”. Trump retaliou anunciando tarifas punitivas e uma proibição geral de vistos americanos para funcionários colombianos. Em poucas horas, Petro recuou, e sua humilhação serviu de lição objetiva para outros líderes.

Em março, uma empresa de Hong Kong chamada CK Hutchison Holdings concordou em vender seus portos no Canal do Panamá para um consórcio liderado pela empresa de investimentos americana BlackRock. Trump rapidamente alegou que estava efetivamente reassumindo o controle do canal. O presidente do Panamá, José Raúl Mulino, tentou salvar sua dignidade com declarações públicas desafiadoras, mas sucumbiu principalmente à pressão de Washington. No mês passado, o Panamá e os EUA assinaram um acordo de cooperação de segurança ampliado que permite que as forças armadas americanas ocupem várias ex-bases militares ao longo da zona do canal. Em uma declaração conjunta sobre o novo relacionamento de segurança, divulgada durante uma visita do secretário de Defesa Pete Hegseth, uma frase reconhecendo o respeito dos EUA pela soberania do Panamá foi intencionalmente excluída da versão em inglês. Os panamenhos ficaram frustrados e um amigo de lá me escreveu: “Mulino não parou de ‘abanar o rabo’ para Trump em troca de nada”.

A Presidente do México, Claudia Sheinbaum, tem tido um comportamento de mais compostura, mas ela também evitou confrontos com Trump ao lhe dar o que ele queria. Como minha colega Stephania Taladrid detalhou recentemente, esses esforços incluíram o aumento da presença de segurança do México na fronteira, a entrega de narcotraficantes de alto nível aos EUA e o aumento significativo das apreensões de fentanil. Até mesmo o aspirante a líder revolucionário da Venezuela, Presidente Nicolás Maduro, parabenizou Trump por retornar à Casa Branca e concordou em entregar prisioneiros americanos das cadeias de seu país. Depois que o governo Trump deportou centenas de supostos membros de gangues venezuelanas para a prisão de Bukele, Maduro emitiu uma declaração denunciando a ação como “fascismo” — mas teve o cuidado de direcioná-la a Bukele diretamente, e não a Trump.

Lula e Gabriel Boric, do Chile, têm sido os líderes latino-americanos mais francos. Em uma recente visita de estado à Índia, Boric descreveu a posse de Trump, com bilionários da Big Tech “prestando homenagem a um novo aspirante a imperador”, como algo que “remete a uma era passada”. Ele criticou as tarifas como “irracionais” e “insustentáveis”. Embora a principal commodity de exportação de seu país, o cobre, tivesse até agora sido isenta, Boric prometeu buscar novos acordos comerciais com a Índia, o Japão entre outros. Ele alertou que, se Trump impusesse tarifas sobre o cobre do Chile — onze por cento do qual foi para os EUA no ano passado — o custo mais alto acabaria sendo repassado aos consumidores americanos. “A lei do mais forte tem pernas curtas”, disse ele.

Lula sabe que sua coalizão é frágil. Em um discurso recente, ele disse: “Os presidentes dos países sul-americanos devem entender que somos muito fracos se estivermos isolados”. Quando o vi em Brasília, ele fez um apelo por maior cooperação internacional. “Temos que convencer o mundo de que não é possível acabar com o multilateralismo”, disse ele. “O multilateralismo era uma forma de civilidade encontrada entre os estados para coexistir pacificamente, com regras que todos devem seguir”, continuou. “Já está provado que, se não controlarmos o ar, todos serão vítimas da poluição do ar. Se o mar subir, todos serão vítimas. Os líderes mais importantes do mundo ainda não preceberam que precisamos de uma governança global para tomar algumas decisões globalmente.”

Lula observa que o meio ambiente está entre as questões globais mais urgentes, mas também reconhece os limites do multilateralismo para lidar com ele. Este ano, o Brasil sediará a conferência climática COP30, na cidade de Belém — localizada na fronteira com a Amazônia, escolhida para chamar a atenção para a crise do desmatamento. No entanto, é difícil imaginar que isso trará mudanças radicais. Os países europeus, em particular, parecem propensos a doar menos, pois lutam para destinar mais de seus orçamentos para despesas militares. Lula deu de ombros. “Não acredito em dinheiro de países desenvolvidos”, disse ele. “Prometeram US$ 100 bilhões em 2009 e ainda não entregaram. Já se passaram dezesseis anos. Agora a necessidade é de US$ 1,3 trilhão — e eles não vão entregar.”

Lula defende um mundo em que as grandes potências pudessem competir sem recorrer à guerra e em que cooperassem mais estreitamente em prioridades como a fome e as mudanças climáticas. Não lhe passa despercebido que o Brasil, como economia em desenvolvimento, depende da manutenção de relações amigáveis, mesmo que isso signifique fazer parcerias com países com sistemas e valores extremamente divergentes. “Precisamos dizer: ainda bem que temos a China que, de uma perspectiva tecnológica, é muito avançada e pode competir no mundo tecnológico da I.A., dando-nos uma alternativa para este debate”, disse ele. Em sua opinião, a animosidade das potências ocidentais em relação à China foi motivada pelo comércio, e não por seus abusos aos direitos humanos ou por suas ameaças de invadir Taiwan. “Sou de uma geração que aprendeu na década de oitenta, através de Reagan e Margaret Thatcher, que a melhor coisa para o mundo era a globalização e o livre comércio. Os produtos deveriam fluir livremente pelo mundo. O dinheiro deveria fluir livremente pelo mundo.”

A China, disse ele, apenas adotou essa teoria junto com todos os outros. “A China começou a produzir tudo o que era produzido nos EUA e na Europa. Não se conseguia comprar um único par de calças, sapatos ou uma camisa que não dissesse ‘Made in China’. Eles copiaram tudo com muita habilidade e aprenderam a produzir tão bem ou melhor. Agora que os chineses se tornaram competitivos, eles se tornaram os inimigos do mundo”, acrescentou irritadiço. “E nós não aceitamos isso. Não aceitamos a ideia de uma segunda Guerra Fria. Aceitamos a ideia de que quanto mais semelhantes os países forem – tecnológica e militarmente avançados – mais eles devem conversar entre si, porque não tenho certeza se o planeta pode suportar uma Terceira Guerra Mundial.”

Lula insiste no pacifismo de uma forma idealista incomum entre os líderes mundiais. “No ano passado, o mundo gastou US$ 2,4 trilhões em armas, enquanto 730 milhões de pessoas vão dormir todas as noites sem saber se terão café da manhã ao acordar”, disse ele. “Essa deveria ser a principal preocupação da humanidade.” Mesmo depois que a Rússia invadiu a Ucrânia, ele resistiu a tomar partido. “Meu amigo Olaf Scholz veio aqui, sentou-se naquele sofá e pediu ao Brasil para vender mísseis para que ele pudesse enviá-los à Ucrânia. Com todo o respeito, eu disse que não venderia, porque não queria que nenhum ucraniano ou russo morresse com uma arma brasileira”, diz lembrando uma reunião com o ex-Chanceler alemão.

Assim como alguns na esquerda (e muitos na direita), ele criticou os EUA e a Europa por financiarem os esforços para confrontar Putin na Ucrânia. “Quando você encurrala o inimigo, você precisa ter a força para derrotá-lo, e não é fácil derrotar a Rússia”, disse Lula. “Eu discuti isso com Biden. E Biden ficava dizendo: ‘Nós vamos destruir Putin, e ele terá que reconstruir a Ucrânia’. O que vai acontecer agora? Se a paz acontecer, organizada por Trump, ele ganhará o Prêmio Nobel da Paz, e a Europa terá que pagar pela OTAN, terá que financiar a guerra e terá que reconstruir a Ucrânia.”

Algumas semanas antes, Lula havia instado a Rússia a interromper a guerra. “Liguei para Putin e disse: ‘Putin, acho que é hora de você voltar à política. Dê um fim nisso. O mundo precisa de política, não de guerra. Sentimos sua falta. Não há pessoas suficientes para se sentarem à mesa e discutirem o destino do planeta: o que queremos para a humanidade?” 

Lula ridicularizou o desejo de Trump de tomar a Groenlândia e o Canadá. “A única coisa que resta para ele tomar é a Antártica”, disse ele. “Por que a Rússia e os EUA querem aumentar seus territórios se nem sequer conseguem administrar o que já possuem?” Em sua opinião, a postura global de Trump, do vice-presidente J. D. Vance e de Musk é uma séria ameaça. “Eles são negacionistas das instituições que garantem a democracia em todo o mundo”, disse ele. “O fato de o vice-presidente dos EUA interferir na política da Alemanha já é um crime. Eu nunca fui a outro país para interferir em uma eleição!” Ele sugeriu que a retórica belicosa acabaria por prejudicá-los. “A princípio, pode parecer bom”, disse ele. “Mas o resultado pode ser muito pior do que o que eles estão criticando. Quando você solta uma fera selvagem, depois não sabe como controlá-la.”

Pouco antes dessa conversa, o governo dos EUA havia anunciado uma tarifa de 25% sobre o aço brasileiro. “Haverá reciprocidade”, disse Lula. “Mas, antes que haja reciprocidade, queremos mostrar aos EUA o que representam 200 anos de relações diplomáticas e comerciais entre o Brasil e os EUA.” Ele salientou que os EUA tiveram um superávit comercial de US$ 7 bilhões com o Brasil no ano passado, incluídas as importações de aço. “O que os EUA importam do Brasil, eles transformam e depois exportam de volta para o Brasil”, disse ele. “É uma via de mão dupla, então acho que isso será prejudicial para os EUA. Da nossa parte, queremos negociar diplomaticamente. Se não houver possibilidade, tomaremos medidas.”

Quando perguntei a ele se Trump o havia procurado, ele disse que não. “Se, como representante dos estados unidos, ele quiser falar com Lula, o representante do estado brasileiro, falarei com ele calmamente”, disse ele. “Mas até agora eu também não tive nenhum interesse em falar com ele. Se algum dia tiver um problema e precisar ligar para ele, ligarei.”

Tradução com uso de inteligênica artificial com edição e revisão da jornalista da redação Fernanda Otero