“Não é a primeira vez que eu recebo ameaças de morte. Isso nos coloca num estado de alerta, de medo”, conta Carol Dartora
Agência Câmara

A primeira deputada federal negra do estado do Paraná, Carol Dartora, sofreu um dos piores ataques digitais da sua trajetória política. “O ataque é para coibir, apagar, silenciar, frustrar, minar, inibir a nossa atuação política. E se eu disser que isso não tem efeito, é mentira”, declarou.

O Paraná é o terceiro estado brasileiro com a maior população branca de acordo com o censo de 2022 do IBGE. Os brancos são 64% da população e apenas 4,2% são pretos. Para a deputada, a dificuldade de punição é a maior dificuldade em enfrentar o problema. “Enquanto não conseguimos punir esses grupos, eles continuam afirmando que não têm medo (da Polícia Federal), o que é bastante assustador” explicou.

Carol é mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná e especialista em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos. Graduada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, atuou como professora na rede pública estadual entre 2013 e 2021, quando se afastou para exercer mandato de vereadora. Elegeu-se deputada federal em 2022 com 130.654 votos.

Defensora ativa das cotas raciais e de gênero, e de políticas para combater a violência política e racial, ela defende a importância da educação para as relações étnico-raciais e do fortalecimento da identidade negra na sociedade brasileira. Sua trajetória é marcada pelo compromisso em promover justiça social e igualdade, enfrentando os desafios relacionados ao racismo e à misoginia em seu trabalho político. Confira a entrevista concedida à FOCUS.

Deputada, gostaria de começar pedindo para você nos contar sobre as ameaças que você recebeu nos últimos dias.

Bom, nesses últimos dias eu recebi um ataque extremamente pesado. Foram mais de 40 e-mails, com ataques racistas, misóginos, com incitação ao suicídio, incitação ao estupro, ameaça de violência sexual, enfim, relacionando com a atividade parlamentar. Então, é muito assustador. Não é a primeira vez que eu recebo ameaças de morte, e realmente isso nos coloca num estado de alerta, de medo. Eu não tinha ainda entendido efetivamente quais são os impactos dessas ameaças, de uma ameaça de morte, enfim, de ver tanta violência misógina e racista. O conteúdo é muito pesado. A primeira vez que eu recebi esse tipo de ameaça, foi quando eu fui eleita vereadora em 2020 e naquele primeiro momento, como isso era uma situação nova na minha vida, não tinha vivido essa exposição, não tinha vivido algo semelhante diretamente, eu não contabilizei os impactos. Naquele momento eu fui buscar pela minha segurança, fizemos todas as denúncias de que isso se trata de violência política, porque naquele momento estava sendo eleita a primeira vereadora negra de Curitiba, mas ao longo da minha trajetória, de lá para cá foram quatro anos, fui percebendo os efeitos disso. Então, eu tive síndrome do pânico, eu conheci o que são as crises de ansiedade, eu passei a ter medo de andar na rua, eu passei a ter muito medo de estar em espaços públicos, e esse eu vejo que é o maior ataque. Para mim, a centralidade da violência política está aí, porque estar na política institucional é estar exposta, é estar nos espaços públicos, é falar publicamente, é muitas vezes estar em uma praça, é muitas vezes estar em cima de um caminhão, então não é justo que esse espaço que a gente vem galgando com tanta dificuldade, com tanta construção. O movimento negro, o movimento de mulheres negras, o movimento de mulheres, vem lutando para que a gente possa ocupar um espaço público há tanto tempo, e quando a gente começa a chegar, sofremos esse tipo de violência que visa justamente nos tirar desse espaço.

Quais as medidas que a senhora tomou para se proteger? E ainda, como tem sido a atuação do Ministério Público, da Polícia Federal, no combate a essas violências que afetam especialmente as mulheres negras, parlamentares? A senhora acha que essas medidas, esses procedimentos têm sido eficientes? 

Eu recebo ataques o tempo todo, mas dessa forma foi a segunda vez. O que é interessante é que, nesses últimos e-mails, eles realmente se declararam um grupo de ódio, um grupo neonazista, afirmando não ter medo da Polícia Federal. Através das investigações em andamento, percebemos que é o mesmo grupo que promoveu ataques em 2020 contra várias parlamentares, como Duda Salabert, Erica Malunguinho e Taliria Petrone. Eles já realizavam esses ataques antes de mim, parecendo atuar desde 2018, em 2020 e agora em 2024. Acionamos todos os órgãos competentes, como o Ministério Público Federal, a Polícia Federal e a Polícia Legislativa. E o que a gente percebe? A dificuldade de punição. Esse é o maior gargalo. Enquanto não conseguimos punir esses grupos, eles continuam afirmando que não têm medo, o que é bastante assustador. E, no sentido de não conseguirmos a punição, eu sinto que permanecemos fragilizadas. O que percebemos e nomeamos como violência política, eu tenho chamado de violência política de gênero e raça. Claro, tem um componente de gênero absurdo. Em um dos e-mails, eles dizem que querem se masturbar com o meu corpo sem vida. Então, o componente misógino aqui é absurdo. Mas tem o agravante da raça. É ainda muito recente a lei de violência política de gênero e ainda não conseguimos refiná-la o suficiente para que ela abrace o que significa essa desigualdade multiplicada que o componente racial traz. Somos pouquíssimas mulheres negras no parlamento, somos pouquíssimas mulheres negras na política. E dizer que a gente tem tido proteção, que a legislação tem sido suficiente, que a segurança tem sido suficiente, não tem sido suficiente. E como digo, para mim, o maior impacto é o impacto na nossa atuação. O ataque é para coibir, apagar, silenciar, frustrar, minar, inibir a nossa atuação política. E se eu disser que isso não tem efeito, é mentira. A nossa atuação política é constantemente acidentada por situações como essas. Então, a gente está desprotegida. Já temos que trabalhar o dobro para chegar onde estamos, já trabalhamos cinco vezes mais para provar competência, e quando chegamos, a nossa atuação tem constantemente essas perturbações, esses acidentes, com o objetivo nítido, de silenciar o que a gente diz, de silenciar o que a gente fala. Quando um grupo se declara neonazista, o que ele está dizendo? As injúrias raciais são sobre a cor da minha pele, sobre a textura do meu cabelo? Isso é racismo. Eu sou a primeira deputada federal negra do estado do Paraná. E eles disseram que não têm medo da Polícia Federal de Curitiba. E eu estou nessa cidade, capital deste estado, que é uma das cidades com o maior número de células neonazistas no Brasil. Enquanto neonazistas tiverem palanque e ideologias, grupos de ódio, grupos de propagação de ódio, que têm liberdade na internet, eles se reúnem, se organizam, se convidam, promovem ataques e conseguem palanque. Porque a gente percebe figuras políticas hoje que fazem de discurso de ódio, de racismo, de misoginia, palanque político. 

A senhora consegue identificar algum evento que despertou essa nova série de ataques?

Tem duas circunstâncias. Recebi 40, 41 e-mails. Alguns eu nem li, eu não queria ter lido nenhum. Mas eu acabei tendo acesso a alguns e não tem como não dizer que não machuca, que não é pesadíssimo, que não dá medo. Enfim. Mas foram, se não me engano, 41 e-mails ou mais. E sim, eu acredito que tem dois eventos. O primeiro fato é que eu fui pré-candidata à prefeitura aqui na cidade de Curitiba, uma cidade que se diz uma cidade branca. E aqui acompanhamos, de fato, uma reconhecida propagadora de discurso de ódio e de desinformação ir para o segundo turno. Eu acredito que esse evento, sim, empoderou esses grupos e essas ideologias de ódio neonazistas. Essa figura que aqui ascendeu ao segundo turno, surpreendentemente para alguns, tem um tipo de discurso que circula na deep web. As pessoas não sabem por onde essa campanha caminhou. Algumas pessoas perguntam isso. Por onde essa campanha passou? Essa campanha passou na deep web, por onde circulam as fake news, onde passam os discursos de ódio. Quando fui vereadora aqui em Curitiba, essa figura dizia que eu estava aprovando uma política extremamente distorcida, referindo-se à política de cotas. Ela dizia que Curitiba teria que, então, contratar pessoas pela cor da pele, que mérito não servia mais nada, porque agora Curitiba ia ter cotas. Então ela é essa pessoa que vem com esse tipo de discurso há um bom tempo. Acho que esse foi um evento. Acho que sim, que esses grupos se sentem empoderados quando eles têm espaço público. A outra questão é que o meu mandato é muito propositivo, promove grandes denúncias na questão da educação, contra o governo, contra a prefeitura, eu acho que essa visibilidade do mandato, essa atuação disruptiva mesmo, essa atuação que vai na estrutura, eu acho que isso é um sintoma.

Quais são os desafios mais significativos que as mulheres negras enfrentam no cenário político atual brasileiro?

O peso da estrutura mesmo para nós. A falta de uma estrutura de onde partem as outras figuras políticas. As outras figuras políticas, elas têm uma, vamos dizer assim, estrutura com grupos ao entorno, grupos de proteção, grupos que dão amparo. As mulheres negras não tem, nós não temos grupos econômicos no nosso entorno, não temos grupos de pessoas influentes no nosso entorno, viemos da base da sociedade. Eu não tenho padrinho Político, eu não tenho parente rico, parente nas estruturas principais dos serviços públicos. Tudo isso faz falta, nos fragiliza, nós estamos em vulnerabilidade. Então, na política o nosso contexto não muda, eu estou em vulnerabilidade. Por exemplo, seria muito simples para alguns simplesmente sair, trocar de cidade e ir para um outro lugar. Eu não tenho como fazer esse tipo de coisa. Eu não tenho quem possa me receber em outro lugar. Eu tenho que ficar na minha casa. Então são situações assim. E também a insegurança que isso nos traz. O constante estado de questionamento. Será que esse lugar é para mim mesmo? Será que eu deveria estar aqui fazendo isso? Será que eu tenho competência mesmo? Se é tão difícil, será que eu não tenho que sair mesmo? Esse tipo de pensamento que é justamente o que eles querem.

Ainda não é o ideal, mas foram eleitos cerca de 27.000 vereadores negros nas últimas eleições. Entretanto, uma coisa muito misteriosa também aconteceu, vou até ler aqui a notícia, “4.400 candidatos a vereador que já tinham se declarado negros na eleição anterior passaram a se declarar brancos para o pleito municipal deste ano”. Como a senhora analisa esse fato?

Quando o movimento negro aprovou as cotas e quando essas cotas se tornaram uma realidade no nosso país como política pública, elas foram aplicadas também dentro dos partidos, com a implementação de cotas raciais e cotas no fundo partidário. Nos anos que se seguiram à aplicação dessas políticas, observamos um aumento significativo no número de fraudes relacionadas à autodeclaração. Assim, ao mesmo tempo em que comemoramos que mais pessoas têm se sentido pertencentes e que temos fortalecido nossa identidade como população negra, é importante lembrar que, antes, muitas pessoas tinham vergonha de se declarar negras e medo de sofrer discriminação por isso. Portanto, a gente celebra que as pessoas estão se declarando negras, mas cabe ressaltar que, junto com as políticas raciais, as políticas afirmativas, reservas de vagas etc., também surgiram as fraudes. Infelizmente, muitas pessoas fraudaram suas identificações para obter benefícios e acesso a oportunidades. Para a população negra, isso representa um duplo prejuízo: uma política que deveria sanar um problema social acaba sendo usurpada e fraudada. No caso das cotas nas universidades, percebemos que quem mais cometeu fraudes foram as universidades nos chamamentos para professores. Portanto, entendemos que muitas pessoas passaram a se declarar negras, enquanto outras o fizeram por interesse. Nessas eleições, percebemos que é fundamental pautar a necessidade de bancas de hétero-identificação, e o partido terá que implementar isso para evitar o vexame de receber uma denúncia no tribunal eleitoral. Vamos precisar de bancas de hétero-identificação.

A resistência histórica contra o racismo é o que garantiu as conquistas do movimento negro no Brasil. A senhora pode comentar quais as principais barreiras que a gente ainda encontra para a aplicação efetiva das leis contra a violência política de gênero e raça no Brasil?

O desafio legislativo e de regulamentação é, ao meu ver. Temos um vazio de políticas públicas. Pensar que, apenas em 2003, aprovamos uma lei que garante o ensino de história afro-brasileira e africana em todos os currículos, porque não havia. Até 2003 éramos um país que não reconhecia que era parte significativa, central da sua história. Isso não era ensinado nas escolas, eu não tive história africana e afro-brasileira. Então só em 2003 essa Legislação foi aprovada e sancionada pelo presidente Lula. O que precisamos fazer? Olhar justamente para esse campo. Quando falamos, por exemplo, da violência política de gênero e aqui a gente está falando da violência política de gênero e raça, a legislação não tem esse componente. Eu, inclusive, propus na Câmara que a lei de violência política de gênero fosse ampliada para incluir a violência política de gênero e raça, enfrentando o desafio de definir o que isso realmente significa. E quem irá definir isso? Quais protocolos de proteção precisamos construir? Essa definição deve partir da experiência de uma pessoa negra. Quem poderá dizer, por exemplo, que, como uma parlamentar negra, na primeira vez que entrei na minha cidade, precisei de segurança dentro da Câmara de Vereadores e não tive? Quem vai articular isso? Para mim, o desafio é incorporar esse conhecimento em todas as áreas da sociedade, aproveitando a experiência e a sabedoria que o movimento negro acumulou ao longo da história deste país em termos de políticas públicas.

Porque a população negra desde que chegou aqui, chegou aqui para produzir tecnologia e solução. Já veio para isso, não é? Escravizada para trabalhar, para dar todo o seu conhecimento, e no entanto, a gente continua a fazer isso. Quem ofereceu para o Brasil a política de cotas foi o movimento negro, e que bom que tivemos um momento político favorável para aprovar. Quem ofereceu história afro-brasileira e africana para o Brasil foi o movimento negro e que bom que tivemos articulação política para aprovar. Então, esse é o desafio. Garantir ocupação de espaços, visibilidade, uma escuta ativa. Uma das coisas que eu percebo é que quando a vamos tratar de racismo, de raça, cai naquele valão de ai, é mimimi, vão reclamar de novo, já tem um monte de política. Mas a questão racial é muito, muito complexa, e ela vai cada vez mais se complexificando quando nos negamos a entender que temos que passar por esse processo de letramento racial das pessoas negras e não negras. Negros e não negros no Brasil tem que ter cada dia mais conhecimento do que é conviver nessa diversidade. Sabemos que pessoas brancas reproduzem racismo o tempo todo e pessoas negras também. A gente vê pessoas negras que têm a coragem de dizer “cota para mim não serve, eu quero vencer por mérito”, esse é o país em que vivemos. Enquanto não tivermos educação para as relações étnico-raciais, e eu sei que posso parecer repetitiva nesse ponto, sou uma defensora, apoiadora, relatora, aprovei quando vereadora, e agora, nacionalmente, contínuo nesse tema, das cotas nos serviços públicos, das cotas raciais nos serviços públicos, e estamos aprimorando para que não seja só nos mais baixos cargos e nos mais baixos salários, para que seja em todos os serviços públicos. Por exemplo, se as cotas nas universidades não tivessem sido as mais fraudadas, quantos professores negros a gente poderia ter e o quanto a gente poderia ter ampliado no sentido do letramento, da branquitude crítica, da educação para as relações étnico-raciais. Olha o que a presença dos professores negros fizeram na escola pública! Se hoje temos um povo que já tem pertencimento, orgulho, isso é resultado de muito trabalho, não só de professores negros, mas também não negros, aliados, pessoas com posicionamento antirracista, que só é possível ter com conhecimento, com formação. Então, para mim, essa é a nossa grande virada de chave, eu acredito muito na educação.

A senhora espera que esse projeto esteja concluído e que ele vire lei ainda esse ano?

É possível, e é uma prioridade do governo Lula. Temos o desejo de aprovar essa política ainda em novembro, especialmente porque este ano teremos o primeiro 20 de novembro como feriado nacional. Nosso objetivo é ter essa política aprovada a tempo para que possamos fazer uma grande comemoração e festa. Além disso, estamos em um governo que está reestruturando tudo, reconstruindo todas as políticas públicas que foram destruídas no período anterior. Teremos muitos concursos, e a lei de cotas para os serviços públicos está vigente, pois foi renovada. No entanto, como dizemos, ela precisa ser aprimorada. Nesse aprimoramento, devemos ampliar o percentual de 20% para 30% e incluir as populações indígenas e quilombolas. Também é crucial refinar e detalhar melhor a regulamentação sobre as bancas de heteroidentificação para que possamos minimizar as fraudes. Esses aprimoramentos são urgentes e precisam ser implementados nos próximos concursos. Já conseguimos um requerimento de regime de urgência com mais de 300 assinaturas necessárias para levá-lo ao plenário. Portanto, estamos com uma expectativa muito positiva.

O que a senhora espera para o futuro, o que gostaria de ver no próximo ciclo eleitoral em termos de candidatura e representatividade feminina e negra? 

Eu espero que as mulheres ocupem todos os espaços de poder. Eu sou uma mulher feminista negra, eu sou uma feminista negra. Minha defesa é que a gente tenha cota no parlamento, como tem no México, o México tem 50% de mulheres no parlamento. Esse é o meu desejo. A solução do nosso país passa muito pela mão das mulheres, pela mão das mulheres negras, eu acredito muito nisso. Acredito no potencial que temos para construir esse período próximo, vamos chamar assim, do nosso país, em que a gente saia dos índices absurdos de desigualdade de gênero, de raça. Porque quando olhamos para a pobreza, a pobreza é feminina, a pobreza é negra, quando analisamos a violência, as maiores vítimas da violência são mulheres, mulheres negras. Esse é o salto que precisamos dar.