A decisão de lutar contra o racismo por meio da cultura e da educação foi tomada por João Jorge em 1978, quando ainda muito poucos trilhavam esse caminho

A luta de João Jorge por dignidade para a Fundação Cultural Palmares
O projeto Reconexão Periferias recebeu na sede da Fundação Perseu Abramo, o presidente da Fundação Cultural Palmares, João Jorge Rodrigues. Data: 30/10/2024. Foto: Sérgio Silva.

Nascido na Rua do Bispo, no Centro Histórico de Salvador (BA), em 1956, João Jorge Santos Rodrigues entendeu muito jovem que cultura, educação, arte e política andam sempre juntas. E dessa compreensão visionária nasceu o Olodum, um dos maiores ícones da cultura popular brasileira, do qual foi um dos fundadores e esteve à frente como presidente por anos até assumir a presidência da Fundação Cultural Palmares, em março de 2023.
Escritor, palestrante, produtor cultural e advogado, ele foi militante do Movimento Negro Unificado e sempre lutou por justiça, democracia e igualdade. Formado em Direito pela Universidade Católica do Salvador (2001) e mestre pela Universidade de Brasília, atua na área de Direito Constitucional, particularmente em temas como direitos humanos, cidadania para afrodescendentes, comunicação e cultura negra. Dirigiu a Fundação Gregório de Matos, órgão da gestão cultural da Prefeitura de Salvador, e integra a Comissão Nacional da Verdade sobre Escravidão Negra no Brasil, como membro consultor.
Com três livros publicados – Carnaval, Cultura, Negritude (Salvador: Associação Carnavalesca Bloco afro Olodum, 2005); Olodum – Uma estrada da paixão (Salvador Bahia: Edições Olodum, 1996); e Fala Negão, o discurso sobre a igualdade (2021) – João Jorge se consolida como um pensador da cultura e da arte pela igualdade no Brasil e no mundo.

Dignidade para a Palmares

Nas palavras de João Jorge, a Palmares é uma poderosa ideia, nascida das ruas, do movimento social e das demandas dos quilombos urbanos e rurais. Criada em 22 de agosto de 1988, é anterior à Constituição cidadã, promulgada em outubro daquele ano. “Foi fruto das lutas nas ruas em homenagem a Zumbi e ao quilombo dos Palmares. É o primeiro organismo do governo federal criado em reconhecimento de que era preciso fazer algo pela população negra, aquela que o Estado só atendia com violência policial e agressão aos cidadãos que estavam nas periferias. Portanto, é uma vitória extraordinária das periferias”.
Ele lembra que já no governo Collor houve uma tentativa de acabar com a Palmares por meio do Congresso Nacional. E desde o governo Temer ocorreram várias iniciativas para diminuir seu tamanho, importância, asfixiá-la e até não permitir que circulasse no Brasil. Ao assumir a presidência da instituição, o presidente encontrou um quadro desolador.
“No governo anterior, mais de cinco mil livros da biblioteca Oliveira Silveira seriam destruídos ou queimados. O símbolo da Fundação, que é de justiça, foi trocado por outro herdado da família imperial. As cores do pan-africanismo – verde, amarelo, vermelho, branco, preto – foram substituídas pelo azul e amarelo da família Bourbon. E os 109 heróis brasileiros negros que estavam no site retirados. Havia também alguns editais, um deles era o Edital de Fotografia Princesa Isabel”, relata.
João Jorge afirma que é dessa forma que se ataca um povo e um país, por sua cultura, suas ideias, pelo desenraizamento. “Nós assumimos a função de dar à Palmares dignidade, um novo espaço, manter sua biblioteca funcionando, agora com um subsolo inteiro à disposição. Digitalizar o acervo, fazer eventos com música, literatura e com as periferias. Ela é o símbolo da dignidade brasileira, da luta contra a opressão, o racismo e por uma cultura de igualdade. Ao mesmo tempo, ela sofreu um processo de desmantelamento brutal que exige um esforço triplamente concentrado para o espaço físico funcionar”.

Uma revolução pela educação

A decisão de lutar contra o racismo por meio da cultura e da educação foi tomada por João Jorge em 1978, quando ainda muito poucos trilhavam esse caminho. “Eu trabalhava no Polo Petroquímico da Bahia e resolvi ir para o sindicato. Fui militante junto com Jaques Wagner, Rui Costa e tantos outros. Eu optei pela educação para a revolução. Tinha influências de Amílcar Cabral (Guiné-Bissau), Agostinho Neto (Angola) e Samora Machel (Moçambique). Recebia material de Portugal e convivia, na Universidade Católica, no curso de Direito, com padres de africanos, um da Guiné-Bissau, um de Moçambique e um de Angola. A tese deles era que sem educação nada daria certo. Depois tivemos o encontro afro-brasileiro da Cândido Mendes e, aqui em São Paulo, o encontro das culturas negras com Abdias do Nascimento. Então estava óbvio para mim que a mudança tinha de ser pela cultura, educação, arte e política”.
O Olodum foi fundado como bloco carnavalesco em 1979, estreou no carnaval de 1980 e gravou seu primeiro disco em 1987. Já em 1984 criou a Escola Olodum, um projeto com aulas gratuitas de percussão (Rufar dos Tambores), responsável também pela formação de lideranças, cursos para inclusão digital, seminários com a participação de acadêmicos e de militantes. Em meados de 1990 iniciou o Bando de Teatro Olodum, inspirado no Teatro Experimental do Negro.
Para João Jorge, a pujança e vitalidade do Olodum se mantém devido à força das mulheres, dos homens, dos jovens e dos mais idosos que compõem sua atmosfera. Diferente dos demais blocos, ele foi criado num bairro pobre, em 25 de abril de 1979, teve as suas dificuldades, e se reinventou em 1983, transformando-se de bloco afro em grupo cultural. Investiu em criar a primeira escola afro-brasileira do país, um bando de teatro, uma banda de shows, um grupo de dança e ao mesmo tempo participou ativamente da política brasileira. “Nos anos 80, por exemplo, nós participamos ativamente das primeiras campanhas do presidente Lula. Passamos a ser vistos como grupo de esquerda, enquanto na verdade somos um grupo afro popular com vocação a fazer política e cultura. Talvez o sucesso do Olodum hoje em dia ainda seja por cantar as coisas para nossa gente, nosso povo, dentro da política cultural”.