‘A esquerda precisa entender o papel das mulheres no enfrentamento da extrema-direita’, opina Manuela D’Ávila
Em entrevista, a ativista feminista, ex-parlamentar, falou sobre seu trabalho organizativo para barrar o conservadorismo a partir das pautas de interesse prioritário das mulheres

Coordenadora do Instituto “E se Fosse Você?”, Manuela D’Ávila é jornalista, doutoranda em Políticas Públicas, e acumula expressivas votações como parlamentar, além de uma destacada campanha eleitoral na chapa presidencial em 2018, período acirrado de luta contra o bolsonarismo.
Autora de quatro livros, em que relata, principalmente, sua experiência como alvo de ataques de ódio nas redes sociais, nos últimos anos, está dedicada à construção da luta política fora do espaço institucional, o que, segundo ela, não significa de forma alguma aposentadoria.
“Estou empenhada em mostrar que a esquerda tem um equívoco imenso, e está cometendo um erro histórico que poderá cobrar um preço muito caro, que é o preço de não fazer o debate dos temas a partir do olhar das mulheres”, afirma D’Ávila.
De acordo com a ativista, é necessário voltar às bases de uma maneira diferente da convencional, ouvindo demandas que ainda não foram atendidas, em diálogo com as mulheres trabalhadoras, eleitoras decisivas na última eleição.
Nesta quinta-feira (8), ela organiza junto a uma rede de parlamentares mulheres de todo o país um “protocolaço” com uma proposta de abono de faltas para mães que faltam ao trabalho para acompanhar filhos em consultas médicas ou reuniões escolares.
Idealizadora do Festival MEL – Mulheres em Luta, que reuniu centenas de feministas em São Paulo no mês passado, Manuela D’Ávila defende a construção de uma frente em torno do tema e destaca a importância de compreensão das redes sociais enquanto lugar de participação política, além de ter como norte um olhar científico, que leva em consideração pesquisas de comportamento ao redor do mundo que apontam para homens, cada vez mais conservadores, e mulheres mais progressistas. Confira a entrevista:
Você sempre atuou dentro do campo feminista, mas, nos últimos anos, tem abordado a questão das mulheres com ainda mais dedicação, no sentido de contemplar o recorte das mulheres em diferentes frentes como na economia, no comportamento, na saúde, por exemplo. Você avalia que houve uma mudança de trajetória? E qual a importância de tratar dos temas das mulheres de maneira transversal ao invés de isolada?
Eu fui parlamentar muitos anos, sempre a mais votada do meu estado, e é difícil para alguém com representação parlamentar, com uma representação tão ampla como a minha, fazer o debate sem passar pelos temas gerais. Então, eu sempre debati as questões das mulheres atravessadas por questões mais gerais, mesmo do meu estado ou do país. Na minha pré-campanha à presidência em 2017 e 2018, antes de eu virar candidata à vice, esse já era um recorte central. A gente lançou um desafio e aquela pré-candidatura olhou o Brasil pelos olhos das mulheres, tentando desmistificar essa ideia de que os temas relacionados às mulheres são a pauta do particular e que existiria uma pauta universal que não passa pela gente. Eu acho super engraçado isso, mas ainda tem gente que defende. De lá para cá, o que mudou na minha interpretação é o fato de, sim, eu estar empenhada e mostrar que a esquerda tem um equívoco imenso, e está cometendo um erro histórico que poderá cobrar um preço muito caro, que é o preço de não fazer o debate dos temas a partir do olhar das mulheres, dizendo que esse olhar nos levariam para uma posição identitária, quando, na verdade, talvez a posição identitária fosse a eminentemente anterior, que defende e advoga uma pauta universal, que omite, sonega a existência das mulheres. Basta ver que nós nunca conseguimos transformar o tema das creches, por exemplo, em um tema nacional, mesmo que esse seja o tema que mais interessa a classe trabalhadora. Então, esse esforço que talvez tu estejas percebendo na construção, no approach do meu discurso, ele é muito mais para fazer com que a gente perceba o erro crasso que a gente está cometendo do que necessariamente uma mudança de rota minha, entende? Para mim, é desesperador que a gente esteja se apegando a debates superficiais, a um pensamento quase não científico sobre o papel das mulheres no enfrentamento à extrema direita no mundo e que a gente não esteja tentando se dedicar à compreensão das razões mais profundas pelas quais as mulheres são o centro das possibilidades de resistência à extrema-direita. Nesse final de semana, por exemplo, a Damares inaugurou o Instituto da Mulher no Rio de Janeiro, dentro da Assembleia Legislativa. Quem acompanha a agenda pública da extrema direita, sabe a energia que eles dedicam à construção de um papel para mulher no mundo deles, basta ver, por exemplo, que pipocam os casos e os exemplos de tradwives [esposas tradicionais], né? Enquanto isso, nós estamos apegados a uma refutação quase infantil, nos furtando de debater com a maior parte das usuárias dos serviços públicos brasileiros, das trabalhadoras que necessitam do Estado brasileiro e que tem garantido os nossos sucessos eleitorais, que são as mulheres.
Você citou em entrevistas que dialoga com o conceito, colocado por algumas filósofas, do “macho ferido”, que diz respeito ao ressentimento masculino com relação às perdas no papel de prover. Vemos que a carga de debater desigualdade de gênero acaba recaindo somente para as mulheres enquanto a masculinidade tóxica pode levar a casos de feminicídio, por exemplo. Como você analisa isso? Qual papel dos homens e como dialogar com eles?
Tem algumas pesquisadoras muito interessantes que tem se dedicado ao estudo dessas crescentes diferenças entre homens e mulheres. Crescentes, porque crescem com o passar dos anos e também porque crescem à medida que diminui a idade, ou seja, mulheres jovens são muito mais diferentes de homens jovens do que mulheres mais velhas são diferentes de homens mais velhos. Algumas, como é o caso da doutora Alice Evans, que inclusive veio ao Brasil para o Festival Mulheres em Lutas, chegam a dizer que as diferenças são tão crescentes e tão grandes que nós já não poderemos mais ter aquilo que chamam de geração, ou seja, de um conjunto de pessoas atravessadas por valores comuns a uma época. E eu, como não sou negacionista da realidade, e busco estudar muito, tenho tentado conter esse fenômeno global, um fenômeno que não é nem sequer apenas ocidental, ele é um fenômeno que atravessa também alguns países do Oriente, é o caso da Coreia do Sul. Mas é um fenômeno que aconteceu no Brasil, aconteceu na Argentina, acontece nos Estados Unidos, aconteceu na Alemanha, das mulheres se posicionarem a favor das ideias democráticas e dos homens jovens se somarem às ideias mais conservadoras, bolsonarismo, Milei, AfD,Trump. Bom, existem muitas explicações para isso. Existe evidente a análise de como corpos que são socializados diferentemente, ou seja, mulheres e homens não são treinados para ser as mesmas coisas no nosso mundo, né? Como reagem a uma crise que é tão grande? Um tempo marcado pela crise climática, pelos fluxos migratórios em função das guerras, do clima, uma mudança radical no mundo do trabalho, um mundo em que as pessoas trabalham cada vez mais e ganham cada vez menos. Tudo isso impacta a vida dos homens e das mulheres da classe trabalhadora, mas não impacta igualmente porque a socialização masculina, ela é a socialização do prover. Qual é o destino de um homem na civilização ocidental? Sustentar a casa.
Em um mundo em que o insucesso não é avaliado como algo coletivo, mas é atribuído aos indivíduos, ou seja, ninguém fala que o desemprego tem relação com a crise do capitalismo, o desemprego é pela tua falta de esforço, pela sua incapacidade. Como isso bate na cabeça de um homem treinado para prover uma casa? Bate de um jeito. Como bate no corpo de uma mulher? Somos treinadas socialmente para gostar, se importar, para o afeto. Então, percebe que o impacto, esse discurso não é da subjetividade abstrata, é altamente relacionada à crise do capitalismo. E eu acho que a gente precisa conectar isso com o que nós estamos vivendo. Um homem médio, ele vive pior que o seu pai. Por exemplo, os homens de 60 anos, eles alcançavam o mercado de trabalho e tinham uma carteira de trabalho, eram celetistas, eles tinham dignidade, não estou dizendo uma vida rica, mas de uma vida digna, sem fome. Um homem de 20 anos, em geral, vive pior que o seu pai. Uma mulher de 20 anos, em geral, vive melhor que sua mãe. Alguns psicanalistas chamam de ressentimento de gênero. E a extrema direita trabalha e organiza isso. Assim, vemos os feminicídios e as mulheres de esquerda como alvo central das campanhas difamatórias.

E se a extrema direita se organiza a partir do ódio, a esquerda tem, como base, quais princípios para travar esse debate?
Nós temos feito um esforço grande de mobilização real da chamada Frente Ampla a partir das mulheres para que a gente pare de ter abstração jurídica mobilizada a partir das grandes lideranças e que possa pensar no exercício da agenda comum dessa frente ampla na base. Então, quando nós unimos mulheres de nove partidos no MEL, por exemplo, buscando construir uma agenda comum para o Brasil, não para as mulheres, para o Brasil, nós estamos fazendo esse exercício. Nós dizemos lá que a nossa pauta deve ser diametralmente oposta a da extrema direita. Em qual sentido? Não só na agenda, o que seria óbvio. A extrema direita organiza a sua agenda comum a partir de questões muito estridentes e muito pouco práticas. Nós precisamos ser os mais populares, os mais vinculados à realidade. A tal da volta às bases, não é volta à mesma base de antes. É ouvindo o que não foi ouvido, é se relacionando com quem ainda não entrou na fila da política pública, a mulher trabalhadora. Então, acho que é esse é o mecanismo de enfrentamento.
Você afirmou que tem se mostrado um grande problema político não entender o papel das redes sociais e achar que elas dizem respeito à comunicação apenas. Nesse sentido, como você acha que podemos avançar? Qual a contribuição do seu doutorado na sua atividade política em relação a esse tema?
O meu doutorado é sobre a influência das ideias norte-americanas de liberdade na disputa geopolítica da regulação das redes, ou seja, como nós atribuímos um determinado tipo de comportamento nas redes, de regramento, à liberdade, quando, na realidade, isso serve aos interesses geopolíticos norte-americanos. E o que eu acho que existe de mais importante nisso é acompanharmos o desenvolvimento histórico da internet e a ideia de como nós aderimos a soluções muito impressionantes de um ideal de liberdade de um outro país que domina e subordina o nosso. Muito do que nos surpreende na internet tem relação com a origem do desenvolvimento dela. Os padrões algorítmicos racistas, por exemplo, a misoginia como um componente central e também os interesses dessas empresas, que muitos viam como empresas sem pátria, mas que são empresas que cada vez mais, nem posso mais dizer que são desmascaradas, elas próprias retiram as suas máscaras para servir aos interesses norte-americanos. O problema é que a nossa situação é de muita vulnerabilidade, porque o Brasil sequer armazena os dados da nossa população aqui. Outro tema é a maneira como nós tratamos as redes sociais e como nós, na política, achamos que é possível ajustar a comunicação via redes sociais sem compreender que o nosso problema nas redes não é um problema de comunicação apenas, pode ser também um problema de comunicação, eventualmente, mas é sobretudo um problema de incompreensão desse espaço como um espaço de debate político, de ideias, como uma assembleia popular, evidentemente, mediada por um algoritmo que nunca foi neutro. Mas nesse ambiente de disputa, em que a política é democratizada, cada vez mais pessoas debatem política. Nesse ambiente, o nosso problema é político, é de natureza política. Eu tenho dado o exemplo do que ocorreu na mudança do Pix. Não foi um problema da comunicação do governo, é injusto dizer isso. É um problema da ausência de compreensão, neste caso do Ministério da Fazenda, de como se elabora uma política pública em 2025, do ciclo da política pública. Antes a avaliação popular da política era feita após a implementação, e hoje essa avaliação é concomitante à elaboração. E nós podemos utilizar isso para incrementar as legislações. Quando eu relatei o Estatuto da Juventude na Câmara dos Deputados, 33% do projeto teve participação popular numa ferramenta simples, imagina, uma década atrás era muito mais precário do que é hoje, chamava-se E-Democracia. Por que nós não conseguimos aproveitar essas janelas para incrementar as legislações, mas mais do que isso, para disputar a opinião em torno do que nós estamos fazendo? Então, a incompreensão das redes, somada a uma subestimação da disputa política, do valor do discurso, do espaço democrático, acho que essa incompreensão tem nos custado muito caro. As redes não são só sobre comunicação, são sobre mobilização, organização, finanças, sobre disputa de ideias. E aí, a extrema-direita está nessa ofensiva e, na minha interpretação, nós não.
Você já falou que gosta de organizar processos de transição. E também, quando decidiu deixar de ser deputada federal e em outros momentos, passou por transições políticas para dar novos passos. Você tem planos de entrar em algum partido atualmente? Você tem pensado nisso?
Não avancei ainda na discussão com nenhum partido. Sou uma pessoa que acredita em partidos e que está sem partido, após 25 anos militando no PCdoB, por questões que me obrigaram a tomar essa decisão, por divergências internas insolúveis, as quais me dediquei profundamente para tentar solucionar por mais de cinco anos. Mas é evidente, que, como alguém que acredita na disputa política, eu devo tomar uma decisão. Ainda não sei qual será; não é fácil, não é um processo simples para quem leva a sério a política e os partidos.Também não tomei nenhuma decisão com relação à disputa eleitoral. Sou alguém muito convicta dos movimentos que fiz e acho importante que a gente aproveite o prestígio que construímos coletivamente para fazer com que determinadas lutas avancem. Então, meu prestígio eleitoral, que felizmente sempre foi muito grande, porque o povo sempre foi muito generoso comigo e eu sempre trabalhei muito para honrar essa generosidade, foi construído coletivamente, com as minhas qualidades, mas com o esforço de muitas mulheres e de muitos homens aqui do Rio Grande do Sul. E tentei fazer com que essa confiança pudesse também ser transferida a outras pessoas, e me orgulho disso. Agora, também nunca me aposentei da vida institucional; é que a gente está tão apegado à ideia de que as pessoas têm que ter mandato para sempre que acha que quem decide não concorrer numa eleição não tem mandato. Eu sou a única brasileira que disputou dois segundos turnos contra o bolsonarismo: em 2018 e 2020. Por isso, acho razoável não ter concorrido em 2022, inclusive trazendo debates que a gente menospreza, porque não são debates que os homens fazem, talvez porque não necessitem, já que eles não são o foco dos ataques da extrema-direita. Um deles é sobre saúde mental, acho sensato que eu traga essa discussão à esfera pública. O outro tema é a responsabilidade afetiva com minha família, que me apoiou e enfrentou ameaças intensas. Então, tomei minhas decisões baseada nisso. Da mesma forma, poderia tomar outra decisão eleitoral na próxima eleição, se isso representar o desejo de um campo político que precisa estar unido para derrotar a extrema-direita. Em 2018, tínhamos Boulos, Ciro e Haddad, e quem fez a flexão na candidatura para tentar construir a unidade fui eu, foi o PCdoB comigo. Então, jamais fui óbice para o arranjo de qualquer unidade. Agora, se essa unidade se der em torno do meu nome, também é uma possibilidade, mas não é uma condição. Entende? É isso. Política se faz em muitos espaços, com certeza. Infelizmente, faz muito tempo que as pessoas acham que só é possível fazê-la na vida institucional, mas também tem sido um desafio gostoso mostrar que não.
Na próxima quinta-feira (8), o movimento que você está construindo vai promover a unidade em torno de um “protocolaço”. Como vai ser?
Na quinta-feira faremos um protocolaço com dezenas de parlamentares em muitas Assembleias e Câmaras de capitais. São três projetos que se unem a um projeto federal, também protocolado por diversas parlamentares. O projeto nacional abona faltas, alterando a CLT para abonar faltas de mulheres que se ausentam para cuidados médicos de filhos ou reuniões escolares, evitando o desconto em folha. Os projetos estaduais e municipais são desdobramentos ajustados, considerando que a CLT é federal, para que a gente faça o debate sobre o que é a maternidade no Brasil. Lutamos para que o cuidado seja visto como trabalho, mas, no Brasil, as políticas de suporte à parentalidade são precárias, esquecemos que uma frase básica precisa ser repetida: as trabalhadoras também são mães. Porque a maior parte das mulheres assume os cuidados sozinha. Quais são as estruturas? Como nós pensamos? O projeto surge dessa demanda concreta e será um esforço bonito de dezenas de parlamentares de todo o Brasil.