A luta de João Jorge por dignidade para a Fundação Cultural Palmares
A decisão de lutar contra o racismo por meio da cultura e da educação foi tomada por João Jorge em 1978, quando ainda muito poucos trilhavam esse caminho
Nascido na Rua do Bispo, no Centro Histórico de Salvador (BA), em 1956, João Jorge Santos Rodrigues entendeu muito jovem que cultura, educação, arte e política andam sempre juntas. E dessa compreensão visionária nasceu o Olodum, um dos maiores ícones da cultura popular brasileira, do qual foi um dos fundadores e esteve à frente como presidente por anos até assumir a presidência da Fundação Cultural Palmares, em março de 2023.
Escritor, palestrante, produtor cultural e advogado, ele foi militante do Movimento Negro Unificado e sempre lutou por justiça, democracia e igualdade. Formado em Direito pela Universidade Católica do Salvador (2001) e mestre pela Universidade de Brasília, atua na área de Direito Constitucional, particularmente em temas como direitos humanos, cidadania para afrodescendentes, comunicação e cultura negra. Dirigiu a Fundação Gregório de Matos, órgão da gestão cultural da Prefeitura de Salvador, e integra a Comissão Nacional da Verdade sobre Escravidão Negra no Brasil, como membro consultor.
Com três livros publicados – Carnaval, Cultura, Negritude (Salvador: Associação Carnavalesca Bloco afro Olodum, 2005); Olodum – Uma estrada da paixão (Salvador Bahia: Edições Olodum, 1996); e Fala Negão, o discurso sobre a igualdade (2021) – João Jorge se consolida como um pensador da cultura e da arte pela igualdade no Brasil e no mundo.
Dignidade para a Palmares
Nas palavras de João Jorge, a Palmares é uma poderosa ideia, nascida das ruas, do movimento social e das demandas dos quilombos urbanos e rurais. Criada em 22 de agosto de 1988, é anterior à Constituição cidadã, promulgada em outubro daquele ano. “Foi fruto das lutas nas ruas em homenagem a Zumbi e ao quilombo dos Palmares. É o primeiro organismo do governo federal criado em reconhecimento de que era preciso fazer algo pela população negra, aquela que o Estado só atendia com violência policial e agressão aos cidadãos que estavam nas periferias. Portanto, é uma vitória extraordinária das periferias”.
Ele lembra que já no governo Collor houve uma tentativa de acabar com a Palmares por meio do Congresso Nacional. E desde o governo Temer ocorreram várias iniciativas para diminuir seu tamanho, importância, asfixiá-la e até não permitir que circulasse no Brasil. Ao assumir a presidência da instituição, o presidente encontrou um quadro desolador.
“No governo anterior, mais de cinco mil livros da biblioteca Oliveira Silveira seriam destruídos ou queimados. O símbolo da Fundação, que é de justiça, foi trocado por outro herdado da família imperial. As cores do pan-africanismo – verde, amarelo, vermelho, branco, preto – foram substituídas pelo azul e amarelo da família Bourbon. E os 109 heróis brasileiros negros que estavam no site retirados. Havia também alguns editais, um deles era o Edital de Fotografia Princesa Isabel”, relata.
João Jorge afirma que é dessa forma que se ataca um povo e um país, por sua cultura, suas ideias, pelo desenraizamento. “Nós assumimos a função de dar à Palmares dignidade, um novo espaço, manter sua biblioteca funcionando, agora com um subsolo inteiro à disposição. Digitalizar o acervo, fazer eventos com música, literatura e com as periferias. Ela é o símbolo da dignidade brasileira, da luta contra a opressão, o racismo e por uma cultura de igualdade. Ao mesmo tempo, ela sofreu um processo de desmantelamento brutal que exige um esforço triplamente concentrado para o espaço físico funcionar”.
Uma revolução pela educação
A decisão de lutar contra o racismo por meio da cultura e da educação foi tomada por João Jorge em 1978, quando ainda muito poucos trilhavam esse caminho. “Eu trabalhava no Polo Petroquímico da Bahia e resolvi ir para o sindicato. Fui militante junto com Jaques Wagner, Rui Costa e tantos outros. Eu optei pela educação para a revolução. Tinha influências de Amílcar Cabral (Guiné-Bissau), Agostinho Neto (Angola) e Samora Machel (Moçambique). Recebia material de Portugal e convivia, na Universidade Católica, no curso de Direito, com padres de africanos, um da Guiné-Bissau, um de Moçambique e um de Angola. A tese deles era que sem educação nada daria certo. Depois tivemos o encontro afro-brasileiro da Cândido Mendes e, aqui em São Paulo, o encontro das culturas negras com Abdias do Nascimento. Então estava óbvio para mim que a mudança tinha de ser pela cultura, educação, arte e política”.
O Olodum foi fundado como bloco carnavalesco em 1979, estreou no carnaval de 1980 e gravou seu primeiro disco em 1987. Já em 1984 criou a Escola Olodum, um projeto com aulas gratuitas de percussão (Rufar dos Tambores), responsável também pela formação de lideranças, cursos para inclusão digital, seminários com a participação de acadêmicos e de militantes. Em meados de 1990 iniciou o Bando de Teatro Olodum, inspirado no Teatro Experimental do Negro.
Para João Jorge, a pujança e vitalidade do Olodum se mantém devido à força das mulheres, dos homens, dos jovens e dos mais idosos que compõem sua atmosfera. Diferente dos demais blocos, ele foi criado num bairro pobre, em 25 de abril de 1979, teve as suas dificuldades, e se reinventou em 1983, transformando-se de bloco afro em grupo cultural. Investiu em criar a primeira escola afro-brasileira do país, um bando de teatro, uma banda de shows, um grupo de dança e ao mesmo tempo participou ativamente da política brasileira. “Nos anos 80, por exemplo, nós participamos ativamente das primeiras campanhas do presidente Lula. Passamos a ser vistos como grupo de esquerda, enquanto na verdade somos um grupo afro popular com vocação a fazer política e cultura. Talvez o sucesso do Olodum hoje em dia ainda seja por cantar as coisas para nossa gente, nosso povo, dentro da política cultural”.