A persecução penal dos comandantes da trama golpista será educativa para todo aquele que ouse atentar contra o Estado Democrático de Direito, seja um cabo, um soldado ou um general, escreve Alberto Cantalice, diretor da FPA 

Incriminação de militares na tentativa de golpe é resposta histórica da democracia
Manifestação estudantil contra a ditadura militar, foto de junho de 1968 Foto: Wikimedia

A nociva interferência de integrantes das Forças Armadas do Brasil na política nacional remonta ao ano de 1889, na Proclamação da República. “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada”, escreveu o jornalista Aristides Lobo em sua coluna no Diário Popular, no dia 15 de novembro daquele ano.

A assunção ao governo do marechal Deodoro da Fonseca, secundado pelo também marechal Floriano Peixoto, deu início às sucessivas “intervenções” militares na história brasileira. Salvo o período do também marechal Hermes da Fonseca e de Eurico Gaspar Dutra, eleitos respectivamente em 1910 e 1946 pelo voto popular, as demais intervenções, à esquerda e à direita, se deram pela forma e pelo caminho do golpismo.

Pontificam-se como exemplos dois episódios nem tão distantes assim na linha do tempo da história: a chamada Intentona Comunista de 1935 e a tentativa de golpe integralista em 1937 contra o governo de Getúlio Vargas, que, fruto da Revolução de 1930, liderou a derrubada do governo de Washington Luís com o apoio inicial de parte do movimento tenentista e, posteriormente, da cúpula das forças militares. Essas mesmas forças sustentaram o Estado Novo varguista e foram determinantes na sua deposição em 1945.

Partiu da denominada “República do Galeão” — uma investigação aberta pela Aeronáutica para elucidar o atentado ao então deputado Carlos Lacerda, que vitimou o major da Força Aérea Rubens Vaz, responsável por sua segurança informal — a ofensiva que chegou ao círculo íntimo de Getúlio. Acuado pela tentativa de deposição do mandato, Vargas acabou por tirar a própria vida com um tiro no coração em 1954.

Dali em diante, recrudesceu a tentativa de injunção militar na política. No governo Café Filho, foi preciso que o marechal Henrique Lott emparedasse os quartéis no episódio conhecido como Novembrada para, num contragolpe, garantir a posse da chapa Juscelino-Jango, vencedora do pleito presidencial de 1955.

Ainda assim, no mesmo ano, um grupo de oficiais da FAB ocupou a base aérea de Jacareacanga, no sul do Pará, exigindo a deposição do presidente. Anistiados pelo próprio JK, parte deles, liderada pelos oficiais Haroldo Veloso e João Paulo Moreira Burnier, em 1959 roubou aviões e rumou para a cidade de Aragarças, em Goiás, em um ato de rebelião contra o governo.

Os militares voltaram a dar o ar da graça quando da renúncia do presidente Jânio Quadros: os chefes militares Odilo Denis (Exército), Grum Moss (Aeronáutica) e Silvio Heck (Marinha) se insurgiram contra a posse do vice-presidente João Goulart. A resistência da caserna foi rompida pela adesão do general José Machado Lopes, do III Exército, no Rio Grande do Sul, que aderiu à Cadeia da Legalidade, organizada pelo então governador do estado, Leonel Brizola.

Derrotados em 1961, os golpistas encastelados nos quartéis deram seguimento à conspiração que resultou no malfadado golpe civil-militar de 1964, que cassou mandatos, prendeu, torturou, exilou e matou milhares de brasileiros. Durante seus 21 anos de duração, a impunidade de seus autores permitiu a continuidade da chamada tutela militar, tal qual uma Espada de Dâmocles pairando sobre a democracia brasileira. No ano passado, lançamos aqui, na FPA, uma edição especial da revista Teoria e Debate sobre as seis décadas passadas desde esse que foi um dos mais tenebrosos golpes à nossa democracia.

A impunidade dos golpistas, torturadores e assassinos da ditadura é uma mácula na história latina. Foi a única ditadura militar da América do Sul anistiada da forma como foi. Em todos os países onde houve golpes militares, os seus perpetradores enfrentaram o banco dos réus. Essa impunidade deu azo para que os atuais réus do golpe — cujo desfecho principal se deu no 8 de janeiro de 2023 — tentassem novamente ocupar o poder por linhas tortas, prisões e assassinatos. Não sabemos como estaríamos hoje, mas temos uma ideia.

A persecução penal dos comandantes da trama golpista será educativa para todo aquele que ouse atentar contra o Estado Democrático de Direito, seja um cabo, um soldado ou um general.

A nação e, principalmente, a democracia ganharão musculatura e força com a decisão serena e baseada nas provas do processo legal conduzido pelo Supremo Tribunal Federal. Ninguém, por mais importância que tenha, está acima das leis.

A cidadania agradece!