São Paulo e região metropolitana chegaram a ter 1,6 milhão de pessoas sem luz. É evidente que o apagão da Enel vai além de um fenômeno climático isolado: expõe o desmonte provocado pela privatização

Redação Focus Brasil

 São Paulo no escuro: a fatura da privatização e o descaso da Enel
Reprodução Agência PT

São Paulo às escuras já parece história repetida – ou pior, é. Depois de mais um temporal atingir a capital e a região metropolitana na sexta (11), cerca de 1,6 milhões de pessoas ficaram no escuro, num dos maiores apagões da cidade – a situação amplia os impactos e prejuízos da população e do comércio. Sete pessoas morreram em decorrência das chuvas. 

A concessionária responsável pelo serviço é a italiana Enel, que tem demonstrado descaso e escancarando o problema da privatização de serviços públicos. A interrupção do fornecimento não só afetou diretamente a população, como também a falta de preparo e o descaso das autoridades locais, tanto do governador Tarcísio de Freitas quanto do prefeito Ricardo Nunes, que tenta a reeleição,  ambos alinhados ao campo bolsonarista.

O apagão também atinge Cotia (36,9 mil casas), Taboão da Serra (32,7 mil) e São Bernardo do Campo (28,1 mil). A Enel, responsável pela distribuição de energia elétrica na Grande São Paulo, anunciou já ter restabelecido o fornecimento para 1,5 milhão de clientes. Entretanto, a normalização tem sido extremamente lenta, penalizando habitantes e comerciantes. 

Na noite do domingo (13), o presidente da Enel, Guilherme Alencastre, participou de uma reunião com a Aneel e os representantes das empresas responsáveis pelo fornecimento de energia em todo o estado de São Paulo. 

Durante o encontro, Alencastre foi pressionado a fornecer um prazo concreto para o restabelecimento da energia em São Paulo. Para a surpresa dos presentes, sua resposta gerou uma onda de críticas. 

 São Paulo no escuro: a fatura da privatização e o descaso da Enel

“Temos um plano de contingência que foi acionado. Embora o evento climático tenha ultrapassado as previsões, isso nos servirá como aprendizado para evoluirmos e aprimorarmos nossas futuras previsões”, afirmou o presidente da Enel.

A Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) afirmou que Enel será intimada pela demora no restabelecimento da energia. Até o momento, ainda não há previsão de aplicação de punições à empresa. 

Após reunião com concessionárias de energia, representantes da Aneel e da Arsesp (Agência Reguladora de Serviços Públicos de São Paulo) avaliaram que a resposta da Enel ao apagão na região metropolitana de São Paulo ficou aquém do esperado.  

Em fevereiro, a Aneel multou a concessionária em R$ 165 milhões pelo apagão que atingiu São Paulo em novembro de 2023; a concessionária entrou na Justiça e a punição está suspensa.

A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) cobrou que a Enel cumpra todas as cláusulas do contrato de concessão, após o apagão de sexta-feira que deixou 2,1 milhões de clientes sem energia. A entidade pede uma resposta “consistente e definitiva” ao problema. 

Gleisi Hoffmann, presidenta do PT e deputada federal (PT-PR), também se manifestou nas redes, apontando os culpados – “quem vendeu (e vendeu mal) nossas empresas de energia foi a turma deles, dos tucanos, de Temer, Bolsonaro e Guedes” – e exigindo providências. Ela lembrou que “privatizar serviço público de energia e água não deu certo em nenhum lugar do mundo. É a população que paga a conta”.

O deputado federal Alencar Santana (PT-SP), protocolou, na segunda-feira (14), dois requerimentos que colocam a Câmara no monitoramento das investigações que apuram a responsabilidade da Enel (empresa de distribuição de energia de São Paulo) no apagão que afetou milhões de estabelecimento na capital e cidades próximas, desde a última sexta-feira (11).

O petista pede a instalação de uma Comissão Externa da Câmara para acompanhar o caso, in loco, e a instalação de uma subcomissão especial sobre o mesmo assunto, no âmbito da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle.

Privatização

A Enel iniciou sua atuação em São Paulo após a privatização da Eletropaulo, em 2018. Desde essa época, a empresa acumula reclamações dos consumidores, baixa qualidade no atendimento, altas tarifas e pouco investimento em melhorias na prestação do serviço. O lucro da Enel, que em 2019 era de R$ 777 milhões, saltou para R$ 1,5 bilhão no final de 2022.

Força-tarefa federal

Na segunda-feira (14), o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, anunciou que concessionárias de energia de todo o país participarão de uma força-tarefa para apoiar a Enel no restabelecimento da eletricidade para mais de 500 mil imóveis na capital e na Grande São Paulo que seguem sem luz.  

Silveira também criticou a atuação da Enel diante da crise. “Ela cometeu um grave erro de comunicação, de seu compromisso contratual com a sociedade de São Paulo, de não dar uma previsão objetiva. Eu disse que ela tem os próximos três dias para resolver os problemas de maior volume”, afirmou o ministro.  

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O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, anunciou que concessionárias de energia de todo o país participarão de uma força-tarefa para dar suporte a Enel Foto: Planalto

O ministro mencionou ainda que um decreto recente referente à distribuição de energia inclui a possibilidade de penalizar distribuidoras que falhem em apresentar planejamento adequado ou previsões diante de eventos climáticos extremos.  

Silveira também direcionou críticas ao prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, acusando-o de espalhar informações falsas. “Nos indigna muito quando as pessoas, irresponsavelmente, usam das suas redes sociais para fazer fake news. O prefeito de São Paulo aprendeu rápido com o seu concorrente Pablo Marçal (…) quando fez fake news dizendo que nós estávamos tratando da renovação da distribuição da Enel.” 

Até o fechamento desta edição, São Paulo completou o 4º dia com cerca de 250 mil imóveis sem luz, mesmo com o prazo de três dias de restabelecimento dado pelo governo federal. 

Auditoria da CGU

Por determinação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Controladoria Geral da União (CGU) vai realizar uma auditoria para apurar responsabilidades pelo apagão de energia elétrica que atingiu a região metropolitana de São Paulo, deixando milhares de imóveis sem luz.

 Até a atualização mais recente da Enel, cerca de 400 mil unidades consumidoras ainda seguem sem luz desde a sexta-feira (12). “Alguma falha houve. Em que extensão essa falha é da fiscalização da Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica], em que se extensão essa falha é da fiscalização da própria agência do estado de São Paulo ou, em que extensão pode ter havido algum tipo de mecanismo de manipulação da própria empresa para que as falhas que ela eventualmente fazia não fossem detectadas, tudo isso a nossa investigação vai determinar e dimensionar”, explicou o ministro da CGU, Vinícius de Carvalho, em coletiva de imprensa no Palácio do Planalto.

Ressarcimento

O titular da Secretaria Nacional de Direito do Consumidor (Senacon), Wadih Damous, anunciou também que o governo federal vai cobrar da Enel o ressarcimento de prejuízos causados pelo apagão nos últimos dias na cidade. Desde o ano passado, quando um outro apagão em São Paulo deixou milhares de casas sem luz, a pasta aplicou multa de R$ 13 milhões contra a Enel, que recorreu da condenação.

“A orientação que nós damos aos consumidores, por exemplo, que tiveram eletrodomésticos danificados por conta do apagão, é que guardem a nota fiscal. Pessoas que tiveram remédios estragados, que guardam remédios na geladeira. Tudo deve ser relacionado e requerido à empresa”, destacou Damous.

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Apagão em SP: Governo Lula abre investigação contra Enel e cobra respostas de Nunes Foto: reprodução/TV Bandeirantes

Descaso contínuo e falhas recorrentes

Moradores da Zona Sul de São Paulo realizaram um protesto contra o apagão e interditaram o tráfego na altura do número 4.600 da Estrada do Campo Limpo. O local ficou por 72h no escuro – não pela primeira vez: também foram atingidos no apagão de 2023. A PM foi acionada para dispersar a manifestação, que concordou em liberar uma via. O caso ilustra o quanto o problema se arrasta.

Após o apagão de 3 de novembro de 2023, a Enel se comprometeu com um plano que previa a mobilização de 2.500 agentes para responder a eventos climáticos extremos. No entanto, até o fim da tarde deste domingo (13), apenas 1.700 funcionários estavam atuando em campo, abaixo do contingente prometido.

O apagão que afeta São Paulo não é um caso isolado, mas resultado de uma sequência de falhas recorrentes. Em 2023, a Enel manteve sua política de cortes de custos e redução de investimentos, enquanto aumentava o pagamento de dividendos a acionistas, incluindo estrangeiros. 

A empresa, que contava com 27 mil funcionários em 2020, reduziu seu quadro para cerca de 15 mil em 2023, o que comprometeu sua capacidade de resposta em situações emergenciais, como a atual.  

A gestão do prefeito Ricardo Nunes também está sendo alvo de críticas. Moradores cobram melhorias na poda e manejo de árvores, apontados como fatores que agravam a queda de cabos de energia em chuvas intensas. 

O candidato à prefeitura, Guilherme Boulos, protocolou uma representação no Ministério Público contra a Enel e a administração municipal, acusando ambas de negligência.  

É evidente que o apagão de São Paulo vai além de um fenômeno climático isolado. Ele expõe o desmonte de uma estrutura que, com a privatização, perdeu o foco em investimentos de longo prazo e na qualidade do serviço prestado. 

A interrupção do fornecimento não só afetou diretamente a população, como também escancarou a falta de preparo e o descaso das autoridades locais, tanto do governador Tarcísio de Freitas quanto do prefeito Ricardo Nunes, ambos bolsonaristas convictos, em lidar com as crises climáticas que a cada ano se tornam mais previsíveis e severas.

A Enel representa um modelo que prioriza o lucro imediato sobre a segurança e o bem-estar da população. O fracasso dessa estratégia é sentido nas ruas escuras de São Paulo e no desespero de milhares de famílias que seguem sem eletricidade e sem previsão de quando a normalidade será restabelecida.