Artigo: a Consciência Negra e a luta pela terra no país do agronegócio
Na semana da Consciência Negra, artigo discute como a luta pela terra e contra o latifúndio é também uma luta antirracista
Por Rafael Bastos*, da página do MST
Pensar no campo Brasileiro é pensar nas desigualdades que estruturam a sociedade, como o racismo e o patriarcado, que são peças fundamentais do latifúndio. A luta pela terra é uma luta antirracista, para começar esse diálogo é imperativa a pergunta: há alguma dúvida de que o MST é um movimento negro? assim como a população brasileira?
É importante posicionar que escrevo da capital federal brasileira, construída por gente preta, em cima de um antigo Quilombo no centro do Brasil, antes terras indígenas.
O texto é um convite a refletirmos sobre o dia 20 de Novembro e todo o mês, partimos da luta promovida por vários grupos, destaco o Movimento Negro Unificado (MNU), na promoção de debates sobre o impacto do racismo e a necessidade de políticas públicas para lidar com as desigualdades do estado brasileiro.
O Dia, mês ou semana da Consciência Negra tem grande importância na promoção do reconhecimento na luta contra o racismo no Brasil, mas a luta dos negros e negras é feita todos os dias, pois o racismo e os racistas não atuam apenas um dia. A história e as contribuições da população negra, são a essência da sociedade brasileira. Ele oferece uma oportunidade para revisitar e valorizar a cultura afro-brasileira, fortalecendo a identidade e o senso de pertencimento entre as gerações atuais. Nós, negros, somos a maioria da população, sem pensar no povo negro não há como pensarmos em Brasil.
A criação da data é uma resposta à invisibilidade enfrentada pela população negra no Brasil, com um chamado à reflexão sobre o papel de Zumbi dos Palmares e sobre a herança da resistência cultural. Palmares, o maior quilombo de todos os tempos, figura proeminente o Quilombismo, refletido por Abdias do Nascimento (1980), que discute sobre a filosofia de resistência nacional em todo o processo de colonização. O ex-senador, pensador e lutador social apontou que “os quilombos são uma das primeiras experiências de liberdade das Américas, legado de uma proposta de mobilização política da população afrodescendente com base na sua própria experiência histórica e cultural. Uma alternativa político-social de combate ao racismo e de construção de uma nova sociedade inspirada na experiência histórica dos quilombos brasileiros”, dizia ele.
Ao olharmos para a origem da “República”, é fato de que o poder nacional emergiu com o processo de “independência” do Brasil, em 1822. Contudo, segundo Guerreiro Ramos (1996), a “independência” não proporcionou a emancipação social. O processo de independência apenas estabeleceu uma “forma” nacional para a sociedade, sem a presença do substrato normativo das identidades da população em sua diversidade, excluindo a maior parte da população.
O Brasil Império e a República Velha, foram criados e administradas por militares e latifundiários, que se institucionalizou na forma de oligarquias mantidas em torno de acordos políticos. “É relevante, assinalar que, durante o período de dominação dos fazendeiros, o Brasil foi um país sem povo” (1957, p.14).
A Lei de Terras de 1850 foi considerada um momento fundamental para a condição das pessoas negras no Brasil, pois restringiu o acesso à terra à maioria da população que lutava pela abolição da escravatura. O fim da escravatura só ocorreu décadas depois, mas as terras já estavam nas mãos de brancos, que até hoje estão aí. Portanto, qual será a cara do latifúndio e do agronegócio brasileiros?
A terra convertida em mercadoria, disposta apenas para quem possuía dinheiro e influência política, berço da grilagem, avançou sendo regularizada através do anos, uma entre tantas estratégias de dominação patriarcal da branquitude.
A “independência” edificou uma ideia de “nação”, sem um ideário e valores capazes de assegurar a existência de uma identidade e de uma cultura nacional popular. Mudanças superficiais nesse cenário viriam a acontecer apenas na industrialização e urbanização do Brasil, fazendo com que o poder tivesse uma mudança de rota do campo para a cidade, mantendo seus currais feudais e a concentração fundiária. A pobreza e a desterritorialização do povo camponês, foi central e segue na terra, resistindo contra o apagamento da identidade negra.
A ideologia da democracia racial defendida e difundida por Gilberto Freyre, não previu formas de integração do povo negro na “nova sociedade” e ainda aprofundou mecanismos de barragem para integração, como a discriminação e o preconceito de cor racista. Ideia contestada por Florestan Fernandes (1989), uma vez que diversas pesquisas demonstraram que os negros, devido ao processo de escravidão, foram tratados como inferiores e que essa realidade não mudou após a escravidão.
Para Fernandes (1989) o desenvolvimento do capitalismo no país resultaria na integração do negro na sociedade de classes (LOPES; BRITO, 2012). Essa análise da construção do poder e da exclusão das massas está diretamente conectada com a luta pela terra no Brasil, liderada por movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MS), não somente, mas em sua maioria preto, feminino, cristão em suas diferentes formas no país.
A luta pela terra é uma continuidade da resistência histórica, em que comunidades buscam não só o acesso à terra, mas a criação de um espaço de pertencimento e identidade. A falta de um substrato normativo de povo, não virá do Congresso branco e herdeiro, para garantir uma cultura nacional vinda das raízes históricas, e romper com a estrutura de poder que ainda privilegia uma minoria. Resgatar o protagonismo do povo na construção de uma nova ordem social, segue sendo nossa tarefa de todo o ano. Fanon (1980, p. 40) nos diz que “é preciso procurar incansavelmente as repercussões do racismo em todos os níveis de sociabilidade”. Aqui nos questionamos, onde esta o povo negro nos espaços em que tu anda?
Fruto da hierarquia cultural sustentada na supremacia branca, a cultura negra continua, quando abordada, representada de forma folclorizada e preconceituosa, inclusive por cientistas, que iniciam as suas pesquisas a partir de preconceitos estabelecidos e olhares etnocêntricos. A adequação aos “estilos urbanos de vida” era privada aos negros, em processo de integração a “sociedade”, não possuíam condições mínimas de sustentar-se e de participar economicamente, culturalmente e socialmente do meio urbano em construção (KAWAHALA & SOLER, 2010, p. 409).
A desmistificação desta democracia está pautada na ideia de que, mesmo após o fim da escravidão, os negros continuavam a serem marginalizados e excluídos do processo social do país, o que mudou? Podemos afirmar que, no período pós-escravidão, os negros e seus descendentes continuaram com um status diferente em relação aos brancos. Dialogando com os escritos de Souza (1983), cabe ao sujeito negro apoderar-se do conhecimento, desvendá-lo e destruí-lo, assim como cabe ao não-negro a execução desse feito, essa superação e destituição do mito, mesmo porque o mito negro é feito de imagens compartilhadas por ambos. “Razão maior para que tal empenho seja comum é o nosso anseio de construir um mundo onde não seja mais preciso dividi-lo entre negros e brancos” (SOUZA, 1983, p. 26).
A luta pela terra no Brasil é, portanto, também uma forma de resistência histórica que ecoa as lutas quilombolas e a busca por liberdade e dignidade. O MST e outros movimentos populares que lutam pela Reforma Agrária Popular representam essa continuidade de resistência, movimento de maioria de mulheres negras, busca a inclusão e o reconhecimento de direitos para as populações marginalizadas e historicamente excluídas. A terra foi o que nos tiraram para nos explorar sob outro regime, por isso é chegada a hora de retomá-la, é uma condição fundamental para construir uma sociedade livre do racismo, da dominação patriarcal e da exploração capitalista em nosso país.
Por fim, para lutar contra o racismo de apagamento que reina no Brasil, em toda a reunião popular, peça ao povo negro para se levantar e se olhar. Trata-se de um exercício fundamental para não esquecermos dos rostos dessas terras, que precisamos conquistar.