“Hélio me ensinou que o PT não é apenas um partido. Ele vai se constituindo numa cultura política, aglutinadora de práticas e de pessoas que são ”transgressoras” inatas”

Hélio Pellegrino: Alguns traços de sua militância, por Aldair Rocha
“Hélio me ensinou que o PT não é apenas um partido. Ele vai se constituindo numa cultura política, aglutinadora de práticas e de pessoas que são ”transgressoras” inatas"
Reprodução/Divulgação

Sempre ouvi falar do Hélio como um grande aliado da classe trabalhadora. Depois que eu o conheci, na passagem da última década, quando nos juntamos nas águas do novo movimento social e operário, o reconheci mais que um aliado, mas um esteio na construção da nova sociedade que buscamos. Hoje, depois de sua morte, estou mais convencido disso, pelo ânimo revolucionário que sua memória desperta, apontando caminhos de ruptura não só no nível do político, mas sobretudo no cultural, ideológico, religioso, sem perder de vista a perspectiva de classe.

Nos conhecemos no PT. Hélio me ensinou que o PT não é apenas um partido. Ele vai se constituindo numa cultura política, aglutinadora de práticas e de pessoas que são ”transgressoras” inatas.

Como professor de uma de suas filhas – Tereza (na PUC-RJ), comecei a descobrir sua face religiosa, apaixonadamente cristã, como vorazmente crítica da alienação religiosa (ver Hélio Pellegrino: A-DEUS e Mística cristã de um socialista convicto, grande sinal, nov. 88).

Foi aí também que percebi a força de sua palavra como fio de navalha vinha das suas atitudes, não só no episódio da sociedade de psicanálise, nem só na sua atividade profissional psicanalista, mas também na presença direta nas atividades no movimento social, político e cultural, como alguns fatos que pude testemunhar. Ilustra bem isso seu último artigo (JB 29/03/1988 – A verdade é a honra militar) sobre o caso Riocentro. Rearticular forças na sociedade civil para retomar esse caso foi um dos seus últimos intentos.

No início dos Anos 80 o encontrei dando uma palestra que lotou o maior auditório da PUC do Rio, falando para uma plateia perplexa e curiosa interessada, possivelmente na psicanálise (e seus segredos) e se encontrou com uma crítica ferrenha à mediocridade do processo universitário em que viviam, porque único era o regime que o engendrava e Hélio, sem cerimônia, deposita no socialismo o único caminho para os que dali quisessem sair.

Daí em diante, assisti sua radicalização com relação à Universidade reprodutora de um academicismo elitista e conservador. Para mais de um amigo, Hélio se negou a participar de banca de defesa de tese. Hélio tinha o dom de dizer diretamente o que pensava das instituições e da vida, tornando-se cada vez menos seu prisioneiro.

Sua militância no PT foi muito rica. Sua presença extrapolava, é claro, os limites do PT do Rio. Era por isso que um dos únicos militantes que conseguia quebrar a lógica atrasada com certa rigidez na herança de disputas ideológicas dos diferentes grupos aos quais a burguesia emplacou o clichê “lights” e “xiitas”. E como mostra a Revista Teoria e Debate no seu número 3 (Memória: o libertário Hélio Pellegrino), ele tinha bom trânsito em todo o Partido. Eu diria mais, Hélio tinha reserva moral e política forjada na sua prática histórica para enfrentar certas idiossincrasias ortodoxas e autoritárias presentes, às vezes, na atuação do PT do Rio.

Além de sua participação no núcleo Mário Pedrosa, ele atendia a muitas solicitações tanto para fortalecer os processos eleitorais do PT como ajudar a consolidar a construção partidária. Seu perfil combinava com uma visão mais ampla como no caso da ida ao Colégio Eleitoral e no apoio à chapa Saturnino/Jo para a Prefeitura de 85, e uma postura firme e radical nas lutas e nas organizações do Movimento Social e da organização partidária. Isso o diferenciava de setores no partido que priorizavam de forma demasiada o processo eleitoral.

Ainda na campanha para a prefeitura em 85, fomos duas vezes à Volta Redonda para fortalecer a campanha do PT (participando do programa eleitoral na TV e discutindo com os militantes) daquela cidade operária.

Não foram poucas as solicitações para que Hélio assumisse a Presidência do PT do Rio. Ele sempre relutou em aceitá-la, da mesma forma que não quis aceitar sua indicação para o governo do Rio, por entender que tais cargos iriam exigir, além da sua competência ideológica, uma dose muito grande de “paciência institucional” que transgrediria sua natureza.

Na maratona para consegui-lo na presidência do PT, lembro-me de pelo menos três encontros diferentes, um no seu consultório com a presença de um dos mais antigos batalhadores do PT (e do Movimento Operário) o operário, metalúrgico e cristão Joaquim Arnaldo, por quem Hélio nutria muita admiração. Foi uma discussão emocionante de amantes da utopia. Outro, na antiga sede da CUT com a presença de outros líderes do Movimento Operário e Sindical como o presidente do Sindicato dos Metroviários e da CUT Geraldo Cândido, Isabel, Picaluga e outros. A Companhia inseparável do Hélio era o psicanalista Carlos Alberto Barreto, carinhosamente chamado de “capitão” por Hélio para quem Lula era “comandante” e o “cristão” o oficial de gabinete (seria a utopia no Exército de Brancaleone?). Um terceiro encontro já se deu na casa de Carlos Alberto, um pouco mais ampliado, para trazer os anseios e a sensibilidade de lideranças populares sobre a repercussão do seu nome para a Presidência do PT (baixada, favelas, líderes sindicais). De todos os encontros saímos absolutamente convencidos pelo Hélio (embora contra a nossa vontade) de que era melhor para o PT (e para ele) deixá-lo livre ou fora de qualquer cargo. Era uma reflexão conjunta de como aproveitar melhor as pessoas em projetos coletivos.

Após a campanha para a Prefeitura de 85, o PT sai desgastado eleitoralmente em consequência do desfecho malogrado da tentativa de construir uma alternativa popular para a candidatura Jó Rezende. O desgaste eleitoral deixou marcas para o processo interno do Partido que mais uma vez tinha problemas de crescimento num centro importante como é o Rio. A direção nacional volta-se para acompanhar e ajudar o PT do Rio a superar as sucessivas crises.

Várias iniciativas são tomadas através de plenárias de militantes com a presença de dirigentes nacionais como Lula, Jacó Bittar, Weffort etc. num esforço duplo: costurar um mínimo de unidade interna e recuperar a imagem externa comprometida ainda mais em 85.

Doutra feita, reuniões informais promovidas por diferentes setores do Partido animaram e mobilizaram muitos militantes. Entre estas, está uma reunião convocada pela Bené com a presença de Lula e aí esteve também o Hélio marcando forte presença.

Percebeu-se então a necessidade de combinar o processo de construção partidária com respostas concretas exigidas pelos desafios enfrentados pela conjuntura. Entre estes desafios estavam as eleições para governadores e para a Constituinte. Uma série de propostas começam a se desenhar. Fala-se no Gabeira como uma remota possibilidade, sem ainda decisão do mesmo. Tomou corpo também a ideia de se pensar numa alternativa petista e o nome do Hélio surge naturalmente. A grande tarefa é a de convencê-lo. Depois de todas as experiências sobre a presidência do PT era de se prever a necessidade de ‘munição pesada’. Depois de avaliarmos, um grupo de pessoas, em São Paulo e em São Bernardo do Campo, nos convencemos da importância de chamá-lo de novo a “desvia-se de sua vocação”… Conseguiu-se depois de muita insistência que ele aceitasse a reunião. De novo na casa do Carlos Alberto, com a presença de Lula, seu ”Diretor Político”, e do Frei Betto,

seu “Diretor Espiritual” e o saudoso e lendário Henfil (nosso candidato a candidato ao Senado) que só não aceitou porque ganharia! E, segundo ele, ser senador tudo bem, mas do PT é demais… Vai ter que correr o Brasil inteiro em cada assassinato de trabalhador!), e mais alguns companheiros dormiam, viveu-se a noite do convencimento, onde podia se vislumbrar a possibilidade do novo à frente da política carioca com Lula prevendo o Hélio “analisando” em pleno vídeo a mediocridade aos candidatos que defendem, sem disfarce, o indefensável.

Pellegrino não fez por menos. Passou a integrar o coro dos preocupados em encontrar um bom candidato para governador. Quando nos demos conta, ele já tinha nos convencido para o próximo passo. Foi dele a ideia de promover um encontro para convidar o jurista Raymundo Faoro, que naquele momento, ele transforma de “senador” em “governador”. Foi do próprio Hélio o palpite de ampliar o grupo com grandes “quadros” da Teologia da Libertação. Desta maneira, dias depois em minha casa, estavam também presentes os Freis Leonardo e Clodovis Boff, D. Muro Morelli e os sociólogos Jether Pereira Ramalho e Pedro Ribeiro de Oliveira para o encontro com o Faoro. Minutos antes de sair de São Paulo, Lula avisou que não poderia vir em função de um impasse nas negociações dos metalúrgicos em greve no Grande ABC.

Desta vez, Frei Leonardo e Hélio Pellegrino quase convenceram o Doutor Raymundo Faoro de aceitar a tarefa de mudar o quadro de ser candidatura para o governo do Estado. Este demonstrou que, sem dúvida, era esta a vertente política a ser fortalecida na confusa conjuntura brasileira, em profunda crise política, econômica e institucional. Mas deixou claro que precisava de uma prática partidária maior, além de estar vivendo dificuldades pessoais com a enfermidade de sua esposa, que faleceu pouco tempo depois.

Neste momento a possibilidade de candidatura de Fernando Gabeira já é bem mais concreta. Alguns setores do PT entram de cabeça na briga, como então futuro constituinte Vladimir Palmeira. De início, Hélio tem algumas dúvidas, queria ouvir o próprio Gabeira, se era pra valer e como. Depois de uma reunião ampla com o Gabeira, Hélio saiu fazendo a campanha e escreveu semanas depois no seu espaço no JB um lindo artigo mostrando “Porque votar no Gabeira”. Era possível falar de algo novo que aliava a imagem “transgressora” do candidato e com a limpidez do projeto político do PT. Foi uma campanha em que o Hélio fez panfletagem no seu consultório e boca de urna. Hélio fez com garra também campanhas proporcionais de Bené e a minha.

O exército de Brancaleone!

Dezembro de 86, Greve Geral. Derrota do Plano Cruzado, decepção popular, desmoralização do PMDB que contraditoriamente havia acabado de eleger todos os governadores dos Estados e a maioria dos Constituintes. Os votos ainda estavam nas urnas em vários lugares do país. Voto na urna é um grande negócio (e o cruzado já havia “dançado”). Repentinamente, as coisas mudam de figura. Antes das eleições, os poucos, nos mínimos espaços na mídia que conseguiam fazer algum nível de crítica ao Plano Cruzado, eram imediatamente crucificados. Parecia um milagre. Até lágrimas na televisão rolaram na defesa do Plano. O povo acreditou e “precisava” acreditar. Mais uma vez, ainda não era a sua vez, porque o Plano nasceu com os dias contados e no CTI, foi mantido vivo até as eleições à base de muito narcotráfico.

Foi nesse contexto que uma proposta de greve geral, ainda que sem muitas pernas próprias, a nível de organização do Movimento Operário-sindical, pegou o sistema desprevenido e fragilizado. Gigante se sentindo fraco é mais perigoso ainda. Com medo de maiores consequências deu-se ponto facultativo. Para garantir a “tranquilidade” o Exército e a Polícia foram para a rua. Às dez horas da manhã já tínhamos várias pessoas presas no Rio. Alguns foram encurralados em ruas estreitas do centro da cidade, quando faziam pequenas passeatas-arrastão. Era a velha tática de prender as lideranças para esvaziar o movimento. Do orelhão ligamos para algumas figuras de peso do “Exército de Brancaleone”. Minutos depois o Hélio e mais alguns companheiros se juntavam às lideranças sindicais e políticas no plantão da greve para traçarmos uma estratégia de libertação dos presos. Antes de irmos à polícia federal, resolvemos dar uma geral pelo centro. A paisagem era insólita: prédios, ruas, praticamente vazias e o ar pesado do Exército, armado até os dentes, especialmente na Central do Brasil. Neste momento, o Hélio não se conteve e soltou uma das suas: “o Exército tem medo do silêncio: se o povo não está na rua, pode estar conspirando”. De fato, só isso justificaria tanta pompa pras ruas vazias.

Poucos minutos depois a observação de Hélio se concretizava. Ao chegarmos a polícia federal, perto da Praça Mauá para tentarmos a libertação dos presos antes de serem indiciados judicialmente provocou-se um grande rebuliço. Um grupo de umas quarenta, cinquenta pessoas, e alguns no máximo, entre políticos do PT, do PDT e do PV, sindicalistas, intelectuais e alguns artistas procuravam se articular para conseguir entrar e negociar com a polícia. Enquanto isso percebia-se um movimento estranho da parte dos policiais civis que procuravam aglutinar para dentro dos portões seu maior contingente possível do outro lado da Avenida dos Cais. Em seguida, fomos abordados por um pequeno grupo com toda pinta de portadores de ordens superiores para que deixássemos a calçada do prédio da polícia e nos postássemos no outro lado da Avenida dos Cais. Foi quando, meio atônitos, percebemos o perigo que poderíamos estar ali representando e o recado direto: dezenas de caminhões da Polícia Militar e do Exército Brasileiro foram se colocando estrategicamente nas calçadas. Um sentido da avenida foi interditado para o trânsito e ocupado pelas forças armadas. Dos caminhões e camburões desciam soldados com uzis e metralhadoras, certamente não famintos, mas apetitosos de subversivos grevistas. Éramos espreitados um pouco mais à distância, por cavalariços que pareciam conduzir animais para uma exposição agropecuária da UDR do Senhor Caiado. Estávamos então literal e militarmente cercados. Nestas condições, pudemos dialogar e conseguir a soltura dos companheiros, porque não havia mais tempo para a greve. E Hélio completou sua observação anterior “não é que havia mesmo perigo, sô!”.

Quando saímos daquela ‘trincheira’, corremos para um chopp, Hélio, Carlos Alberto e eu, para uma catártica análise de conjuntura no Amarelinho.

No período de 86 a março (23) de 88, Hélio viveu uma espécie de hibernação fértil, de paixão e de utopia, sem se afastar o coração da realidade, onde a maioria da população se esquiva da morte à caça da sobrevida. Das perseguições políticas do Araguaia aos conflitos nas favelas, Hélio foi o porta-voz na grande imprensa da denúncia lúcida e competente, com espaço quase solitário, conquistado como um guardião da liberdade.

Vinte e três de março chegou como um pesadelo. Lembro-me que ao acordar o Lula em Brasília, levei mais de dez minutos para convencê-lo de que o Hélio tinha morrido. Só se ouvia uma frase de volta “não é possível, é brincadeira”. Esse clima dominou durante todo tempo que precedeu seu sepultamento. Os amigos de todas as áreas da intelectualidade, das artes, da política, da psicologia, das Minas e dos Brasis, se misturavam as pessoas anônimas que com uma flor ou uma lágrima, ou com ambas, vinham para se despedir do amigo que tanto lhes havia, lhes tinha feito. Por seus escritos, por suas ideias, por seu compromisso, mesmo sem, muitas vezes, tê-lo conhecido pessoalmente.

A bandeira do PT sobre o seu caixão significa um selo político e afetivo muito profundo. Hélio, Henfil, Jósimo, Margarida, Chico Mendes, Gingo… sementes fecundas, intenções concretas da nova sociedade socialista. Na despedida a Hélio, Lula dizia “não é só a perda de um grande ministro ou um dos maiores quadros e fundador do PT, mas é a sociedade brasileira que perde uma de suas inteligências mais criadoras”. É isso mesmo.

Adair Rocha, Professor da PUC-Rio, Assessor de Movimentos Populares e ex-dirigente Nacional do PT, à época. Professor Titular da FCS/UERJ, Presidente de Honra da Ação da Cidadania e autor de Cidade Cerzida.