O legado de Francisco, o papa das periferias, que uniu fé, justiça social e esperança em tempos de crise

Papa Francisco, um símbolo de diálogo, simplicidade e inclusão
Visita do Papa ao Brasil reuniu 3.7 milhões de pessoas no Rio de Janeiro em 2013, primeira viagem do Papa recém eleito. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, morreu nesta segunda-feira (21), em Roma, aos 88 anos. Primeiro pontífice latino-americano e jesuíta da história da Igreja, ele se destacou por conduzir um dos papados mais marcantes do século, marcado pela defesa dos pobres, dos marginalizados e pela promoção de uma Igreja mais próxima das periferias do mundo. O Vaticano informou que a morte ocorreu às 7h35 (horário local). Recentemente, o papa passou por longa internação em razão de complicações respiratórias.

Sua última aparição pública foi no domingo de Páscoa, na sacada da Basílica de São Pedro, onde proferiu com dificuldade suas últimas palavras públicas: “A paz é possível.” Visivelmente debilitado, Francisco teve sua mensagem lida por um clérigo assistente, encerrando um papado de 11 anos que aproximou o catolicismo de temas sociais urgentes sem alterar sua doutrina.

No comunicado oficial, o Vaticano anunciou: “O Bispo de Roma, Francisco, retornou à casa do Pai. Toda a sua vida foi dedicada ao serviço do Senhor e de Sua Igreja.”

Papa Francisco, um símbolo de diálogo, simplicidade e inclusão
Papa Francisco cumprimenta uma Praça de São Pedro lotada, no Vaticano
Foto: Vatican News

Papa das periferias

Nascido em Buenos Aires, em 17 de dezembro de 1936, filho de imigrantes italianos, Bergoglio ingressou na Companhia de Jesus aos 22 anos. Ordenado sacerdote em 1969, viveu sob a sombra da ditadura militar argentina, período em que, apesar de críticas por sua discrição, intercedeu por religiosos perseguidos e protegeu vítimas do regime.

Escolhido papa em 2013, após a renúncia de Bento XVI, adotou o nome Francisco em homenagem a São Francisco de Assis, revelando desde o início o viés pastoral e social que marcaria sua liderança. Ele logo se tornou símbolo de um papado “em saída”, voltado aos pobres, migrantes, populações indígenas, moradores de rua e prisioneiros. A expressão “periferias existenciais” se tornou central em seus discursos e documentos oficiais.

Francisco rejeitou os luxos do cargo, preferindo viver na Casa Santa Marta em vez dos aposentos papais. Viajou para campos de refugiados, lavou os pés de presidiários em missas da Quinta-Feira Santa, visitou favelas, abençoou crianças abandonadas e promoveu uma Igreja menos institucional e mais humana.

Críticas ao mundo fechado e desigual

Com uma postura progressista no discurso, embora conservador na doutrina, Francisco denunciou o egoísmo global diante das crises migratórias, a cultura do descarte, o preconceito contra os pobres e a destruição ambiental. “Aos pobres não se perdoa nem a própria pobreza”, escreveu em uma de suas mais importantes homilias.

Na encíclica Laudato Si’ (2015), alertou sobre os efeitos devastadores da crise ecológica e do modelo econômico excludente. Em Fratelli Tutti (2020), reforçou a fraternidade universal como antídoto ao ódio, ao racismo e à xenofobia: “Confundir unidade com uniformidade é uma tentação diabólica”, afirmou.

Repetidamente, denunciou o fechamento de fronteiras e a violência contra migrantes, como na sua visita a Lampedusa, em 2013, onde criticou a “globalização da indiferença”.

A última mensagem: “A paz é possível”

Na véspera de sua morte, Francisco enviou ao mundo sua derradeira mensagem de Páscoa. Com a voz frágil, defendeu que não pode haver paz sem liberdade religiosa, de pensamento e respeito às diferenças. Condenou a corrida armamentista e apelou aos líderes mundiais para que usem os recursos não em armas, mas no combate à fome e ao cuidado com os mais vulneráveis.

Pediu atenção especial a países como Mianmar, Ucrânia, Iêmen, Líbano, Síria, Sudão e Palestina. “Diante da crueldade dos conflitos que atacam civis indefesos, escolas e hospitais, não podemos esquecer que não são alvos que são atingidos, mas pessoas com alma e dignidade humana.”

Francisco também reiterou sua esperança em soluções pacíficas para as tensões no Cáucaso, nos Bálcãs e no continente africano. “O perdão triunfou sobre a vingança”, afirmou.

Reconhecimento político

A morte de Francisco gerou comoção global. No Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decretou luto oficial de sete dias. Em nota, afirmou que o Papa foi uma “voz de respeito e acolhimento ao próximo”, e destacou sua atuação em temas como justiça social, mudanças climáticas e desigualdades globais. “Ele sempre se colocou ao lado de quem mais precisa”, disse Lula.

O presidente também lembrou seus três encontros com Francisco: em 2020 e 2023 no Vaticano, e em 2024, durante a Cúpula do G7 na Itália, onde o Papa participou como orador e defendeu o uso ético da inteligência artificial e o fim das armas autônomas letais.

Janja da Silva, primeira-dama, também se reuniu com Francisco em fevereiro de 2025, em Roma, para discutir a situação de mulheres e meninas afetadas pela pobreza e a fome.

Papa Francisco, um símbolo de diálogo, simplicidade e inclusão
O Sínodo para a Região Pan-Amazônica, realziado por Francisco par debater a situação da região amazônica, como ecologia e direitos dos povos indígenas. Foto: reprodução/Vatican Media

A visita ao Brasil e a marca no continente

Em 2013, apenas meses após sua eleição, Francisco escolheu o Brasil como destino de sua primeira viagem internacional. Veio para a Jornada Mundial da Juventude, onde arrastou multidões em Copacabana e emocionou os fiéis ao visitar a favela da Varginha e o Santuário Nacional de Aparecida. Foi recebido pela então presidenta Dilma Rousseff.

Sua presença no país reforçou sua conexão com a América Latina e com os movimentos populares. Em discursos memoráveis, defendeu “terra, teto e trabalho” como direitos inalienáveis e pediu uma economia a serviço da vida, não do lucro.

Um legado gravado no coração do povo

O Papa Francisco deixará como herança um modelo de liderança espiritual voltado à compaixão, ao diálogo e à justiça social. Não mudou os dogmas centrais da Igreja, mas imprimiu uma guinada pastoral histórica, colocando os excluídos no centro da missão católica.

Lula resumiu seu legado citando a oração de São Francisco: “O Papa buscou de forma incansável levar o amor onde existia o ódio. A união, onde havia a discórdia.”

Francisco dizia que queria uma Igreja “pobre para os pobres”. Foi essa imagem que ele cultivou: a de um pastor que não teve medo de tocar as feridas do mundo — e de apontar as chagas de uma humanidade cada vez mais indiferente. Sua morte encerra uma era, mas suas palavras ecoarão onde mais desejava: nas periferias, onde pulsa a vida que ele sempre defendeu.