Do caos a lama, a pior tragédia climática da história da Espanha, por Nanny Alves
Foto: Reprodução/Wikimedia Commons

Negligência e capitalismo, são as primeiras palavras que me vem à cabeça para começar  descrever e escrever sobre o horror que vivemos aqui no País Valencià nos últimos dias.  Esclareço e alerto aos militantes brasileiros progressistas, que a esquerda valenciana, em sua  grande maioria, chama nossa região de País Valencià. Uma nomenclatura que tem um vínculo  cultural, alude às tradições e ao idioma valenciano, língua nativa que falam a maioria das  pessoas dessa região. Comunidade Valenciana, nome dado pelo Estado Espanhol, é usado  geralmente pela direita, ou a princípio por muitos de nós, visitantes ou imigrantes, que  chegamos pela primeira vez nessa terra, desconhecendo sua história de lutas e forte resistência  cultural.  

Negligência, capitalismo, negacionismo e incompetência é uma mistura mortal que conduziu  a região do sul de Valência a tantas mortes, destruição, tristeza e lama. A maldade ou a  ignorância leva muitas pessoas a negar as mudanças climáticas, e nutrir um absurdo desprezo  pela ciência. Em maio de 2023 a maioria dos valencianos que votaram, elegeram um  governador de direita que formou governo junto a extrema direita. Governo que demonstrou  negligência e incompetência para gerir o alerta vermelho climatológico a que estávamos  submetidos no dia 29 de outubro de 2024.  

Não fomos avisados a tempo, o alarme chegou quando já haviam mortos e pessoas sendo  arrastadas pela enchente. Vivo a uma hora de Valência e nunca chegou nenhum aviso, nem  alarme no meu celular ou Email, porque se considera que não vivemos na região zero.  Negligenciando que muitos de nós fazemos vida na região estudantil e industrial de Valência.  Se a população tivesse sido avisada, o alarme chegasse a tempo, a destruição havia sido  minimizada e sobretudo a maioria das vidas poderiam ter sido preservadas. 

Muitas empresas ignoraram o alerta vermelho e obrigaram seus trabalhadores a trabalhar  normalmente, muitos desses não conseguiram voltar para suas casas, ficaram presos em seus  locais de trabalho, ou infelizmente foram surpreendidos pela enchente voltando para casa.  

Paiporta, Picanya, Alfafar, Catarroja, Algemasí, Torrent, Xiva são algumas das cidades mais  afetadas pela inundação. A mais de trinta anos foram ocupadas paulatinamente pela  exploração imobiliária, transformando-se em cidades dormitórios, dada a proximidade a  Valencia capital, e o desenvolvimento de polos industriais. A construção desenfreada em áreas  inundáveis foi negligenciada pelo Estado, a prevenção com infraestrutura hidráulica de  proteção em áreas possivelmente inundáveis foi ignorada pelas construtoras. A maioria da  população dessas cidades mais afetadas é formada pela classe trabalhadora, que buscou opção  de compra ou aluguel mais econômicos. Muitos perderam todos seus bens materiais, casas,  recordações, e infelizmente entes queridos. Só há uma justificativa para a negligência das  autoridades governamentais valencianas, o desprezo absoluto pela vida da classe trabalhadora. 

Vivi vários furacões durante minha estância em Cuba, em um deles meu edifício teve dois  andares inundados, ficamos quase 48h cercados por água. Não faleceu ninguém em Havana,  apesar de ser uma cidade com escassos recursos materiais. O que nos salvou foi sem dúvida as  ações de prevenção da empresa meteorológicas e da defesa civil, coordenadas por um Estado que prioriza a vida de toda cidadania. Também a alta disciplina social da população. Aqui no  Paìs Valencià, falhou categoricamente o governo de direita e extrema direita, primeiro  responsável pela coordenação do alerta vermelho. E a população foi levada a falhar, pela  completa desinformação do que realmente estávamos vivendo. Muitas pessoas foram

arrastadas tentando salvar seus carros, outras voltando para casa, outras dentro de suas casas construídas em áreas inundáveis, sem qualquer infraestrutura hidráulica de proteção. 

Nos alerta o deputado valenciano da Assembleia Nacional Alberto Ibáñez, que a extrema  direita está usando de seu poderio nos meios e nas redes sociais, para propagar fakes News,  mentiras com o fim de criar confusão, para não assumir as responsabilidades políticas dessa  tragédia. Também nos alerta um dos diretivos da ONG CEAR, Jaume Durá, sobre a grande importância de ter governos comprometidos com a vida, que atuem preventivamente contra  as possíveis consequências das mudanças climáticas. Uma das primeira medidas do governo  atual, de direita e extrema direita, foi fechar a UVE(Unidade Valenciana de Emergência), unidade criada pelo governo socialista anterior, que conhecia as consequências das mudanças  climáticas em vários pontos do planeta, e criou essa unidade como prevenção e apoio a  população em qualquer eventualidade.  

Ainda seguimos em estado de choque, a sensação de desamparo é profunda. Nunca fez mais  sentido o jargão, ‘’ Só o povo, salva o povo’’. A solidariedade tem chegado de toda Espanha e  também de outros países da Europa e América Latina. A diplomacia da Colômbia desde o  primeiro momento esteve presente junto aos seus compatriotas e demais afetados, levando  alimentos, águas, médicos e pediatras as regiões mais afetadas. O consulado brasileiro, ao qual  estamos cadastrados, ainda não enviou nem sequer um e-mail perguntando se estamos vivos. Tomara que o Brasil e demais países sigam o exemplo da diplomacia colombiana, e não funcionem apenas como uma oficina de tramitação de documentos e negócios internacionais para as elites. 

Gratidão a todos esses voluntários e doadores, a solidariedade fortaleceu a fé no ser humano.  Uma poetiza valenciana, Paquibel Server, escreveu um poema depois de voltar do voluntariado  na área 0, nos presenteou seu poema para esse texto, a importância da arte para expressar sentimentos, para traduzir nosso grito: 

*FANG 

Quan les paraules / no saben expressar el dolor. / Quan la bèstia ha colpejat / sense escrúpols ni miraments, / quan a més a més   / el neci és l’acompanyant, / quan la / maldat es fa palesa / en cada racó del cor,  / quan la inoperància  / no te justificació  / quan es perd la credibilitat  / quan ja no tens confiança  / quan les mentides suren  / i / acampen per tot arreu. / És quan el dol ompli de fang  / tota la tristor /i aleshores, 

/ la ràbia esclata del més endins  / per demanar, per exigir dignitat.  

Me despeço contando que a principal candidata de esquerda para as eleições governamentais valencianas de 2023, Monica Oltra, foi vítima de Lawfare e afastada da política durante vários anos até provar sua inocência. Sofreu com o poderio das fakes News, e sofreu mais ainda com  

a falta de apoio e solidariedade da própria esquerda, inclusive de membros de seu próprio partido. Muitos, com uma mirada miserável, viam em seu afastamento uma oportunidade de  escalar altos cargos. A falta de ética, união e lealdade, a incapacidade da esquerda valenciana  de chegar juntos a um projeto democrático mais à esquerda para um governo de coalizão,  conduziu a um alto índice de abstenções nas eleições de 2023. A esquerda se posicionou mais ao  centro, e perdeu para ela mesma, infelizmente. Que nos sirva de aprendizado histórico, tanto a  importância de votar em políticos comprometidos com a vida, quanto a consciência da  importância da construção de um projeto democrático onde a ética, o compromisso social e  humano com a classe trabalhadora, estejam por cima do lucro, vaidades e interesses pessoais.  Que essa sensação de desamparo que sentimos agora, amenizada pela solidariedade da  população, desapareça em forma de voto em projetos políticos mais à esquerda, que  combatam a favor da vida, e priorizem o cuidado com nosso planeta. O capitalismo do primeiro  mundo passou em poucas horas do caos a lama. 

Nanny Alves. Militante do núcleo do PT Valencia