O que aconteceu com a Europa?, por Yanis Varoufakis
Em discurso realizado no encontro do DiEM25, em Bruxelas, Yanis Varoukafis faz um apelo para ações ousadas, incluindo a saída da Europa da OTAN, um programa de investimento verde, uma nova comunhão monetária, e o combate ao tecnofeudalismo
Certa vez tivemos um sonho. Era um sonho do que a Europa poderia ter sido. Uma Europa de prosperidade compartilhada, dignidade, liberdade – uma Europa de Paz e Esperança. Esse sonho agora está morto, perdido, acabado, kaput. Por quê? O que diabos aconteceu com a Europa?
Sabemos o que aconteceu com a Europa! Sabemos por que políticos de todos os lugares estão pousando sobre Bruxelas hoje como drones maníacos, determinados a bombardear o que resta da Europa como um Projeto de Paz – determinados a transformar a cambaleante União Europeia em uma União de Guerra. Sabemos o que aconteceu com a Europa porque previmos isso. Quando o DiEM25 foi lançado há nove anos no Volksbühne Theatre em Berlim, dissemos em alto e bom som: “a Europa será democratizada, ou irá se desintegrar!” Bem, a Europa não se democratizou e por isso está se desintegrando – está insurgindo-se em uma união totalitária de guerra.
Austeridade para muitos e impressão de dinheiro para poucos gerou estagnação misturada com desigualdade desalentadora. Sempre que o capitalismo estagna e a desigualdade aumenta, enquanto a esquerda se junta ao centro na tentativa inútil de sustentar um stablishment liberal falido, o fascismo e a guerra nunca estão muito distantes. Assim como na década de 1930, duas variedades de totalitarismo começaram a disputar o poder.
De um lado, a direita neofascista radicalizada promete nos tornar grandes novamente não acabando com a austeridade ou exploração, mas através de um acerto de contas moral – uma limpeza cultural que visa os corpos estrangeiros impuros dentro do corpo puro da nação ou de uma Europa etnicamente branca-cristã-patriarcal: estrangeiros, trans, lésbicas, muçulmanos e judeus, especialmente aqueles que se opõem aos benefícios de limpeza do genocídio, são o inimigo interno.
Do outro lado, os centristas totalitários radicalizados conseguiram manter sua relevância como o único baluarte contra os fascistas, aprofundando a crise que alimenta o fascismo e, assim, sua reivindicação de serem nossa última defesa contra o fascismo que reforçam um ciclo vicioso perfeito impulsionando o totalitarismo.
Como os personagens de Lewis Carroll, Tweedledum e Tweedledee, os centristas totalitários radicalizados colidem com a direita neofascista radicalizada, sufocando a política democrática, tornando o totalitarismo grande novamente. Que não nos esqueçamos: não precisamos esperar que os fascistas ganhassem o governo antes de nosso magnífico referendo de julho de 2015 na Grécia ser derrubado. Não precisamos esperar que os fascistas ganhassem o governo antes que Melanie Schweizer fosse demitida de seu cargo de serviço público na Alemanha por não apoiar o genocídio. Não precisamos esperar que os fascistas ganhassem o governo antes que eu fosse proibido de entrar na Alemanha, mesmo via Zoom!
Não precisamos esperar que os fascistas ganhassem o governo antes que as eleições presidenciais romenas fossem proibidas porque os centristas totalitários radicalizados não gostaram do resultado. A única diferença substancial entre nossos tempos e a década de 1930 é que Tweedledum (os centristas totalitários radicalizados) e Tweedledee (a direita neofascista radicalizada) trocaram de lugar quando se trata de guerra: hoje, de forma um tanto confusa, é Tweedledum (os centristas totalitários radicalizados) que estão armando o keynesianismo militar e exigindo mais guerra, enquanto Tweedledee (a direita neofascista radicalizada) proclamam paz – uma paz totalitária e assustadora.
Por que nós, DiEM25 ,falhamos?
Sim, previmos tudo isso em 2015. Mas isso não nos impediu de falhar em evitá-lo, um lembrete cruel de que estar certo não é suficiente. Por que falhamos? Por que perdemos a onda popular que favoreceu nosso lado em 2015, permitindo que os fascistas explorassem a sede revivida por radicalismo?
Sim, é verdade, fomos impiedosamente espremidos entre Tweedledum (os centristas totalitários radicalizados) e Tweedledee (a direita neofascista radicalizada). Mas, também cometemos alguns erros inocentes:
Investimos demais no keynesianismo verde, esquecendo a lição atemporal de que, mesmo quando adota o keynesianismo como último recurso, a classe dominante sempre o abandonará assim que sua linha de fundo se recuperar – muito antes que muitos provem seus frutos. Nosso new deal verde nunca foi adotado, exceto parcialmente no nome. Não é de se admirar que, na mente dos muitos que lutam, “verde” se tornou sinônimo de padrões de vida ainda mais baixos.
Também demonstramos incapacidade de libertar as pessoas da exploração, oferecendo-lhes apenas a liberdade de escolher seus pronomes em nosso meio – o que, claro, seria aceitável se não fosse tão pateticamente inadequado na grande estrutura das coisas. Em vez de organizar os informais e os trabalhadores da indústria automotiva, acabamos organizando signatários, aparecendo como uma vanguarda intelectual auto-proclamada desfrutando do entusiasmo subversivo de uma revolução imaginária, com todos os confortos e apetrechos de um convescote da classe dominante.
E, por último, mas não menos importante: pensamos que poderíamos mobilizar os partidos de esquerda e verdes existentes por toda a Europa, apenas para descobrir que não estavam interessados.
O que devemos fazer agora?
E agora? O que devemos fazer? Vamos começar reconhecendo que estamos no fim de uma guerra de classes impulsionada por quarenta anos de austeridade feroz e no início de um novo ciclo de keynesianismo militar, xenofobia armada, totalitarismo por dentro e tecnofeudalismo ao redor.
Portanto: É hora de ser ousado. Hora de ser claro sobre sete questões cruciais:
Sobre Paz com Segurança e como acabar com a carnificina nos campos de batalha da Ucrânia, onde vidas são devoradas com uma precisão mecânica implacável, devemos:
- Rejeitar completamente a apreensão predatória de recursos naturais da Ucrânia por Trump.
- Lutar para tirar toda a Europa da OTAN, imediatamente!
- Traçar um caminho para uma Europa não alinhada, mas nunca neutra.
- Aplicar o relaxamento das sanções e devolver os U$ 300 bilhões da Rússia em ativos congelados, iniciar negociações com o Kremlin e Pequim sobre um arranjo estratégico abrangente, dentro do qual a Ucrânia se torne o que a Áustria foi durante a Guerra Fria: soberana, neutra e integrada à Europa como seus cidadãos desejarem.
Sobre prosperidade verde: Opor-se ferozmente ao keynesianismo militar, substituindo-o por um vasto programa de investimento verde que combine desenvolvimento com decrescimento.
Sobre dignidade: lutar por uma nova comunhão monetária que marginalize os bancos privados, ofereça um fundo fiduciário a todos e garanta um dividendo pessoal – uma renda básica – para cada um.
Sobre migração: transformar a acusação de que somos brandos com os estrangeiros em uma virtude. Gritar aos quatro ventos que a Europa sem migração em massa irá morrer – que queremos migrantes não por solidariedade, mas por interesse próprio.
Sobre combater o tecnofeudalismo: sancionar imediatamente os senhores da tecnologia “cloudalista”, restringir Amazon, Uber, Google, Meta, Airbnb, taxá-los até a extinção, impor interoperabilidade, acabar com a proibição de empresas de tecnologia europeias, como ASML, exportarem para a China e, acima de tudo, desenvolver nosso próprio capital socializado em nuvem – os indícios de um magnífico tecnossocialismo.
Sobre liberdade: desmontar o totalitarismo agora. Lutar pela liberdade de voto de todos, pela liberdade de expressão de nossos inimigos também – ao contrário do hipócrita JD Vance, que corretamente se manifestou contra o aumento da censura na Europa, mas nunca defendeu o direito de Julian Assange ao jornalismo ou a liberdade de expressão dos opositores ao genocídio dos palestinos.
Falando sobre Palestina e liberdade de expressão, está claro agora (não está?) que o que começou em Gaza não fica em Gaza! Tamanha brutalidade não pôde ser contida. Para mantê-la fora de nossos meios de comunicação, de nossas instituições culturais, das ruas, eles tiveram que dissolver liberdades básicas nos EUA, na Alemanha, na França, em todo o Ocidente. É por isso que nossa última, nossa sétima campanha deve ser: parar o genocídio. Fazer com que toda a Europa boicote, desinvista e sancione o último estado do Apartheid – assim como fizemos contra a África do Sul.
Amigos, companheiros, camaradas, temos muito a fazer. O sonho europeu está morto. Viva o novo sonho que estamos começando a sonhar esta noite. Juntos!
Economista e político grego, ex-membro do partido SYRIZA. Foi ministro das Finanças do Governo Tsipras em 2015, tendo sido sucedido por Euclides Tsakalotos.
Tradução: Fernanda Otero