Uma teoria do poder e do sistema internacional, por Leonardo de Amorim Thury
José Luís Fiori referiu-se ao seu último livro, Uma Teoria do Poder Global, publicado pela Editora Vozes em outubro de 2024, como sendo “a história de uma obsessão intelectual pelo poder”. E, de fato, essa obra apresenta o resultado de uma pesquisa de 40 anos, desenvolvida pelo autor e acompanhada de vários livros e centenas de artigos de análise histórico-conjuntural em torno da temática do “desenvolvimento econômico capitalista”, da “competição interestatal”, das “crises e hegemonias mundiais” e da dinâmica expansiva do “poder global”.
Fiori trabalhou primeiramente o tema do “desenvolvimento comparado”, depois dedicou-se a pesquisar os desdobramentos da crise da hegemonia americana dos anos 1970/80, para finalmente propor um programa de pesquisa novo, sobre o tema do “Poder Global”, sobretudo a partir da publicação do livro O Poder Americano, também pela Editora Vozes, no ano de 2004.
A reflexão do autor se desenvolve em meio a uma tensão permanente entre a “história das longas durações” (ao estilo de Braudel) e a história conjuntural das lutas políticas e econômicas, entre as classes e as nações (ao estilo do 18 Brumário, de Marx). Segundo Fiori, o pesquisador:
Deve se manter, a todo instante, alerta e atento porque os mesmos acontecimentos que desvelam as “permanências históricas” são os que podem estar assinalando, a cada momento, uma “mudança de rumo”, ou uma grande ruptura histórica que possa já estar em processo de gestação sem que o pesquisador disponha de nenhuma lei que antecipe os caminhos do futuro capazes de lhe facilitar o diagnóstico do presente. (Fiori, 2024, p. 27 – grifo meu).
Além disso, a teoria que vai sendo construída através dessas sucessivas e infinitas análises de conjuntura
[…] precisa ser testada e submetida a um constante exercício de “falsificação” de suas hipóteses, o que só pode ser feito por intermédio da própria análise conjuntural, isto é, de sucessivas análises de conjuntura, razão pela qual será sempre um “método” e uma “teoria em processo de construção”. (Fiori, 2024, p. 28).
Seguindo agora a estrutura do próprio livro, Uma teoria do poder global, na parte 1, Fiori analisa a importância da conjuntura, mas com uma perspectiva singular, pois “ela se transformou, na linguagem usual, em sinônimo de ‘momento atual’” (p. 45). Entretanto, o “objetivo central de qualquer análise conjuntural” seria “a diminuição da imprevisibilidade a fim de aumentar o controle sobre o comportamento humano.” (p. 46).
Isso é perceptível nas obras de Fiori nas quais ele organizou grande parte de sua teoria, e cujos principais textos e ensaios se encontram reunidos neste livro, a saber: “O poder global e a nova geopolítica das nações”, de 2007; “História, estratégia e desenvolvimento”, de 2014, e “A síndrome de Babel e a disputa do poder global”, de 2020. Todas essas obras se iniciam com uma proposta teórica e são completadas por artigos que são análises de conjuntura com base histórica e na teoria proposta na parte inicial do livro. História e conjuntura se mesclam.
É indiscutível, nesse sentido, que a análise conjuntural padece da falta de monumentos. Mas também é certo afirmar que a análise histórica muitas vezes sofre da falta de “incerteza”. (Fiori, 2024, p. 51).
Na parte 2, a obra de Fiori enfoca o tema do Estado e do desenvolvimento, que se insere no intenso combate de ideias ocorrido nos anos 1960 a 1990, no qual se inserem seus textos e livros que contrapunham todo o ideário neoliberal da “revolução conservadora” dos anos 1980.
A parte 3, “Hegemonia e império”, é a continuação desse debate, agora em torno da grande potência, os Estados Unidos. Nesse debate Fiori resgata, da obra “Poder e dinheiro. Uma economia política da globalização” (1ª edição de 1997), o artigo de Maria da Conceição Tavares, “A retomada da hegemonia norte-americana” (1985), elaborado quando os principais analistas internacionais falavam da “crise terminal” da hegemonia norte-americana. Nesse momento da trajetória do autor, o tema da hegemonia vai se destacando.
Na parte 4, “Poder global e riqueza”, têm destaque os artigos “O poder global dos Estados Unidos: formação, expansão e limites” e “Formação, expansão e limites do poder global”, ambos do livro O poder americano (2004). Neles, Fiori descreve a formação dos “Estados-economias nacionais” (Fiori, 2024, p. 491) através, entre inúmeros outros aspectos históricos, da fusão dos donos do poder com os donos do dinheiro. Essas “entidades” se transformam em “verdadeiras máquinas de acumulação de poder e riqueza” e se expandem para os demais continentes, formando “Estados-impérios”.
Os Estados-economias nacionais nascem não só do “jogo das trocas” (Braudel), mas principalmente do “jogo das guerras” (Fiori, 2024, p. 385). As vitórias nas guerras permitem maior acumulação de poder e, com mais poder, os soberanos conquistavam mais territórios, mais recursos via tributos, e por sua vez, mais poder.
Utilizando recurso similar a Marx na obra magistral O Capital (capítulo quarto do primeiro volume), Fiori define a fórmula da expansão do poder. Sendo P = Poder, T = Território, D = Dinheiro:
P – T – P’
T – P – T’
Leia-se a fórmula acima: com poder (P) conquista-se territórios (T), que representam mais poder (P’). E com território (T), conquista-se mais poder (P) e com este, mais territórios (T’).
O mesmo raciocínio com o dinheiro D:
P – D – P’
D – P – D’
D – D’
A diferença vis-à-vis a fórmula de Marx, segundo Fiori, é que “no nosso caso, não é a força de trabalho que explica o incremento do valor inicial, é a mais-valia criada pelo poder e por sua capacidade de multiplicar-se de várias formas, mas sobretudo mediante a preparação das guerras e das conquistas em caso de vitória” (Fiori, 2024, p. 399).
Dentro da parte 4, o livro se “expande” novamente, com a inserção, no item 4.3, do “Prefácio à teoria do poder global”.
“E primeiro veio o poder”
No seu estudo histórico sobre o “sistema mundial”, uma das descobertas de Fiori foi a antecedência do poder do soberano na criação do excedente para pagamento dos tributos, o que vai na direção contrária a William Petty e Marx, na sua acumulação primitiva.
Por isso é tão difícil compatibilizar a visão histórica de Marx acerca da “origem” e da “acumulação primitiva” do Capital com sua dedução teórica do valor e das leis da acumulação primitiva capitalista. Assim como também é difícil de transitar, diretamente, da história do “jogo das trocas”, de Braudel, para a sua teoria dos “grandes lucros” e dos “grandes predadores” capitalistas sem a mediação do poder e das guerras, que tem pouco destaque na sua história do nascimento europeu do capitalismo (Braudel, 1996). (Fiori, 2024, p. 482-483).
E continua:
Nesse sentido, William Petty – pai da economia política clássica – inverteu a ordem dos fatores. Segundo o autor, os tributos foram criados porque existia um excedente de produção disponível, quando, na verdade, os tributos foram criados porque existia um soberano com poder de proclamá-los e impô-los a determinada população, independentemente da produção e da produtividade do trabalho, no momento da proclamação do imposto. (Fiori, 2024, p. 486).
As “explosões expansivas” do sistema mundial
Outro aspecto do livro de Fiori, central em sua obra, é a teoria do “universo em expansão” e as características do poder. Toda explosão expansiva que ocorreu no sistema mundial (europeu e depois global) foi precedida por um “aumento da pressão competitiva”. Esse “fenômeno” das “explosões expansivas” teria ocorrido no longo século XIII (1150-1350), longo século XVI (1450-1650), no “longo século XIX” (entre 1790-1914). E estaríamos presenciando mais uma “explosão expansiva” desde os anos 1970.
Cada uma delas ocorreu num cenário diferente. As duas primeiras foram especificamente europeias, mas com uma expansão para os demais continentes (Américas, África, Ásia e Oceania); a terceira já foi mais global, pois já estavam inseridas as potências não europeias – Estados Unidos, Alemanha e Japão – e a “periferia” do sistema – o mundo subjugado da América Latina, África, Ásia e Oceania.
Outro ponto interessante das explosões expansivas é a característica anterior a elas, que se soma ao “aumento da pressão competitiva”: o “esgotamento”, a
“desintegração” do sistema mundial. Foi o que ocorreu no sistema europeu (Fiori, 2024, p. 25), nas suas primeiras explosões (longo século XIII e longo século XVI). O mesmo vale para os países que se destacaram em algum dado momento da História e também expandiram seus poderes – neste caso, com a presença de revoluções ou guerras e passando por processos de “esgotamento” e “desintegração”: (1) Portugal e a Revolução de Avis; (2) Espanha e as Guerras de Reconquista; (3) Inglaterra e sua Guerra Civil ou Revolução Puritana; (4) França e a Revolução Francesa; (5 ) Rússia e a Revolução Russa; (6) China e a Revolução Chinesa; (7) Estados Unidos e sua Guerra Civil; (8) Revolução Meiji no Japão; e (9) as guerras prussianas de unificação que deram origem à Alemanha (Fiori, 2024, p. 498).
Na atual explosão expansiva, que num primeiro momento (anos 1970) se centra no hegemon – os Estados Unidos –, essa “degradação” é feita de forma diferente das explosões anteriores. É o próprio hegemon que desestabiliza o sistema (como a Guerra do Vietnã, o fim da paridade dólar-ouro, em 1971, a política Volcker do choque de juros, entre outras ações) para expandir seu poder.
Toda situação hegemônica é transitória, e, é autodestrutiva, porquanto o próprio hegemon acaba se desfazendo das regras e das instituições que ajudou a criar para poder seguir se expandindo e acumulando mais poder do que seus liderados. (Fiori, 2024, p. 495).
Para Fiori, o poder tem dez características: 1) é assimétrico; 2) limitado; 3) relativo; 4) heterostático; 5) triangular; 6) é fluxo; 7) sistêmico; 8) expansivo; 9) indissolúvel; e 10) dialético.
Fiori é influenciado por Karl Marx, Firederich Engels, Antonio Gramsci, Nicos Poulantzas, Max Weber, Von Clausewitz, Fernand Braudel e Carlo Ginzburg. Mas vai além desses autores, ao estudar e teorizar o poder global. Destacando apenas alguns desses autores, “o ensaio de Marx a respeito de O 18 Brumário de Luís Bonaparte exerceu uma influência inicial muito importante em nosso método de pesquisa histórico-conjuntural.” (Fiori, 2024, p. 26). E a respeito de Braudel, afirma que o historiador deve trabalhar, a um só tempo, nas três temporalidades: o “tempo breve”, dos acontecimentos políticos imediatos, jornalísticos – a mais caprichosa, a mais enganadora das durações, segundo Braudel; o “tempo cíclico”’, tipicamente econômico; e a “longa duração”, o tempo próprio das estruturas e das grandes permanências históricas. (Fiori, 2024, p. 27)
A obra é rica e abre espaços para questionamentos, estudos de suas propostas intrigantes, elaboração de artigos com base em suas teses etc. Por exemplo, nas “explosões expansivas” do “sistema mundial” e depois do “sistema interestatal capitalista”, Fiori destaca os elementos de “aumento de pressão competitiva” anteriores a elas, mas faltam estudos que venham a descrever aspectos como: o que se expandiu no “longo século XIII”, no “longo século XVI” e no “longo século XIX”? E o que está se expandindo atualmente no século XXI, com a “pressão competitiva” iniciada nos anos 1970?
E como o poder está sempre se expandindo, o que seria a inauguração da Iniciativa Cinturão e Rota em 2013 (“as novas rotas da seda”), senão um evento de expansão do poder à la China, um país com um histórico milenar, mas que precisa se expandir? Como disse Norbert Elias: “quem não sobe, cai”. E a expansão da OTAN, as “guerras eternas”, o “mundo baseado em regras” do “Ocidente” (leia-se Estados Unidos e União Europeia/OTAN), a expansão dos BRICS (agora BRICS plus) são movimentações que nos remetem a esse mesmo “universo em expansão”.
A parte 5 é dedicada ao tema da Guerra e da Paz, analisados em suas obras
Sobre a Guerra (2018) e Sobre a Paz (2021) e todas as complexas questões que envolvem a ética, tanto na guerra, como na paz. Fiori elabora uma teoria que não é para ficar na estante, mas que nos ajuda a entender as decisões dos grandes policy makers do mundo, ou dos grandes eventos, que envolvem guerras, paz, acordos, blocos de poder etc. É possível “ver” a teoria do Fiori ao lermos e vermos os jornais diariamente.
Ao relatar a intervenção da Rússia na Geórgia (país da ex-União Soviética), Fiori afirmou, com base na teoria de Hans Morgenthau: “Por isso, a atual [agosto de 2008] guerra da Geórgia não é uma ‘guerra antiga’; pelo contrário, é um anúncio do futuro.” (Fiori, 2014, p. 175). Em 24 de fevereiro de 2022 (aproximadamente sete anos após Fiori ter escrito isso) teve início a guerra na Ucrânia (também um país da ex-União Soviética), que possui fundamentos similares, apesar de suas especificidades: tentativa de expansão da OTAN num país que pertence à área de influência da Rússia e, portanto, representava e representa uma ameaça à mesma.
É comum Fiori se citar em artigos mais recentes, de 2020 a 2024, com frases de suas obras de 2008, 2014 etc., porque seu arsenal teórico é baseado em história e conjuntura, o que lhe permite antever a movimentação nas peças do tabuleiro de xadrez do poder global e detectar os padrões da guerra, da paz e do poder.
Assim, a obra de Fiori é fundamental para quem aprecia (e muitas vezes lamenta) acompanhar as movimentações das peças no tabuleiro do poder mundial, juntamente com um bom embasamento teórico-histórico-conjuntural.