Em tempos de retrocessos históricos e da ascensão de um neofascismo global que ameaça conquistas sociais e democráticas arduamente construídas, refletir sobre o legado de Paulo Freire é não apenas um exercício de memória, mas uma ação de resistência e reavivamento político. 

Teresa Ribeiro e Alexandre Trindade

Em tempos de retrocessos históricos e da ascensão de um neofascismo global
que ameaça conquistas sociais e democráticas arduamente construídas, refletir
sobre o legado de Paulo Freire é não apenas um exercício de memória, mas
uma ação de resistência e reavivamento político.
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Em tempos de retrocessos históricos e da ascensão de um neofascismo global que ameaça conquistas sociais e democráticas arduamente construídas, refletir sobre o legado de Paulo Freire é não apenas um exercício de memória, mas uma ação de resistência e reavivamento político. Celebrar os 103 anos de Freire significa reafirmar o compromisso com a transformação radical da sociedade, utilizando sua obra como farol para trilhar caminhos que, mesmo sob a escuridão da barbárie, apontam para a emancipação dos oprimidos.

Freire nos legou um conceito de utopia insurgente, enraizado no seu “inédito viável”, que nos impele a desafiar as estruturas de opressão e a construir, na práxis, as bases de um futuro alternativo. Não se trata de um idealismo ingênuo, mas de uma pedagogia concreta de transformação social, onde a utopia é compreendida como uma força motriz para a ação política consciente e coletiva. É, sobretudo, a afirmação de que outro mundo é, não apenas possível, mas necessário e, que esse mundo deve ser vislumbrado e construído pelas mãos dos que sofrem as maiores consequências da desigualdade e da exclusão.

A utopia freireana, longe de ser uma projeção distante e irrealizável, emerge como uma estratégia prática e revolucionária. O conceito de “inédito viável” nos convida a visualizar o que ainda não foi experimentado, a romper com as amarras das “situações-limite” que bloqueiam a imaginação política dos povos oprimidos. Freire nos ensina que, ao reconhecer essas barreiras, somos também chamados a superá-las, organizando lutas que questionam a ordem estabelecida e abrem espaço para a criação de novas realidades. É uma convocação à luta permanente, onde a educação cumpre o papel fundamental de formar sujeitos políticos capazes de transformar o mundo.

A Utopia Insurgente: Ferramenta para a Transformação Radical e Coletiva

A ideia de utopia insurgente, em sua essência, não deve ser vista como uma visão distante de um ideal inatingível, mas sim como um método de transformação contínua, que se manifesta em práticas concretas de resistência e emancipação. Enraizada na crítica freireana, a utopia insurgente transcende as noções tradicionais de utopia, como mera especulação ou abstração. Ela se posiciona como um poderoso instrumento metodológico, crítico e pragmático, para engajar a sociedade em processos de mudança radical e emancipação.

A utopia insurgente se distingue por sua ancoragem em contextos sociais

concretos, engajando-se diretamente com as realidades dos oprimidos e das classes marginalizadas. Diferentemente de visões utópicas abstratas ou idealizadas, emerge, também, da luta cotidiana, das resistências enraizadas nas condições materiais da exploração e da opressão. O conceito de “educação do desejo”, conforme elaborado por Ernst Bloch — um dos mais influentes filósofos marxistas a aprofundar a ideia de uma utopia concreta — revela que a utopia insurgente é um processo dialógico e coletivo, onde os sujeitos não apenas se permitem imaginar um futuro diferente, mas são mobilizados a construir ativamente esse futuro em suas práticas cotidianas de luta. Não se trata de uma utopia passiva, mas de uma pedagogia insurgente, que envolve o despertar da consciência crítica, ou conscientização, como um movimento incessante de denúncia das condições de opressão. Ao mesmo tempo, ela anuncia novos horizontes de possibilidade, rompendo com as barreiras impostas pelo sistema vigente e oferecendo alternativas que são moldadas pela práxis coletiva. Nesse sentido, a utopia insurgente não só responde às contradições históricas, mas articula um desejo de transformação radical que transforma o sonho em ação e o possível em real.

De acordo com Erik Olin Wright, sociólogo marxista, utopias concretas devem ser vistas como alternativas viáveis, que emergem das contradições e brechas das estruturas dominantes opressoras. Ele sugere que a transformação social não precisa ocorrer de maneira abrupta e totalizante; ao contrário, propõe uma abordagem em que experimentos e práticas insurgentes localizadas podem gradualmente corroer as bases de sistemas opressores; um processo de experimentação e revisão constante — para avaliar e aprimorar as utopias à medida que são postas em prática. Como elaborou Freire, a utopia insurgente é, portanto, dialética: ao mesmo tempo em que denuncia as injustiças estruturais, ela projeta caminhos concretos para a realização de novos modos de vida e organização social. Essa prática exige uma ruptura ontológica no qual o possível e o real estão em constante tensão e movimento.

A diferença essencial entre a utopia insurgente e outras abordagens utópicas reside no papel ativo e revolucionário das massas populares. A insurgência implica não apenas a rejeição do status quo, mas a construção coletiva e de baixo para cima de alternativas sistêmicas que desafiam diretamente as formas hegemônicas de poder. Assim, o poder da utopia insurgente está em sua capacidade de gerar movimentos sociais que não apenas imaginam, mas constroem ativamente novas realidades sociais. A educação, nesse processo, é uma ferramenta indispensável, pois se fundamenta na ideia de que a libertação e a transformação só são possíveis por meio de uma pedagogia crítica e autônoma.

Em um mundo marcado por crises sistêmicas — sejam elas políticas, econômicas, sociais ou ambientais — a utopia insurgente oferece uma bússola para a transformação radical. Ela nos lembra que as alternativas ao capitalismo, ao autoritarismo e às formas opressivas de poder já existem nas práticas de resistência que emergem das margens da sociedade. Seu papel é, portanto, dar visibilidade a essas práticas, conectar-se com elas e, por meio da educação e da ação coletiva, transformá-las em forças políticas capazes de reconfigurar a realidade.

Em última instância, nos convida a romper com o conformismo e a resignação diante das crises atuais. Ao contrário das visões distantes e abstratas de um futuro idealizado, ela nos impele a agir no presente, a transformar as estruturas de opressão a partir da mobilização popular e da educação crítica. Como ferramenta metodológica, a utopia insurgente oferece uma nova gramática de transformação social, na qual o futuro é constantemente construído e reconstruído pelas mãos daqueles que se recusam a aceitar o mundo tal como ele é.

Educação Popular, o MST e a Utopia Insurgente em Ação

Um dos exemplos mais vigorosos e contundentes de como a utopia insurgente freireana se concretiza na prática é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Desde sua fundação, o MST não apenas desafia a estrutura agrária concentrada nas mãos de latifundiários e grandes conglomerados agroindustriais, mas também questiona frontalmente o paradigma educacional hegemônico que, historicamente, tem servido à reprodução das desigualdades e à manutenção de um status quo excludente. O MST, ao adotar uma pedagogia profundamente emancipatória, não se limita à luta pela posse da terra; ele empreende uma batalha mais ampla e complexa pela transformação do imaginário político e social acerca do que significa educação, cidadania e participação democrática no Brasil.

A Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), inaugurada pelo MST em 2005, emerge como um símbolo dessa estratégia insurgente. Muito mais do que um espaço de formação convencional, a ENFF constitui-se como um território de resistência ativa contra a lógica neoliberal que mercantiliza o conhecimento e instrumentaliza a educação. Nesse espaço, o conceito de inédito viável, tal como proposto por Paulo Freire, se traduz em prática viva: educadores e educandos não são meros transmissores e receptores de informações, mas sujeitos históricos que, coletivamente, constroem novos projetos de sociedade a partir de uma educação crítica e dialógica. Na ENFF, a educação é compreendida como um processo político, um ato insurgente de resistência às forças que buscam manter a exploração e a subjugação das massas camponesas.

A ENFF não apenas desafia os modelos tradicionais de ensino que vigoram nas instituições educacionais convencionais — muitas vezes subordinadas aos ditames do capital e comprometidas com a reprodução de hierarquias sociais e econômicas —, mas também propõe uma nova gramática pedagógica. Nessa nova ordem educacional, o saber popular, construído nas lutas cotidianas, dialoga diretamente com o conhecimento técnico-científico, integrando-os de maneira orgânica às demandas e às reivindicações das classes populares. O campo educacional se torna, assim, uma arena de disputa não apenas de ideias, mas de projetos de sociedade.

A pedagogia insurgente da ENFF, inspirada profundamente nas ideias de Paulo Freire, concebe a educação como uma ferramenta essencial para a transformação radical da sociedade. Não se trata de formar tecnocratas ou elites intelectuais distantes das realidades sociais e das necessidades populares; o seu objetivo é formar sujeitos comprometidos com a luta por justiça social, democracia radical e igualdade. Em um cenário global marcado pela crise do neoliberalismo, pela intensificação da exploração capitalista e pela ascensão de regimes autoritários, a educação popular praticada pelo MST — e modelada pelos princípios freireanos — representa uma das formas mais potentes de resistência e de organização coletiva.

Como elaborado por Freire, a experiência educacional insurgente do MST demonstra que a educação, longe de ser uma atividade neutra, é um ato profundamente político. Em tempos de crise civilizatória, em que o capital avança sobre territórios e mentes, questionar a própria estrutura social e propor novos caminhos para a emancipação coletiva torna-se uma urgência histórica. O MST, por meio de sua prática educacional, reafirma o poder transformador da educação popular e lança um desafio às instituições tradicionais como as universidades: elas devem abandonar a complacência com os interesses do mercado e reposicionar-se como espaços de resistência, comprometidos com a transformação social e o engajamento nas lutas populares.

O exemplo do MST e da ENFF sublinha a centralidade da educação popular como um ato de insurgência e resistência em tempos de crise. Ao rejeitar a lógica reprodutora das instituições educacionais tradicionais, a pedagogia freireana proposta pelo MST se erige como uma alternativa poderosa à educação do capital. É uma pedagogia que não apenas sobrevive às adversidades impostas pelo sistema, mas floresce nelas, projetando um futuro em que a educação se coloca a serviço da libertação e da justiça social. A utopia freireana, portanto, não é apenas um sonho distante; como o MST nos evidencia, ela é uma realidade em construção, vivida nas lutas diárias dos trabalhadores rurais e dos militantes populares que resistem às investidas do capital e das estruturas opressoras

Organização Popular nas Cidades: A Luta pelos Direitos das Pessoas em Situação de Rua

Em nítido contraste com o cenário rural, mas imbuído do mesmo espírito freireano de insurgência e organização social, o trabalho de movimentos populares nas ruas de São Paulo oferece um exemplo contundente de como a utopia insurgente de Freire se manifesta no coração das metrópoles. Um exemplo é a atuação de Padre Júlio Lancellotti junto à Pastoral do Povo da Rua, desvelando uma dimensão radical da luta contra a Aporofobia, a criminalização da pobreza e a marginalização sistemática dos que vivem entregues a sua própria sorte. Sua ação transcende a oferta de assistência material básica; ela constitui uma pedagogia de solidariedade, da escuta e do conviver, profundamente ancorada na dignidade humana, erguendo-se como uma crítica aberta às estruturas que perpetuam a exclusão social nas dinâmicas urbanas contemporâneas.

Do período mais difícil enfrentado a partir de 2020 com a pandemia do COVID-19 a situação de quem não tinha uma casa para se proteger agravou-se nas principais capitais, sobretudo em São Paulo. E é nesse ambiente que a relação invisibilidade x visibilidade encontra com a realidade das ruas: o abandono e a luta pela vida.

E porque esta experiência guarda relação com a pedagogia freireana? Enquanto o Padre Lancellotti e seus parceiros buscavam alimento para a população, surge uma nova lógica, na medida em que os invisíveis se tornaram visíveis e os que antes circulavam pela cidade, se recolhem. Apesar da solidariedade ter encontrado um caminho no meio do caos, muitos consideravam as pessoas em situação de rua, ainda mais indesejáveis, atribuindo a estes a presença do vírus nos bairros, fazendo com que o processo aporofóbico se intensificasse.

Assim, vem deste lugar, a necessidade de debater sobre o ódio aos Pobres. É quando surge Adela Cortina, filósofa da Espanha, que cunhou a expressão Aporofobia e Noreen Hertz com o livro Mal do Século, que trata da arquitetura que oprime e hostiliza as pessoas pelo mundo.

E, diante da necessidade das próprias pessoas em situação de vulnerabilidade compreenderem o porquê de tanto ódio e intolerância, Aporofobia/Pobrefobia passam a compor, nesse contexto, a expressão “TIJOLO” que se transforma no tema principal dos encontros diários, com grupos de pessoas em situação rua e convidados.

Tais encontros, ocorreram durante o café da manhã oferecido a população de rua, pela missão de Padre Julio Lancellotti, que passou a realizar círculos dialógicos nas suas andanças e nos espaços de convivência, com o intuito de ouvir a voz das ruas e compreender melhor, os anseios e questionamentos desta população. Estes, por sua vez, passam a relatar como vêem a cidade e qual o entendimento que têm de como a cidade os vê.

O formato circular de diálogo, seja nos espaços da comunidade, na rua, numa mesa de café – como existe até hoje – permitiu que se construísse um hábito, seja do diálogo puro e simples, seja de interesse pela leitura de muitos deles. Tudo isso levou a criação das Casas e Projetos que promovem a emancipação destes sujeitos. São elas: Casa Irmã Dulce (com bazar e Centro de Convivência); Padaria do Povo da Rua (produção de pães para o café da manhã nas ruas e para os aprendizes nos projetos); Casa Santa Marina e Santa Paulina (curso de costura para mulheres CIS e Trans em situação de rua; e na área da estética e cosmetologia); Casa Santa Virginia – cursos profissionalizantes de cuidador de idoso, agente comunitário de saúde, informática, marketing e vendas e zeladoria (alimentação, bazar e biblioteca); Casa São José Bento Labre (extensão dos cursos de cuidador de idoso e agente de saúde). Nesta há uma parceria para busca de emprego e reencontro da população de rua com familiares. Há, também, a ação conjunta com o Sacolão São Pedro de Bettancourt – Parceria com MST: (ações com as entidades e distribuição de alimentos e espaço de dialogia, além de capacitações; Casa Santa Rosa de Lima (espaço de convívio, possui um bazar de roupas e um Laboratório experimental em parceria com a Faculdade de Farmácia da USP para produção de sabonetes e outros produtos para cuidados de saúde da população de rua).

Assim quando da construção da ENFF em que, enquanto se edificava a escola, igualmente constituía-se o pensamento coletivo, a experiencia na rua resultou em diálogos que também constituíram novos saberes como Legislações no âmbito Municipal, Estadual, Federal, bem como, jurisprudências no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que promoveu audiências para tratar de temas relativos à questão da População de Rua.

E, mais recentemente, no campo da produção literária, entre várias publicações que surgiram duas delas: Livro APOROFOBIA – conceito de ódio aos pobres e Livro POMBOS – que estabelece uma relação com a identidade da pessoa em situação de rua e o universo que o cerca, foram desenvolvidas em conjunto com as pessoas em situação de rua. Estes dois livros passarão a compor as salas de Leitura, via Ministério da Educação em todo país.

O elemento formidável nestas duas publicações é que tratam de produções que exemplificam nosso aprendizado mais potente, pedagógico e revolucionário, no que diz respeito ao inédito viável. As duas publicações se propõem a desconstrução do sujeito aporofóbico, contra a intolerância e por uma sociedade mais amorosa e humanizada.

A exemplo da experiência educacional insurgente do MST, as ações e produções ligadas a população em situação de rua, também estão longe de ser uma atividade neutra, mas se constituem e um ato profundamente político. A crise civilizatória, que se abateu em nossa sociedade, aprofundou-se sobremaneira nas relações sociais ao ponto parcela da população agir com violência contra os mais vulneráveis. Como já dito, questionar a própria estrutura social e propor novos caminhos para a emancipação coletiva torna-se uma urgência histórica.

A proposta produzida por meio da educação popular até aqui, junto a população de rua, se revelou uma evolução no que diz respeito as políticas públicas institucionais e lança um desafio às instituições públicas, bem como, aos interesses do mercado. Assim, esta nova pedagogia neste território constituído nas ruas, emerge enquanto alternativa e espaços de resistência, comprometidos, igualmente, com a transformação social e o engajamento nas lutas populares.

Finalmente, a pedagogia emancipatória em Freire nunca foi tão necessária e nunca esteve tão viva. E nesse contexto, sempre é bom lembrar suas palavras: “É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática”. Paulo Freire vive!

Teresa Ribeiro – Presidente do Instituto Popular Paulo Freire

Alexandre Trindade – Doutor em Educação – Cambridge University

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