Jackeline Aparecida Ferreira Romio*

Artigo - Mortes femininas por agressão física, racismo e institucionalidade, por Jackeline Aparecida Ferreira Romio
Reprodução CUT

Quando acompanhamos a série histórica dos registros de mortes por agressão física no Brasil, sempre vem à tona o tema das desigualdades na chance de ser vítima. É desalentador perceber que há um padrão que conjuga raça, idade e região na definição da maior incidência da violência letal em homens e mulheres. Isso se dá pela interseccionalidade das desigualdades, que expõe as pessoas pretas, pardas e indígenas, jovens das periferias, do Norte e Nordeste, a maiores riscos de vida em um conflito, seja armado, interpessoal, territorial, ou mesmo na interação com as instituições, como no caso das mortes violentas causadas pelo policiamento.

No caso das mulheres, venho acompanhando os dados desde 2000, e um fato evidente é que houve diminuição do número absoluto. Quando iniciei meus estudos, as mortes femininas eram cerca de 4.5 mil óbitos anuais, e, hoje, os atlas da violência mostram que esse número se reduziu para cerca 3,5 mil casos, o que é um indicador de que as medidas têm tido algum impacto. Porém, o mesmo padrão de desigualdade por raça, região e idade se mantém, como apontado na publicação “O papel da arma de fogo na violência contra a mulher”, do Instituto Sou da Paz, em que 69% das assassinadas em 2023 por armas de fogo foram mulheres negras.

O que causa essa maior incidência? Existe um desequilíbrio na distribuição dos mecanismos de defesa da mulher no Brasil. Vejo o caso das delegacias especiais de proteção à mulher: elas são poucas e se concentram quase todas em um único estado (São Paulo) e nas capitais. O mesmo ocorre com as patrulhas da Lei Maria da Penha. O que quero dizer com isso é que a própria oferta de serviços de atenção às mulheres vítimas da violência baseada no gênero leva à sobrevitimização das mulheres negras, do Norte e Nordeste, das periferias, devido às desigualdades estruturais de acesso a serviços. Devemos investir na redistribuição dos serviços e priorizar abrir novos equipamentos em locais que ainda não contam com atenção.

Por outro lado, já foi comprovado que ainda prevalecem nas instituições o racismo e o sexismo estruturais, que operam diferenciando a forma de proteger mulheres conforme sua raça, local de moradia e sua idade. Há um padrão histórico de naturalização da violência nas comunidades afrodescendentes e periféricas, além de um olhar enviesado que dificulta o acolhimento de vítimas negras e a atenção às suas queixas. Pesquisas apontam que vítimas negras têm mais dificuldades de registrar queixas e receber atenção que as brancas. Por isso, são essenciais programas de sensibilização do corpo policial, protocolos de atenção anti-racista, políticas públicas e programas específicos para a superação do racismo institucional, a fim de reduzir a violência baseada no gênero para todas as mulheres, independentemente de sua raça, idade ou local de moradia, entre outros marcadores sociais.


A Lei Maria da Penha completou 18 anos. Ela é uma lei integral, bastante complexa e vem em consonância com o acordo mais importante da nossa região, a Convenção de Belém do Pará, também conhecida como Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, que neste ano completou 30 anos. Acho que nós, brasileiras, temos muito a comemorar com o amadurecimento e a popularização desta lei. Porém, para que ela possa ser utilizada em sua plenitude, deve haver medidas de implementação, criação de redes integrais de serviços de defesa da mulher e monitoramento de metas, incluindo a parte educativa da lei, que é o seu ingresso no currículo educacional básico. Isso porque uma parte da violência doméstica contra as mulheres é naturalizada por normas sociais, e a escola deve poder dar o contraponto para a erradicação da violência, do machismo e do racismo.

Sobre o aumento do número de feminicídios, considero que faz falta, para um melhor entendimento desse crescimento, o pareamento dos dados dos registros policiais de feminicídios com as declarações de óbito do Ministério da Saúde. Apenas com a interoperabilidade desses dois registros poderemos afirmar quantas das mortes por agressão física estão classificadas na polícia como feminicídios e entender essa relação, que deve ser cuidadosamente avaliada para uma resposta baseada em evidências, visando ao aprimoramento das políticas públicas de defesa dos direitos das mulheres a uma vida livre de violência.

Jackeline Aparecida Ferreira Romio é doutora em Demografia pela Unicamp e especialista no tema da redução dos feminicídios