O CFM e sua (má) influência à saúde pública brasileira
Ao perseguir professora Lígia Bahia, órgão adota postura revanchista e abusa do acesso ao poder judiciário
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O Conselho Federal de Medicina lutou durante a década de 1980 ao lado da população pela democracia e pela implementação do Sistema Único de Saúde (SUS). Nas últimas décadas entretanto, foi aos poucos sendo invadido por autênticos representantes da anti ciência e recomendou ações que violam direitos constitucionais e não tem base científica.
Dois episódios recentes ilustram o obscurantismo que paira sobre as decisões do colegiado. A primeira delas aconteceu durante a pandemia da Covid 19 através do Processo-Consulta CFM Nº 8/2020 – Parecer CFM Nº 4/2020.
Embora o relatório admitisse que não existissem “estudos clínicos de boa qualidade que comprovassem a eficácia” do uso do medicamento cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes com Covid 19, um dos pontos da conclusão afirmou que a “administração de um medicamento que não tem efeito comprovado” poderia ser utilizado a critério do médico desde que fosse relatado “ao doente que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da Covid 19, explicando os efeitos colaterais possíveis, obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares”.
O médico Francisco Eduardo Cardoso, atual vice-corregedor do órgão, durante um julgamento da Justiça Federal do Piauí disse que os médicos que não prescrevessem cloroquina contra a Covid 19 “lavariam as mãos com o sangue das vítimas”. Ele foi chamado a depor na CPI da Covid, em 2021. Seu depoimento foi marcado pelo abandono de senadores do plenário. O então relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), se recusou a fazer perguntas e se retirou da sessão. O Senador Humberto Costa (PE) e Randolfe Rodrigues (AP), ambos do PT, também se retiraram.
Outra decisão assombrosa do órgão foi a Resolução nº 2.378/2024 referente aos procedimentos de interrupção da gravidez nos casos de aborto previsto em lei, ou seja, feto oriundo de estupro, proibindo aos profissionais de medicina “a realização do procedimento de assistolia fetal quando houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas”, alegando ainda que o ato “ocasiona o feticídio”.
Uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) apontou que houve “abuso do poder regulamentar” por parte do Conselho Federal de Medicina, ao aprovar a Resolução. Segundo o STF, o Conselho Federal de Medicina ultrapassou suas competências ao “criar uma norma que não está contemplada na legislação, visando proibir a prática em casos de gestações resultantes de estupro”.
Extrema-direita amplia participação
A chapa vencedora das eleições de 2024 do CFM foi a Força Médica, que se apresentava como “uma chapa de direita conservadora” e pela “defesa da vida e contra a cultura da morte”.
Entre os 54 conselheiros titulares e suplentes eleitos, apenas 12 são mulheres, três a menos do que a composição anterior. Em 15 estados não há mulheres na composição das chapas eleitas.
No Distrito Federal, foi eleita a conselheira Rosylane Nascimento das Mercês Rocha, que era segunda vice-presidente na gestão anterior. Em janeiro de 2023, ela comemorou nas suas redes sociais os ataques aos prédios do governo brasileiro, do Congresso Nacional e STF e compartilhou imagens da invasão do Congresso Nacional com a legenda “Agora vai”, chamou os golpistas de “pessoas de bem” e celebrou a inação da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) que não agiu para impedir a invasão dos prédios públicos. Em outra publicação, a médica compartilhou a imagem da escultura “A Justiça” pichada com a frase “perdeu, mané”.
O professor titular sênior de Saúde Pública na USP, Paulo Capel Narvai, autor, entre outros livros, de “SUS: uma reforma revolucionária” (Editora Autêntica) tem uma teoria sobre as origens do processo corrosivo que se abateu sobre o CFM. Em artigo publicado no site A Terra é Redonda, o professor explica que as bases estariam “na extração de classe em segmentos sociais herdeiros, simbolicamente, de posses e poderes de donos de capitanias hereditárias e sesmarias. São, simbolicamente (mas, em alguns casos, também literalmente), filhos, netos, bisnetos e tataranetos do ‘senhor de engenho colonial’, do ‘latifundiário improdutivo’ e do ‘fazendeiro escravocrata’ acostumados a lidar com jagunços, capitães do mato e capangas”.
Perseguição à professora Lígia Bahia
A médica sanitarista, professora associada do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ), Lígia Bahia, é referência indispensável no debate sobre as políticas de saúde no Brasil. Ela está sendo processada pelo CFM por calúnia e difamação devido a uma entrevista concedida ao programa Em Detalhes, do canal do YouTube do Instituto do Conhecimento Liberta.
Na entrevista, ela criticou o comportamento do CFM durante a pandemia e condenou a decisão quanto aos procedimentos definidos em lei sobre o aborto em casos de estupro.
O professor Narvari saiu em defesa da colega argumentando que o processo viola o código deontológico do CFM e age contra o “Código de Ética Médica”, aprovado em 2018.
Também manifestaram-se em defesa da professora a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC), a Fiocruz, o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, a Escola de Enfermagem da USP e o Observatório de Análise Política em Saúde.