As eleições na Alemanha e os desdobramentos do encontro de segurança em Munique, por Cleire Sambo
Crise política na Alemanha, protestos contra a extrema-direita e a nova estratégia europeia de segurança
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Na Alemanha, a eleição tanto do Presidente quanto do Chanceler é indireta. O Chanceler é escolhido pelo Parlamento, e o Presidente é eleito por um Grêmio Constitucional composto por representantes do parlamento e da sociedade civil. Não há eleição direta pelo voto popular para esses dois cargos máximos do governo. O governo atual de Olaf Scholz é um governo de coalizão. Mas foi colocado em xeque devido à crise ecnômica que se agravou em 2024.
A migração tem sido, há décadas, um tema central nas campanhas políticas do partido conservador CDU (União Democrática Cristã), o maior partido popular da Alemanha. Ao destacar a questão da migração, o CDU atrai votos da extrema-direita, de eleitores conservadores com visões xenófobas, indecisos e descontentes com o governo. Essa estratégia também desvia a atenção de outros temas cruciais, como tributação, saúde e melhorias na rede hospitalar, meio ambiente, energia e abastecimento, economia e emprego, e os aumentos abusivos no mercado imobiliário. O debate sobre a migração, portanto, pode ser visto como uma manobra para proteger a reeleição de candidatos já conhecidos.
O candidato a Chanceler do CDU, Friedrich Merz, apresentou um projeto de lei para limitar o fluxo de imigrantes. No entanto, após um debate acalorado no parlamento, o projeto foi rejeitado por 348 votos contra 338. Merz obteve os 338 votos a favor do partido de extrema-direita AfD (Alternativa para a Alemanha).
O líder da bancada do SPD (Partido Social Democrata), o partido do governo atual, Müntzenich, criticou Merz, afirmando que ele “perdeu por ter buscado o apoio do AfD”.
O fim da coalizão entre SPD, Die Grünen/Verdes e FDP levou a novas eleições parlamentares em fevereiro. A estratégia de Merz de se aproximar do AfD, um movimento à direita, foi explorada pelos outros partidos como um tema de campanha, incentivando a formação de uma nova coalizão governamental.
Manifestações populares em defesa da democracia contra a extrema direita
Grandes cidades alemãs foram palco de manifestações em defesa da democracia e contra a extrema-direita nos sábados, 8 e 15 de fevereiro de 2025. Em Munique, participei de ambos os eventos e posso confirmar que, segundo contagem de drones da organização, cerca de 320 mil pessoas compareceram. Nas redes sociais, estimativas chegaram a milhões de manifestantes. Há um temor crescente entre os cidadãos alemães com o fortalecimento do partido AfD, que atualmente possui 76 representantes no Parlamento, com tendência de crescimento. O lema “Nie wieder”, “Never again”, “Nunca mais”, ecoa por todo o país, refletindo o medo do retorno de fantasmas do passado.
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Em Berlim, cerca de 200 mil pessoas se reuniram em 8 de fevereiro sob o lema “Wir sind die Brandmauer” (“Somos o muro corta-fogo”), e mais de 15 mil compareceram à manifestação do dia 15. Em Frankfurt, 15 mil pessoas protestaram em 15 de fevereiro. Os protestos se espalharam por outras cidades, levando milhares às ruas em defesa da democracia.
Conferência de Segurança de Munique e o Discurso do Vice-Presidente dos EUA JD Vance
A Conferência de Segurança de Munique, com o tema “Mundo Multipolar”, abordou questões do mercado internacional e competitividade, incluindo a perda de competitividade da Alemanha em relação à China. Representantes do povo alemão discutiram temas de segurança nacional e sobre os custos dos investimentos em armamentos nesta década.
Outro tema central foram as negociações sobre a paz na Ucrânia, a segurança nacional dos países e as questões de armamento para garantir a segurança das fronteiras, tanto na Europa quanto nos EUA e em âmbito mundial.
O Discurso do Vice-Presidente JD Vance na Conferência de Segurança em Munique
Desde 1963 Munique é sede da Conferência de Segurança. A entidade Stiftung Münchener Sicherheitskonferenz é a organizadora deste evento internacional. Tem sido tema na mídia local nos comentários e entrevistas dos governantes e de prominentes políticos alemães a mudança radical na tática e na diplomacia do governo norteamericano com os países da Europa após 62 anos de cooperação estratégica.
O discurso do Vice-Presidente dos EUA, JD Vance, surpreendeu a todos, tentou desviar do tema central da conferência e da Guerra na Ucrânia, criticando os governos europeus por serem “não democráticos” em relação à inclusão da extrema-direita. Isso gerou revolta e protestos oficiais de todos os presentes, incluindo o Chanceler Olaf Scholz, que respondeu diretamente ao vice-presidente norteamericano, afirmando que o governo alemão não precisa de lições de governos estrangeiros e que, ao contrário de muitas ditaduras, a Alemanha respeita e exerce a democracia. Olaf Scholz acentua que não será tolerada qualquer influência ou interferência externa direta na campanha eleitoral alemã. “Entre amigos e aliados não se deve agir assim”, completou o Chanceler no seu discurso inicial.
A Conferência de Segurança de Munique representa uma oportunidade para acabar com a guerra na Ucrânia e trazer a paz de volta à Europa. O Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky chegou à conferência no dia 15 de fevereiro, após discussões entre líderes europeus a favor de uma conversa direta entre representantes americanos e ucranianos. Isso ocorreu após o presidente Donald Trump e seus ministros terem ignorado os ucranianos e Trump ter buscado diálogo diretamente com o presidente Vladimir Putin. O governo americano entrou na conferência declarando que a Ucrânia não teria chance de entrar na OTAN e que os territórios ocupados pela Rússia não seriam devolvidos. Trump, mesmo não estando presente, foi representado por seus ministros, e sua influência foi sentida.
A existência da OTAN e das alianças da União Europeia com os Estados Unidos foram questionadas na conferência. Os EUA priorizam as alianças de segurança no Oriente Médio e no Sul da Ásia/China, buscando reter a hegemonia no mercado de petróleo e gás, no mercado de chips e produção digital e no mercado de inteligência artificial, pois estão perdendo espaço para a China. A exigência de Trump para que os países da OTAN aumentem os investimentos em defesa para 5% do PIB se mostrou inviável. Os principais temas de segurança para os países europeus se tornaram a independência nas questões de defesa e a mudança de estratégia de investimentos internos em detrimento da economia nacional e da área socioambiental. A estrutura da OTAN e a “ajuda” dos EUA deverão ser modificadas dentro deste cenário político-econômico.
Sem a participação dos representantes da União Europeia ou da Ucrânia, os representantes dos EUA celebraram encontros bilaterais com a Rússia para organizar um encontro do Presidente Trump com o Presidente Putin na Arábia Saudita, a fim de tratarem sobre o conflito na Ucrânia. Em contrapartida, falando em nome da União Europeia, o Presidente da Finlândia, Alexander Stubb, declarou ser absolutamente inegociável a decisão soberana e independente do povo ucraniano sobre sua adesão à União Europeia e à OTAN. Ele reforça que estas duas decisões competem somente à Ucrânia e ao povo ucraniano.
Os resultados políticos e estratégicos desta Conferência de Segurança em Munique 2025 levaram o presidente da França Emmanuel Macron a convidar um grupo de representantes dos países europeus membros da OTAN a se reunirem em Paris a fim de discutirem as novas condições de negociações com os EUA, mas sobretudo para encontrar novas soluções para a segurança e a defesa da União Europeia. Fala-se sobre a formação de um exército europeu. Nesta Conferência de Munique, definiu-se um novo e decisivo marco estratégico na diplomacia, no orçamento e na geopolítica dos países da União Europeia. O governo Trump moldou significativamente novas relações entre os Estados Unidos e os demais países da OTAN.
Christoph Heusgen (embaixador e Presidente da Conferência de Segurança em Munique) viu a fala de JD Vance como um sinal positivo, para deixar claro, que “não há mais valores comuns entre a União Europeia e o governo dos EUA“. Os participantes foram unânimes ao afirmar que assim a Europa vê a partir de agora a chance de criar, independente dos EUA, um novo e próprio sistema de segurança e defesa, a repensar um sistema unificado na produção de armamentos, a partir da grande diversidade de produtos da indústria bélica europeia.
Em suma, pode-se dizer que esta Conferência 2025 foi um marco para uma nova era nas relações internacionais entre a União Europeia com os EUA.
Fontes: ARD/ZDF interviews; site da Münchener Sicherheitskonferenz
Cleire Sambo, é jurista no Brasil e na Alemanha, é tratudora e intérprete e militante política em ambos os países