As políticas de Donald Trump podem provocar as mesmas práticas em outros países; termo ilegal não é consenso e abre discussão

Ilegal ou indocumentado? Uso da palavra abre discussão sobre direitos humanos entre imigrantes
Força de segurança dos EUA, ICE apreende imigrantes como criminosos após a posse de Trump Foto: Reprodução/Casa Branca

Os primeiros dias do retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos foram marcados por turbulência e cassada aos imigrantes indocumentados que vivem em território estadunidense, condição que classifica os imigrantes na situação de “ilegais”. 

Em um anúncio realizado na Casa Branca, no dia 29 de janeiro, o presidente Trump disse que a Base Naval de Guantánamo, prisão marcada pelos horrores ali perpetrados, localizada em território cubano, seria reformada para receber até 30 mil imigrantes. 

O presidente alegou que alguns desses imigrantes “são tão maus que nem confiamos nos países para mantê-los presos, porque não queremos que eles voltem”. A medida “duplicaria nossa capacidade de imediato” para reter os imigrantes. Segundo Trump, Guantánamo é um “lugar de onde é difícil sair”.

Em resposta ao anúncio, o presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel Bermúdez, postou em seu perfil na rede X, que Guantánamo está localizada em um “território ilegalmente ocupado”.  O líder cubano classificou o ato como brutal ressaltando que são conhecidos os episódios de “tortura e detenção ilegal” praticados no local.

O governo dos Estados Unidos incorre em um ato ilegal ao manter as instalações de Guantánamo. Relatórios internos do governo obtidos pelo The New York Times em setembro de 2024 juntamente com entrevistas com migrantes e grupos de defesa de direitos, trouxeram mais detalhes sobre as condições em Guantánamo, incluindo alegações de que os migrantes são forçados a usar óculos de escurecimento durante o transporte pela base; que suas ligações com advogados são monitoradas; e que algumas áreas são impróprias para habitação, com ratos e banheiros transbordando.

Ilegal ou indocumentado? Uso da palavra abre discussão sobre direitos humanos entre imigrantes
VELHO OESTE – O perfil oficial da Casa Branca no ‘X’, publica “placas” com números, fotos e nomes de imigrantes presos Foto: Reprodução ‘X’/@TheWhiteHouse

Ilegal ou indocumentado?

Os termos “indocumentado” e “ilegal” possuem origens e conotações distintas, que refletem diferentes perspectivas sobre a situação migratória de uma pessoa. O termo “indocumentado” surgiu como uma alternativa mais neutra e humanizada, buscando reconhecer a falta de documentação legal sem atribuir o estigma ou a criminalização associados ao termo “ilegal”, mais popular no uso institucional.  

Por outro lado, “ilegal” pode gerar interpretações de conotação negativa mais acentuada, pois sugere uma violação direta de leis e evoca uma ideia de criminalidade. Essas diferenças nas conotações impactam profundamente o modo como as pessoas nessa condição são tratadas, influenciando tanto as políticas públicas quanto o tom do debate sobre imigração.

Procurada pela revista Focus Brasil, a linguista Bianca Marquezi (USP), explica a origem da palavra e esclarece o uso do ponto de vista linguístico. “A etimologia de legal é legere, que, em latim, vem de lex, que significa lei”. 

A professora reflete que “quando falamos sobre o uso de uma palavra, é essencial considerar que ela é composta pelo símbolo, seja ele escrito ou falado, aliado a uma definição que carrega um sentido. No entanto, o sentido é o ponto crucial, pois, muitas vezes, ao pronunciarmos uma palavra com uma intenção específica, a outra pessoa pode interpretá-la de uma maneira completamente diferente”. Em suma, o emissor “atribui à palavra alguns valores partidários e morais”.

Bianca Marquezzi considera que existe “uma corrente” que tenta “amenizar as coisas” provocando um “grande eufemismo”. Ela afirma que o termo quando vem de uma pessoa como Donald Trump, uma figura “estereotipada”, traz um peso diferente. Mas ela também reconhece que “a gente tem que ter plena consciência de que a escolha lexical, ela importa. E vai ter um desdobramento sobre isso. As pessoas vão interpretar a partir daquilo que você fala”.

Os efeitos de Donald Trump

A escolha do termo ilegal por Donald Trump certamente carrega este valor moral e partidário, haja vista sua obsessão por “fazer a América grande de novo” a qualquer custo. Donald Trump não possui os meios legais para promover as ilegalidades que intenciona, mas ocupa uma cadeira privilegiada. Sua caneta transforma o ontem ilegal em legal hoje.

“Quem sofre sabe o que sofre”, diz um brasileiro indocumentado vivendo na Irlanda, ouvido pela reportagem em anonimato. Ele teme que as ações de Trump nos EUA possam ser mimetizadas por outros países. Ele alimenta o sonho de “poder ir, sair, poder trabalhar, poder seguir com minha profissão”.

O brasileiro descreve sua situação de isolamento social. “Dependendo do grupo ao qual se pertence, a participação é limitada. Por exemplo, no meu caso, eu limitei bastante a minha participação. Em virtude da minha situação, não estou mais à frente de nada. Estou escondido, não posso me manifestar politicamente. Então, há vários pontos que fazem com que minha limitação — não só (do espaço) físico, mas também intelectual — seja exposta”, explica.

A escolha do termo ilegal, segundo os imigrantes, traz “um contexto muito pesado”, gerando um dano psicológico ao emigrado.  “Se você teve um processo e, digamos, recebeu uma carta solicitando que deixe o país ou algo semelhante já em andamento para que você saia, então você está em uma situação de ilegalidade. Já o indocumentado está em um período em que não iniciou nenhum processo, e a justiça não tem conhecimento sobre sua situação, seus possíveis pedidos ou os direitos que ele pode ter”.

Relatório IOM 

O último relatório de migração da Organização Internacional para as Migrações da Organização das Nações Unidas, OIM ONU, lançado em 2024, destacou que “a migração internacional permanece sendo um impulsionador de desenvolvimento humano e crescimento econômico”, ressaltando que “a migração, uma parte intrínseca da história humana, é comumente ofuscada por narrativas sensacionalistas. Entretanto, a realidade tem muito mais nuances que as manchetes não conseguem capturar”. 

O documento esclarece que “a maior parte da migração é regular, segura e com foco regional, diretamente vinculada a oportunidades e meios de subsistência”. Mesmo assim, a desinformação e a politização do tema contagiaram o discurso público e, por isso, é necessária uma descrição clara e precisa das dinâmicas da migração”.

Em 2020, o maior contingente de migrantes internacionais eram do sexo masculino do que do sexo feminino em todo o mundo, e a diferença de gênero tem aumentado nos últimos 20 anos. Em 2000, a proporção entre homens e mulheres era de 50,6% para 49,4% (ou 88 milhões de migrantes homens e 86 milhões de migrantes mulheres). 

Em 2020, a proporção passou de 51,9% para 48,1%, com 146 milhões de migrantes homens e 135 milhões de migrantes mulheres. A participação das mulheres migrantes vem diminuindo desde 2000, enquanto a participação dos homens migrantes aumentou 1,3 ponto percentual.

Os países com maior influxo de migrantes são os Estados Unidos e a Alemanha. Desde 1970, o número de pessoas nascidas no exterior que residem no país mais que quadruplicou – de menos de 12 milhões em 1970 para quase 51 milhões em 2019. A Alemanha, o segundo principal destino para migrantes, também observou um aumento ao longo dos anos, passando de 8,9 milhões em 2000 para quase 16 milhões em 2020.