Benedito Mariano: 'Não podemos naturalizar as mortes sistemáticas na periferia'
Foto: Divulgação Prefeitura de Diadema

Benedito Mariano dispensa apresentações quando se trata do tema de Segurança Pública. Um dos maiores especialistas da área, o professor explica que “mudar a segurança pública implica estabelecer enfrentamentos, polêmicas, divergências”, mas que a esquerda sempre produziu os melhores projetos “sobre o auspício da democracia, da legalidade, com fortalecimento do policiamento comunitário, com uma ação sistemática de repressão qualificada contra um crime organizado”. Admirador do polêmico Mario Covas, defende que “decisão e vontade política dos governos” podem mudar o cenário da segurança pública no Brasil

O secretário sabe o tamanho do desafio. Mariano foi o primeiro ouvidor das Polícias do Estado de São Paulo e ocupou o cargo durante sete anos. Desempenhou o papel de Secretário da Segurança em São Paulo duas vezes, São Bernardo do Campo, Osasco e Diadema. Coordenou em 2002 o programa de governo do presidente Lula e ocupou o Presidente no Conselho Nacional de Secretários e Gestores Municipais de Segurança, entre outros cargos e postos relacionados ao tema.

Professor, após o crime covarde cometido no Assentamento Olga Benário, o senhor acha que a rapidez que a polícia atuou estaria de alguma forma respondendo ao posicionamento contundente do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar e do Governo Federal?

Eu acho que pode, sim, ter uma relação. Eu soube do incidente em um grupo formado por delegados e outras pessoas, do qual Paulo Teixeira, o ministro, também faz parte, e ele anunciou lá antes de sair na imprensa. Eu havia dito a ele que, como os assentamentos são políticas do governo federal, era importante, desde o início, a Polícia Federal participar da investigação dessa ação absurda e violenta. Depois, soube através da imprensa que o presidente Lula ligou para uma liderança nacional do movimento e já determinou que a Polícia Federal abrisse uma investigação. É fundamental que a Polícia Federal esteja nessa investigação, não só para identificar os autores, mas para investigar, pois tudo indica que há mandantes neste ato absurdo. Portanto, a presença da Polícia Federal, do Governo Federal, pode, sim, ter contribuído para uma ação mais eficaz, neste momento, da polícia civil, que já identificou pelo menos dois. Um está preso, e já identificou outra pessoa que está foragida, mas foram várias pessoas, vários carros e motos, um grupo muito grande. E tudo indica que é uma ação de milícia. Eu ando muito preocupado com a segurança pública no estado de São Paulo, na gestão de Tarcísio e Derrite; há um processo sistemático de milicialização, especialmente da Polícia Militar. Essas ações sistemáticas de violência, divulgadas pela mídia, demonstram que vivemos talvez um dos piores momentos da segurança pública no estado de São Paulo. Tem que haver uma ação permanente do governo federal, nesse caso, para esclarecer e levar à justiça não só os autores, mas principalmente identificar quem são os mandantes dessa ação violenta contra um assentamento do movimento totalmente regularizado pelo Ministério e pelo INCRA. É inaceitável ter duas mortes, seis feridos, uma ação com muitas características de milícia.

Gostaria que o senhor aprofundasse esse repetido alerta que tem feito com relação à milicialização da polícia no estado de São Paulo. O senhor pode detalhar que projeto é esse?

O que percebo em São Paulo é que, sob a gestão do secretário Derrite, que foi solicitado a deixar a Rota, uma unidade já conhecida por suas ações mais violentas, houve mudanças significativas. Um oficial, que era tenente e a quem sempre chamo de tenente Derrite, saiu da Polícia Militar como tenente e foi quase expulso do primeiro batalhão de choque. Ele alterou cerca de 50% do oficialato da Polícia Militar, especialmente aqueles coronéis que eram a favor por exemplo, do uso de câmeras corporais e foram críticos a desastrosa Operação Escudo e, depois, a Operação Verão na região santista, que resultou na morte de mais de 80 pessoas após o assassinato de três policiais. Claro que repudiamos as mortes de policiais em serviço, mas a resposta do estado não pode ser uma operação de vingança. São Paulo é o estado que mais adquiriu câmeras corporais, com cerca de 11 mil unidades. No entanto, durante essa operação, que envolveu aproximadamente 600 policiais na Baixada, cerca de 90% não usavam câmeras, complicando as investigações das polícias e do Ministério Público sobre como ocorreram as mortes.  Eu tenho muita suspeita e há indícios fortes de que as mortes não se deram por confronto. A violência desenfreada nas periferias, tendo como vítimas sepre os mesmos jovens pobres e negros com a justificativa de combate ao crime organizado, é inaceitável. A própria imprensa divulgou que, durante a Operação Escudo, houve aumento do crime na Baixada Santista. A única liderança, segundo a imprensa, que foi morta no período desta operação, que tem toda a característica de operação vingança, foi morta, segundo a imprensa, por disputa interna de organização criminosa.  Ou seja, não houve nenhuma ação efetiva para coibir as organizações criminosas, mesmo após a operação que vitimou 80 pessoas. Isso é o que chamo de milicialização: mortes sistemáticas na periferia em crescente aumento. A imprensa divulgou vários casos absurdos, como um policial que, durante uma abordagem de trânsito, arremessou um cidadão da ponte. Isso não é uma ação policial. Um estudante foi assassinado a queima-roupa. Recentemente, um jovem foi verificar uma ocorrência e, enquanto a polícia perseguia seu irmão, acabou matando a irmã dele, uma adolescente de 16 anos. Isso aconteceu há apenas dois ou três dias. A milicialização da polícia militar se manifesta nessas mortes sistemáticas que se repetem, enquanto o discurso permanece o mesmo. Não pactuamos com desvios de função, blá, blá, blá, mas esses desvios estão se tornando regras. Quando o secretário afirma, em uma formatura de oficiais, que os únicos defensores dos direitos humanos em São Paulo são os policiais militares, ele está, direta ou indiretamente, incentivando a continuidade dessas mortes sistemáticas. Quando o governador diz que pode ir para a ONU ou para qualquer lugar e que isso não o preocupa, ele está incentivando essa política. Ele depois afirmou que se arrependeu de sua avaliação equivocada contra as câmeras corporais; porém, para mim, Derrite espelha o governador. Não há diferença entre eles. Acredito que isso continuará pelos próximos quatro anos, e ele pode até se candidatar a um cargo majoritário, como senador. Não podemos naturalizar as mortes sistemáticas na periferia. O aumento da letalidade policial nos últimos dois anos, em comparação a anos anteriores, foi enorme. A milicialização se resume a matar primeiro e perguntar depois, e isso vem acontecendo sistematicamente no estado de São Paulo. E tem um efeito em outros países e estados também, não é? Com certeza, tem. Na minha opinião, a situação em São Paulo já deveria ser encaminhada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Parece que algumas instituições estão se mobilizando para alertar que a política em curso em São Paulo não é tolerável.

Eu já te ouvi em outras entrevistas dizendo da ausência de uma personalidade como a do Mário Covas e nos últimos 30 anos pelo menos, no estado de São Paulo, passamos pelo nascimento e crescimento do PCC, passamos por toque de recolher, passou por tantos secretários que hoje têm outras posições e até meio que “mudaram de lado”. O senhor consegue identificar algum momento onde houve essa grande mudança de rota? O que aconteceu em São Paulo?

Acredito que o Mário Covas faz muita falta para a política brasileira. Eu sou suspeito de dizer, porque trabalhei cinco anos com ele, eu era ouvidor quando ele morreu, e foi um dos poucos governadores que colocou na agenda política do governo dele, a segurança pública. O Mário Covas foi o governador que mais contribuiu com a transparência da atividade policial, a ouvidoria da polícia de São Paulo foi a primeira do país, eu tive o prazer de ser ouvidor da polícia por sete anos, cinco anos no governo Mário Covas, E os índices, nos quatro anos do governo Mário Covas, de letalidade policial, eram em torno de 30% do que é hoje. Então havia uma perspectiva do governador, da política de segurança pública, de minimamente, estabelecer o controle da atividade policial e diminuir a letalidade policial. Ele tinha um programa importante, que afastava policiais que se envolviam em ocorrências com morte. Esse programa foi importante para diminuir a letalidade. A única crítica que eu fazia ao programa era que o policial era afastado para serviço administrativo, enfim, mas tinha que vir para a capital. Então, se ocorresse uma ação na grande São Paulo, o policial tinha que vir para a capital. Isso, com o tempo, foi desgastando o programa, porque o policial perde duas vezes. Ele perde porque deixa de fazer 12×36, que é a escala cotidiana da Polícia Militar, e no dia de folga ele faz “bico”, ele passa a ter uma escala de plantonista, 5×2, perde o “bico” e ainda tem que vir para a capital, fora do seu domicílio, da sua residência. Eu disse isso para o secretário, na época, o Jośe Afonso da Silva, que o programa deveria ser feito no local de trabalho dos policiais. Tirando isso, o programa foi uma inovação Também, eu costumo dizer que apenas dois governadores colocaram na agenda do Estado a Segurança Pública: Mário Covas e Olívio Dutra. Olívio Dutra, do PT, foi o único, eu diria, governador que estabeleceu como prioridade a segurança pública, colocou como secretário o falecido senador Paulo Bisol, e eu tive o prazer de visitar muito o Estado na época, fiz parte de uma comissão criada pelo governador para rever o regulamento disciplinar da Polícia Militar, fiz parte da redação do novo regulamento disciplinar.

O Olívio Dutra publicou, através de decreto, um novo regulamento disciplinar, inédito, porque a maioria absoluta dos regulamentos disciplinares das polícias militares se preocupam mais com o comportamento do policial dentro do quartel do que na rua. 70% das transgressões previstas nos regulamentos se relacionam ao comportamento do policial dentro do quartel e não na rua, e deveria ser exatamente o contrário. Foi isso que, basicamente, a mudança principal, a criação de um novo regulamento disciplinar da Brigada. Como o governador Olívio Dutra não tinha maioria na Assembleia Legislativa, ele fez por decreto. Quando acabou o governo, voltou o regulamento anterior. Mas isso para dizer que é possível, se tiver vontade de decisão política, de fazer mudanças estruturais nas polícias. Lógico que é muito mais difícil com as mudanças constitucionais, mas as infraconstitucionais, aquelas que dependem exclusivamente de vontade e decisão política do governador, é possível fazê-lo. E o Olívio Dutra foi o primeiro governador do país a tomar a iniciativa de tirar do papel uma reforma do regulamento disciplinar da Polícia Militar para que ele se preocupasse mais com o regulamento, com o comportamento dos policiais na rua e não quando voltam com as viaturas para o quartel. Tirando essas exceções, Mário Covas e Olívio Dutra, e o meu livro reflete um pouco sobre isso, a minha avaliação é que a transição democrática, não estou falando de um ou dois governos, estou falando de 44 anos de transição democrática, a transição democrática não priorizou a agenda da segurança pública. Você me perguntou como se deu essa ascensão da extrema-direita. Eu diria que, em grande parte, foi pela omissão da esquerda e do campo democrático.

E de onde é que vem essa dificuldade da esquerda, de discutir a segurança pública? Porque hoje tem mulheres falando sobre segurança pública. Temos a Tamires Sampaio, a Juliana Borges, mulheres negras falando e pensando sobre isso, além de outras mulheres, mas o que está faltando para abraçarmos o tema?

É que esse é um setor muito sensível do Estado, a segurança pública é muito sensível. E muitas vezes os governos ficam preocupados mais com a opinião pública, com o senso comum. Se criou uma cultura no país de que segurança pública é sinônimo de repressão sistemática. E isso é muito difícil mudar se não tiver uma política de muita muita decisão, decisão e vontade política dos governos. Eu queria registrar o seguinte: eu fui um dos coordenadores do Programa de Segurança Pública do presidente Lula de 2002. Esse programa foi o principal programa de reformas no sistema de segurança pública produzido em todo o período republicano. Portanto, o PT já produziu propostas de mudanças que nenhum outro partido produziu. Nós demoramos dois anos para fazer o programa, teve mais de dois mil encontros, foi coordenado por mim e pelo  Luiz Eduardo Soares, o Roberto Aguiar e o Antonio Carlos Biscaia, que foi deputado federal do Rio de Janeiro.  Foi um grande programa. Eu me lembro que nós lançamos na Câmara dos Deputados, o Aécio Neves era presidente da Câmara e disse que esse era o programa mais reformista apresentado sobre o Sistema de Segurança Pública do Brasil. Qual foi o problema? Ele não saiu do papel. 

A esquerda e o campo democrático já apresentaram muitas propostas para mudar o sistema de segurança pública, criar uma segurança pública nova, sobre o auspício da democracia, da legalidade, com fortalecimento do policiamento comunitário, policiamento de proximidade, com uma ação sistemática de repressão qualificada contra um crime organizado. Tudo isso, quem mais criou foi a esquerda e o campo democrático, e em especial, o PT. Se você der uma olhada no programa de 2002, as propostas de reformas constitucionais que estavam lá, e infraconstitucionais, praticamente nenhuma delas foi implementada. Então eu acho que a grande dificuldade nossa, eu digo da esquerda e do campo democrático, é tirar do papel aquilo que nós propomos. Se nós tivéssemos implementado o programa de 2002 do presidente Lula, nós não estaríamos na situação que estamos hoje, com o crescimento absurdo das organizações criminosas, das milícias, e nós teríamos mais segurança no país. E aí, quais são as razões para não tirar do papel um programa de reformas? É difícil responder, porque, primeiro, eu não estava no governo. O que eu posso dizer é que foi uma pena. Tivemos uma conjuntura, em 2002, muito mais favorável que hoje. Não houve o crescimento absurdo da extrema-direita, de um Congresso totalmente conservador que temos hoje. Então, as condições objetivas para reformar as polícias são muito mais difíceis agora do que em 2002. A extrema-direita ocupou o vácuo deixado pela transição democrática. Essa é a minha visão. E não é só no Brasil. A esquerda, de modo geral, tem dificuldade de tratar o tema da segurança pública. Ou trata como uma questão social, ou deixa as situações internas, como sempre esteve, não quer mexer em vespeiro, porque mudar a segurança pública implica estabelecer enfrentamentos, polêmicas e divergências. Mas estou muito preocupado porque a segurança está cada vez mais grave, a situação de insegurança, o crime organizado está cada vez mais ousado, essa operação em Cumbica em que um empresário criminoso que denunciou organização criminosa e policiais, civis e militares envolvidos com o crime organizado, foi executado em pleno dia! Quando em toda a história da República nós tivemos a situação de uma execução em um aeroporto como aconteceu agora? É inacreditável! É hora de colocarmos na agenda. Ainda tem dois anos do governo Lula. No livro que vamos lançar (em parceria com a FPA) tem um artigo meu, publicado em 2006, propondo a criação do Ministério da Segurança Pública. Nós temos que dar um salto de qualidade na questão de segurança pública do governo federal.

Quando consideramos que a Constituição de 1988 atribuiu a segurança pública exclusivamente como responsabilidade dos Estados, diferente do que foi feito com a saúde e a educação – áreas para as quais temos mecanismos como o Fundeb e o SUS que funcionam –, nós não temos um sistema de segurança pública efetivo. Essa situação contribuiu para o crescimento do crime organizado e da corrupção policial, levando-nos a uma situação preocupante. Você acredita que é possível resolver essa questão? Ainda há esperança de melhorar esse sistema?

Concordo com a avaliação de que a Constituição Federal, no artigo 144, não designa à União as diretrizes para uma Política Nacional de Segurança Pública, limitando-se a referenciar os estados federados e o Distrito Federal. Essa é, para mim, a parte mais importante da PEC que o Lewandowski pretende encaminhar ao Congresso Nacional. Parece que a proposta será enviada à Casa Civil nesta semana ou neste mês, após consultas aos governadores. O aspecto mais relevante da PEC é estabelecer constitucionalmente que cabe à União definir as diretrizes da Política Nacional de Segurança Pública. Embora a Lei do SUSP já mencione isso de forma genérica, costumo dizer que a Lei do SUSP é uma carta de intenções, pois não deixa claro o papel da União e de que forma ela coordenará a Política de Segurança Pública. Portanto, se a PEC apenas afirmasse que cabe à União estabelecer diretrizes para a Segurança Pública, já valeria a pena ter essa proposta. Contudo, acho difícil que a PEC avance no atual Congresso, considerando a composição que temos. Mesmo que não passe, independente da PEC, o Ministério da Justiça e Segurança Pública precisa estabelecer políticas efetivas. O decreto que o presidente Lula lançou há menos de um mês é, na minha visão, o documento mais importante na área de segurança pública do terceiro governo Lula, pois regulamenta o uso da força por policiais. Isso é fundamental, e embora não seja uma novidade, uma vez que há resoluções da ONU sobre a regulamentação do uso da força há décadas, é crucial ter um decreto desse tipo em um momento em que a letalidade policial está aumentando sistematicamente. Eu dei uma entrevista à Folha de S.Paulo afirmando que as críticas dos governadores ao decreto são pura demagogia. Na verdade, são esses governadores que não querem uma segurança pública efetiva. O Ronaldo Caiado, que pretende ser pré-candidato à presidência da República, criou uma ilusão de que Goiás está livre do crime organizado, quando, na verdade, é um dos principais estados onde ocorre o tráfico de pessoas, figurando entre o primeiro e o segundo lugares nesse triste ranking. Os casos de violência e corrupção dentro da polícia militar de Goiás são amplamente conhecidos e noticiados pela imprensa. Portanto, é uma bobagem ele afirmar que em Goiás não existe crime organizado.  Quanto ao Rio de Janeiro, o governador Cláudio Castro deve se preocupar com a crescente expansão das milícias, que controlam mais de 250 quilômetros quadrados de território, abrangendo mais de 2 milhões e 500 mil pessoas. Essa deveria ser a preocupação do governador, e não criticar um decreto que regula o uso da força, algo que é uma prática comum em democracias liberais. A sua questão remete ao ponto central da PEC do Lewandowski. Já elogiei essa proposta de estabelecer que cabe à União as diretrizes da segurança pública; foi um erro não ter feito isso na Constituição de 1988. Pessoalmente, sou crítico e já expressei isso a quem tive a oportunidade no Ministério da Justiça e Segurança Pública, sobre a ampliação das atribuições da Polícia Rodoviária Federal, transformando-a em uma espécie de polícia ostensiva da União. Acredito que ela não está preparada para tal função. Em ocasiões em que atuou como polícia ostensiva, se envolveu em ocorrências absurdas, como o caso recente no Rio de Janeiro, que aconteceu há quase um mês, quando uma família foi metralhada por policiais rodoviários na véspera de Natal, e uma jovem ainda está em estado de coma, um dia depois da publicação do decreto. Portanto, eu digo: ou há uma reforma e um controle maior sobre a Polícia Rodoviária Federal, ou ela se tornará a primeira a desacreditar o decreto mais importante do governo federal na área de segurança pública, editado pelo presidente Lula.

Eu queria que você falasse um pouco sobre o papel da polícia de proximidade e as guardas municipais, as GCMs, podem cumprir esse papel, deixando a PM fazer o policiamento ostensivo? 

Primeiro, é importante registrar que, no Brasil, parece quase um palavrão falar em policiamento de proximidade ou policiamento comunitário. Esse conceito de polícia existe desde o século XIX, e ironicamente, foi criado pelo primeiro-ministro do partido conservador inglês, Robert Peel. Aqui, ainda enfrentamos uma cultura de policiamento de confronto, o que faz com que a expressão “policiamento de proximidade” soe estranha. No entanto, é fundamental que esse tipo de policiamento ocorra, onde as polícias militares deveriam atuar nas periferias, em diálogo com a comunidade. A ideia central do policiamento de proximidade é que a presença constante no território é capaz de prevenir o crime; não se trata apenas de caçar criminosos. O objetivo é evitar que o crime aconteça. A atuação da polícia na comunidade, em consonância com seus moradores, é essencial para impedir a criminalidade antes que ela ocorra. Essa é a essência do policiamento comunitário, que possibilita a construção de uma relação de confiança entre a população e as forças de segurança. Hoje, se realizarmos qualquer pesquisa no país, veremos que a população tem mais medo da polícia do que respeito, especialmente nas periferias. Portanto, a população precisa confiar na polícia, e a polícia deve dialogar com a população. Esse policiamento de proximidade é fundamental e pode ser mais efetivamente realizado pelas guardas municipais, que têm uma presença contínua no território. Além disso, as guardas, conforme o Estatuto Nacional das Guardas Municipais, estabelecido pela Lei Federal da presidente Dilma em 2014 (Lei 13022), têm como papel central a ação preventiva, que é sinônimo de policiamento preventivo, comunitário e de proximidade. Então, as guardas municipais são realmente mais vocacionadas para essa questão. Infelizmente, temos observado alguns prefeitos indo na contramão do próprio estatuto das guardas municipais, militarizando essas forças. Hoje, existem guardas municipais armadas com fuzis e armamentos pesados. Esse tipo de armamento é incompatível com a função da guarda municipal, que deve se concentrar no policiamento comunitário em parques públicos e na rede de educação municipal. Se as guardas municipais realizassem uma boa segurança nas escolas, proteção nos parques e apoio às mulheres, por meio das Patrulhas Maria da Penha, isso já justificaria sua existência. Mas como se pode garantir segurança escolar utilizando um fuzil, dialogando com o corpo docente e discente das escolas municipais? Isso é um equívoco. Eu já sugeri ao Ministério da Justiça, em diálogo com o secretário-executivo Lewandowski, e também ao diretor-geral da Polícia Federal, doutor Andrei, que vem realizando um trabalho extraordinário. A Polícia Federal, que sempre foi relevante, se tornou uma verdadeira fonte de orgulho para o povo brasileiro, especialmente sob o comando do Andrei, ao desmantelar as tentativas de golpe de Estado promovidas por militares e pela extrema direita. A Polícia Federal merece todos os elogios. Diante disso, sugeri à Polícia Federal e ao Ministério da Justiça e Segurança Pública que estabeleçam uma portaria para definir limites sobre o uso de armas de fogo pelas guardas civis municipais. Isso é fundamental para evitar que elas se tornem semelhantes ao que estamos tentando transformar nas polícias militares. Fui secretário de Segurança em São Paulo duas vezes, em São Bernardo do Campo, Osasco e Diadema. Durante minhas gestões, os guardas municipais não utilizavam armamento pesado, o que se alinha à função de policiamento preventivo e ao diálogo com a comunidade.

O jornalista Luis Nassif publicou um artigo onde afirma que “os Brazão são bode expiatório de Carlos Bolsonaro”. O senhor acompanha o caso?

Quero fazer duas colocações em relação à morte de Marielle Franco, ao andamento do processo e à morte de Anderson. Primeiro, considero uma manifestação completamente equivocada do atual prefeito de Maricá e vice-presidente nacional do PT, ter recebido a família de alguém que está sendo denunciado por crimes tão absurdos. Essa atitude é totalmente errada, e é necessário que haja uma ação em relação a esse comportamento, que não é isolado. O nosso querido vice-presidente já demonstrou, em outras ocasiões, estar próximo da direita e da extrema direita, inclusive de ex-ministros do Bolsonaro. Portanto, acredito que é hora de haver uma postura mais firme em relação às posições políticas desse vice-presidente do PT. Li o artigo que aborda a questão das mortes e ele é claro ao afirmar que os atuais acusados podem não ser os verdadeiros mandantes. O texto também sugere uma possível relação entre as mortes de Marielle e Anderson, do ponto de vista dos mandantes, com a família Bolsonaro. O que eu diria é que a Polícia Federal, e acredito que o doutor Andrei Rodrigues também leu esse artigo, deve considerar essas e outras informações e conduzir uma investigação aprofundada. Se os atuais acusados são, de fato, os principais autores ou mandantes, isso deve ser investigado pela Polícia Federal. A responsabilidade recai sobre eles, especialmente para apurar se existem outros mandantes envolvidos. Acredito que esse crime ainda levará tempo para ser totalmente esclarecido no país e merece uma atenção especial, em particular da polícia, que considero mais qualificada no sistema de segurança pública, que é a Polícia Federal. 

Com relação ao Ministério da Segurança Pública, acredita ser possível termos esse ministério? A segurança pública foi adicionada ao ministério da justiça com a vinda do Sergio Moro, não foi isso?

Isso foi só para fazer média, só para poder ganhar e ampliar o poder do Moro. Ainda tenho expectativa de que o presidente Lula crie, este ano, 2025, o Ministério da Segurança Pública. O ministro Ricardo Lewandowski fez um bom trabalho em relação à PEC e ao decreto importante que mencionei, mas um Ministério da Justiça e Segurança Pública é muito amplo. Precisamos de um órgão gestor específico para a segurança pública, que enfrente a insegurança que vivemos no país. Para mim, essa é a principal resposta que o governo federal pode dar, colocando a agenda da segurança pública como agenda prioritária, criando um órgão de primeira escala. 

No Brasil, tivemos, por menos de um ano, se não me engano, dez meses, o Ministério Extraordinário da Segurança Pública no governo Temer. É evidente que criar um ministério em um governo sem legitimidade, como foi o governo Temer, já nasce com prazo de validade. Por isso não durou nem um ano, apesar de eu considerar o ministro Raul Jungmann um bom ministro da Segurança Pública Do SUSP, e queria dizer, por último, que o conceito do SUSP que criamos em 2002, no programa do presidente Lula, previa que o SUSP só poderia sair do papel a partir de reformas constitucionais e infraconstitucionais do sistema de segurança pública. Sem isso, não tem SUSP, seria só uma mera integração parcial das polícias. Como ainda não tivemos reformas, eu acho que o SUSP ainda vai demorar um pouco para sair do papel.