Barbara Martins Alves dos Santos e Sofia Helena Monteiro de Toledo Costa: O feminicídio em chacinas representa uma dupla violência: a primeira, praticada contra o corpo da vítima; a segunda, exercida pelo Estado, que falha em nomeá-la, investigá-la e protegê-la postumamente

Feminicídio invisível e impunidade institucional nas chacinas
Agência Brasil


A violência de gênero no Brasil apresenta seletividades que ultrapassam o reconhecimento formal do feminicídio como um crime autônomo. A tipificação do feminicídio representou um avanço jurídico ao conferir maior visibilidade à violência letal contra mulheres, mas sua aplicação revela um viés racial significativo. A pesquisa Chacinas e a Politização das Mortes no Brasil, realizada pelo Reconexão Periferias da Fundação Perseu Abramo, realiza um levantamento de casos de chacinas a partir de notícias de jornal cobrindo um período que vai de 2011 a 2022.

Entre 2011 e 2022, ao menos 54 chacinas classificadas como feminicídio ou casos associados foram registradas no Brasil. Esses eventos, embora representem uma fração do total de chacinas no país, revelam padrões alarmantes sobre como o sistema de justiça lida com a violência letal contra mulheres, especialmente quando cometida em contextos coletivos e com múltiplas vítimas. O dado mais revelador não é, entretanto, o número absoluto de ocorrências ou o perfil das vítimas — mas sim a ausência de informações sobre o desfecho jurídico da maioria desses crimes.

Gráfico 1: Casos de chacina por feminicídio e casos associados distribuídos por ano, 2011 a 2022, Brasil.

Feminicídio invisível e impunidade institucional nas chacinas
Fonte: Chacinas e a Politização das Mortes no Brasil, projeto Reconexão Periferias, da Fundação Perseu Abramo.

Gráfico 2: Casos de chacinas por feminicídios e casos associados e outras motivações com vítimas femininas distribuídos por ano, 2011 a 2022, Brasil.

Feminicídio invisível e impunidade institucional nas chacinas
Fonte: Chacinas e a Politização das Mortes no Brasil, projeto Reconexão Periferias, da Fundação Perseu Abramo.

Dos 54 casos analisados, 27 não apresentam nenhuma informação sobre seu encaminhamento legal. Apenas 14 resultaram em prisão, 11 chegaram à fase de inquérito, e os demais foram registrados com desfechos iniciais como boletins de ocorrência ou sem qualquer atualização posterior. A invisibilidade institucional dessas etapas revela uma realidade preocupante: a violência letal de gênero, quando cometida em chacinas, tende a desaparecer também no percurso judicial.

A fonte principal da pesquisa — as notícias jornalísticas — é um fator relevante para entender essa lacuna. As reportagens utilizadas na construção do banco de dados costumam ser produzidas nos dias imediatamente posteriores ao crime, e se baseiam em informações fornecidas por autoridades policiais ainda na fase inicial da apuração. Como a polícia informa o que sabe no momento, é natural que essas reportagens tragam apenas dados preliminares. No entanto, mesmo com o decurso de tempo, não há atualização sistemática sobre o que ocorre posteriormente na justiça. Isso não constitui apenas uma limitação metodológica: trata-se de um dado revelador do funcionamento institucional da resposta penal às

chacinas.

A ausência de informação — em especial sobre investigações, denúncias e julgamentos — é, em si, uma informação crítica. Ela evidencia que o sistema de justiça não acompanha, não sistematiza e, sobretudo, não torna público o desfecho da maioria dos crimes coletivos com vítimas mulheres. Essa omissão compromete a construção de políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero e impede que a sociedade compreenda a dimensão real da impunidade.

A ausência de responsabilização formal desses crimes — seja por falta de investigação, denúncia ou sentença — aponta para uma crise estrutural no enfrentamento à violência de gênero letal no país. Os dados não revelam um crescimento linear de casos ao longo dos anos, mas sim uma variação irregular, impactada por fatores como a cobertura jornalística e a pandemia de Covid-19, que reduziu a produção e publicação de matérias sobre feminicídio. Isso reforça a importância de olhar não apenas para a contagem de casos, mas para o que acontece com eles no sistema de justiça.

A pergunta que emerge da análise é direta: o que acontece juridicamente com as mulheres assassinadas em chacinas no Brasil? A resposta, infelizmente, é marcada por silêncio institucional. Os dados disponíveis sugerem que a maior parte desses casos permanece paralisada no inquérito ou sequer alcança essa etapa, e que o reconhecimento do feminicídio, quando ocorre, não garante continuidade nem responsabilização. O que chamamos para a atenção pública é que as relações de gênero desiguais são tão profundas que são capazes de produzir atos de violência extrema como as mortes múltiplas ligadas por uma única causa, as chacinas.

O feminicídio em chacinas representa uma dupla violência: a primeira, praticada contra o corpo da vítima; a segunda, exercida pelo Estado, que falha em nomeá-la, investigá-la e protegê-la postumamente. Quando os casos não geram ações penais, sentenças ou mesmo estatísticas consolidadas, o que se consolida é um pacto tácito de tolerância institucional à letalidade de gênero — sobretudo quando racializada e periférica.