‘A definição de nossas prioridades deve ser tirada de forma coletiva’, diz Gulnar Azevedo, reitora da UERJ
Em entrevista à Focus Brasil, a professora Gulnar Azevedo fala sobre episódio de ocupação, negociações e detalha orçamento de bolsas da UERJ
“Esse é o primeiro dia que eu estou sentada aqui na minha cadeira da reitoria depois da desocupação”, começou a professora Gulnar Azevedo, antes mesmo que se iniciassem as apresentações.
A reitoria da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a Uerj, fica situada em um prédio vertical de 12 andares no seu maior campus, que foi ocupado por manifestantes no dia 26 de julho.
Os ocupantes foram retirados no dia 20 de setembro, cerca de 60 dias após o início dos atos de protesto. Como a reitora Gulnar nesta entrevista, antes disto, ao avaliar junto aos diretores de unidades acadêmicas a situação de insegurança e de prejuízo em que a Uerj se encontrava, a reitoria pediu que as pessoas que ainda permaneciam no prédio o desocupassem em 48 horas, o que não aconteceu.
“No dia em que foi feito o pedido de reintegração de posse, tivemos uma reunião com vários servidores técnicos administrativos e docentes, que contou com observadores da Associação Brasileira de Juristas da Democracia para acompanhar. E eu falei: ‘eu queria ouvir vocês. A gente vai ter que pedir a reintegração de posse, porque a situação está passando de todos os limites aceitáveis e o prejuízo já é enorme’. Todos concordaram e nós pedimos”, relata Gulnar.
A remoção contou com uso de força policial, com o Batalhão de Choque da Polícia Militar, mexendo com a opinião popular, até mesmo de alunos e professores da instituição.
Nesta entrevista, a reitora Gulnar Azevedo chama atenção para o que motivou todo o alvoroço causado em torno do que foi chamado de “Aeda da Fome”, foi o reajuste em bolsas e auxílios emergenciais que foram concedidos no período da Pandemia de Covid-19, na condição de existência de disponibilidade financeira e publicado no contexto de calamidade pública.
Os ajustes contidos neste Aeda (Ato Executivo de Decisão Administrativa), segundo a reitora, as dificuldades de arcar com todos os gastos da universidade, dado que o governo estadual já havia solicitado um reajuste nos repasses a todos os órgãos por conta da previsão de baixa de arrecadação e do regime de recuperação fiscal.
Leia trechos da entrevista:
Quando a ocupação se encerrou, como foi que vocês encontraram os prédios? Como foi esse momento de reencontro com a estrutura de trabalho e qual o maior desafio posto agora para retomada do trabalho?
Então, na sexta-feira (27/9) está fazendo uma semana que o prédio foi de fato desocupado, este prédio aqui do Maracanã, que é o maior prédio da Uerj. Para se ter uma ideia, dos 30 mil alunos da Uerj, mais de 20 mil estão aqui nesse prédio. Nós ficamos fora dele quase dois meses. Ficamos instalados numa sala bem provisória, num prédio aqui do lado, desde o dia 26 de julho, quando todas as salas da reitoria, da vice-reitoria e das cinco pró-reitorias foram ocupadas, inclusive quebrando uma parede. Duas semanas depois, houve uma nova invasão e foram fechadas todas as entradas da Uerj, inclusive as saídas de segurança e entradas de emergência. Tudo ficou fechado. Quando foi retomado na sexta-feira (20/09), viemos aqui ver e estava realmente inabitável. Tudo jogado de qualquer jeito, papéis espalhados. Eu não sei se eu vou conseguir encontrar tudo. Laptops sumiram, tablets sumiram, alguns HDs foram retirados e está sendo apurado. Estou tentando achar o meu computador ainda. A gente não conseguiu entender, jogaram todos os computadores numa sala só, tudo muito vasculhado. Foi uma ocupação realmente violenta e estamos apurando o que foi suprimido. Hoje (27/09), foi a primeira reunião do Conselho Universitário depois da desocupação e o clima já estava bem mais tranquilo, com bem menos gente na audiência e não havia instrumentos de percussão, o que vinha acontecendo no período da ocupação.
Em alguns relatos e entrevistas, a senhora diz que houve tentativa de diálogo. Como foram essas tentativas, elas passaram pelo Centro Acadêmico, pelo DCE? O que é que deu errado?
Vocês entenderam o porquê da reação? A reação se deu porque ajustamos os critérios das bolsas e auxílios assistenciais concedidos aos estudantes não-cotistas que foram dados de forma emergencial.
A Uerj é pioneira no sistema de cotas e de bolsas inclusivas. Como funciona a política de bolsas atual da universidade?
A Uerj foi pioneira no sistema de cotas. Foi a primeira, em 2003. Começou com o sistema de reserva de vagas para negros e provenientes de escola pública. No início mais de 40% das vagas foram preenchidas por cotistas e, com isso, se percebeu que muitos desses alunos chegavam numa condição muito carente – e para poder permanecer, foram instituídas condições para apoiá-los. Uerj foi pioneira nisso também concedendo aos cotistas uma bolsa assistencial.
Quando assumimos a reitoria em janeiro deste ano,a Uerj concedia quase 9000 bolsas para os cotistas e cerca de 2500 bolsas para estudantes não-cotistas que comprovavam vulnerabilidade social. Além destas, para estudantes cotistas e não-cotistas em vulnerabilidade social, também são dados auxílios alimentação e transporte. E ainda o auxílio creche, dado para estudante, pai ou a mãe independente da renda familiar. O critério até então assumido para avaliar a vulnerabilidade social é a comprovação de renda familiar igual a um salário-mínimo e meio per capita.
Há quem diga que o estopim teria sido o corte de bolsas e a chamada “Aeda da Fome” (Ato Executivo de Decisão Administrativa), porque você teria “falta de empatia” e teria “tirado dos pobres” a bolsa emergencial da pandemia. Pode nos elucidar essa questão?
Nós mantivemos todas as bolsas dos estudantes que entravam no vestibular pela ampla concorrência até julho, mas devido à falta de recursos, foi necessário fazer este ajuste. Então, o que é que nós fizemos? Deixamos na vulnerabilidade social os mais pobres, aqueles que recebem até meio salário-mínimo per capita. O ajuste feito em julho não mudou o critério para os cotistas, o um ajuste foi feito apenas para os não cotistas e mantivemos aqueles com até meio salário-mínimo per capita. Não mexemos na bolsa de cotista, que por lei têm direito a reserva de vagas no ingresso à universidade: pessoas carentes pretas e pardas, vindas de escola pública, quilombolas, indígenas ou filho de policial. A lei estadual não define o critério de carência socioeconômica, ficando a cargo da universidade estabelecer.
E isso tudo foi colocado nas negociações?
Desde maio deste ano, vem sendo apresentada a situação orçamentária e as dificuldades em vários fóruns e conselhos superiores da Uerj, assim como em várias reuniões com grupos de estudantes. Conversamos sobre as dificuldades de manter todos as bolsas e auxílios e a gente foi trabalhando como poderia ser feito um ajuste de forma a ter garantia para chegar ao final do ano.
No dia seguinte que o AEDA foi publicado, houve uma grande manifestação e os estudantes entraram na reitoria e não aceitaram dialogar com os pró-reitores presentes. Eles não quiseram conversar.
Quando a senhora diz “eles”, quem são exatamente? Com quem se conversava? Representavam todos os estudantes?
Na segunda-feira, logo após a primeira ocupação, nós chamamos um fórum de diretores das unidades acadêmicas e explicamos a situação e na terça convocamos uma reunião com as pessoas que estavam ocupando a reitoria. Não havia uma representação formal da parte deles. A partir daí, constituímos uma comissão de negociação composta pela reitoria e diretores de centros setoriais e foram realizadas oito reuniões com a presença do DCE, CAs e ocupantes, nas quais não foi possível chegar a um acordo.
E por que “Aeda da Fome”?
Devido a proposta que fizemos de que nos campi com restaurante universitário, a gente daria tarifa zero no bandejão para estudantes cotistas e para os estudantes que permaneceram ganhando a bolsa de vulnerabilidade social e para aqueles nos demais campi (sem bandejão) ficaria mantido o auxílio alimentação no valor de R$300.
Há outras bolsas e auxílios?
Além das bolsas de permanência, existem os auxílios alimentação, transporte que são concedidos aos estudantes cotistas e aos que recebem as bolsas de vulnerabilidade social. Há ainda o auxílio creche/primeira infância, no valor de R$900 por filho até 6 anos de idade que é destinado independentemente do nível socioeconômico.
Qual o retorno acadêmico desse investimento?
Para quem recebe essa bolsa, a bolsa de permanência, cotistas e não cotistas, o retorno acadêmico antes do ajuste que fizemos era estar inscrito em uma disciplina apenas e ter frequência de 75% nela. Com o ajuste que fizemos, ficou exigido estar matriculado e com frequência em no mínimo três disciplinas.
Episódios como o da ocupação só fragilizam uma Uerj que já é alvo de ataques e especulação da iniciativa privada e da extrema direita. Como é que você consegue administrar a distribuição de recursos e toda a situação das bolsas e auxílios e despesas administrativas e da instituição?
Para manter todas estas bolsas, nosso gasto mensal é muito alto. Em 2023, o estado do RJ estava em uma situação financeira melhor e houve uma suplementação orçamentária para Uerj acima de R$300 milhões. Com a previsão do governo de baixa de arrecadação, nos foi solicitado rever nossos gastos dada a impossibilidade de realizar suplementação. Mostramos a importância da Uerj para o estado e a necessidade de garantir todas as nossas despesas para manter nossas ações finalísticas. Até julho, não tivemos suplementação, conseguimos antecipação do orçamento aprovado na Alerj, que já era abaixo das nossas necessidades. Tivemos várias reuniões com o executivo do governo do RJ e conseguimos uma suplementação de R$150 milhões, que ainda fica abaixo do que precisamos, mas nos dá uma perspectiva melhor para arcar com todas as despesas que não são só em função das bolsas e auxílios estudantis.
Foi quando começou a crise. Como foi a negociação neste momento?
Inicialmente houve ocupação na reitoria que fica no campus Maracanã e nos campi de São Gonçalo e Duque de Caxias. Duas semanas depois, houve uma nova manifestação e vieram muitas pessoas e ocuparam todo o prédio principal com obstrução de todas as portas de entrada, inclusive as de emergência. Houve ainda a ocupação de dois andares da Faculdade de Enfermagem. Convocamos o DCE, os CAs para participarem de reuniões abertas aos ocupantes com a equipe de negociação composta pela reitoria e diretores de centros setoriais.
Não houve nenhum acordo? Como ficou o chamado “Aeda da Fome”?
Foram oito reuniões. Fizemos uma proposta de transição para os que perderam a bolsa vulnerabilidade social. Revogamos o AEDA 38 e publicamos outros dois AEDAS garantindo uma bolsa de R$500 para aqueles que perderiam a bolsa (os não cotistas com renda per capita entre 0,5 e 1,5 salário-mínimo). Ainda no mês de setembro esta bolsa foi depositada nas contas. Por isso, a razão do “Aeda da Fome” já não teria mais sentido, mesmo assim, não houve a desocupação e houve um agravamento da situação. O Ministério Público notificou a reitoria sobre o fechamento das portas de emergência do prédio principal. Houve queima de pneus na rua, invadiram um prédio menor no campus Maracanã onde há laboratórios com elementos radioativos e substâncias inflamáveis, e os estudantes foram notificados que seria necessário cumprir o protocolo de segurança, que era chamar o exército. Com isto houve, na mesma noite, a desocupação deste prédio. Muitos estudantes queriam ter aula, mas professores eram impedidos de dar aula, muitos não conseguiam entrar. Os ocupantes fizeram aula pública, atividades culturais e de lazer.
Você é, antes de reitora, uma professora. Estou certo de que já viveu a situação, tanto dos professores, quanto dos alunos, do movimento estudantil. É preciso lutar contra essa imagem que fica, de depredação e fragilidade da instituição, além de reconstruir o cotidiano, para além dos portões da universidade, que segue sob ataque. A Uerj corre risco de privatização, certo?
A ameaça de privatização sempre nos preocupou. Houve inclusive um projeto de lei para extinção da Uerj que teve como autor principal o deputado estadual Anderson Moraes (PL), então presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa do Rio, a Alerj.
Como se deu o pedido de reintegração de posse da reitoria e dos demais prédios ocupados?
Não foi possível chegar a um acordo mesmo após a proposta de transição que fizemos. Os manifestantes continuaram ocupando e pedimos por segurança das pessoas, do patrimônio e pelo enorme prejuízo causado com a suspensão de aulas e adiamento de muitas atividades acadêmicas e científicas que as pessoas desocupassem. Demos um prazo para que saíssem, chamamos uma reunião com todos os diretores de unidade e convidamos como observadores representantes da Associação Brasileira de Juristas da Democracia. E chegamos a conclusão de que não havia outra saída que não pedir a reintegração de posse. Houve apoio da comunidade para esta decisão e pedimos a reintegração de posse. A juíza deu 24 horas para sair, depois da notificação. Os oficiais de justiça deram 24 horas para que os ocupantes deixassem o prédio. Quando o prazo terminou, a equipe da reitoria e os seguranças patrimoniais fomos verificar a situação e foram recebidos com jato de água, paus e pedras. Não teve jeito, e foi necessário autorizar a entrada da força policial. Algumas pessoas saíram durante a noite e outras no momento em que a tropa de choque chegou. Poucos ficaram, dois estudantes, um jornalista e um parlamentar que estava como testemunha. Estes foram detidos e liberados no mesmo dia.
Quem acionou as forças de segurança para entrar no prédio e remover os ocupantes?
Nós pedimos reintegração de posse. Havia três alternativas no pedido e a justiça optou pela tropa de choque.
E agora?
Agora a gente vai ter que reconstruir tudo isso, porque ficou a imagem de que chamamos a polícia.Tudo que não gostaríamos de presenciar. Temos que trabalhar muito na implementação da política de assistência estudantil, que não é só bolsa, mas sim um grande investimento em condições que melhorem a permanência dos estudantes e que viabilize caminhos para que possam ingressar no mercado de trabalho e assegurar um futuro melhor para eles e para suas famílias.
Que mensagem você passaria nesse momento para os alunos da Uerj?
A mensagem que passamos na reunião do Conselho Universitário hoje é de que temos que reestabelecer o diálogo com os estudantes, técnicos administrativos e docentes. Estamos abertos, como sempre estivemos. Continuaremos recebendo todos as entidades e estudantes que querem falar com a gente. É preciso reconstruir novamente esse caminho de diálogo e entender o que aconteceu. O diálogo não pode ser feito com os estudantes mascarados, que não dizem o nome.
É importante a gente mostrar para as pessoas que não conhecem, que entendem a universidade só como local de estudo, falar da importância da presença e da existência da Uerj na cidade e no estado do Rio de Janeiro. Então, gostaria que você destacasse a importância da instituição para a sociedade Fluminense.
A Uerj vai fazer 75 anos. São 35 unidades acadêmicas em todas as áreas, 12 campi no estado do Rio de Janeiro, sendo que entre esses, um campus em São Gonçalo e um campus em Duque de Caxias, que são escolas de formação de professores. O trabalho feito lá na área de educação é maravilhoso, forma professores para a educação básica e fundamental. Além disso, temos outros campi em Resende, Friburgo, nas áreas tecnológicas. Temos um campus na Ilha Grande que trabalha a questão ambiental. A UEZO foi incorporada à Uerj. O campus mais novo foi criado em Cabo Frio com estudantes já cursando Medicina, Geografia e Ciências Ambientais. Tem um hospital universitário e uma policlínica integrada ao SUS, que funcionam atendendo toda a demanda de alta complexidade e especialidades do estado do Rio de Janeiro. A Uerj tem um enorme potencial em todas as áreas do conhecimento, além de formar bons profissionais, tem uma responsabilidade muito grande para ajudar no desenvolvimento do Estado. E é isso que estamos mostrando ao governo e à toda a sociedade fluminense.
O que você destacaria de ações planejadas aí para o seu mandato de agora em diante?
A gente quer implementar áreas que são necessárias para garantir o desenvolvimento e crescimento do estado. Queremos fazer parcerias com outras universidades e instituições de ensino e pesquisa. Temos que investir em um plano de desenvolvimento institucional amplamente discutido. Queremos garantir a participação de todos os fóruns internos e instâncias representativas para assegurar o processo democrático e participativo. A definição de nossas prioridades deve ser tirada de forma coletiva e com respeito mútuo.