Arthur Chioro: ‘Objetivo da Ebserh é retomar o projeto de inserção dos hospitais universitários federais’
Arthur Chioro é um renomado especialista em saúde pública, com uma carreira marcada por seu significativo impacto na gestão de sistemas de saúde no Brasil. Ex-ministro da Saúde da presidenta Dilma Rousseff, Chioro tem um profundo entendimento das políticas de saúde e das dinâmicas do Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente, ele ocupa um papel fundamental na presidência da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), onde sua visão estratégica busca alinhar a rede de hospitais universitários com as necessidades do SUS.
Sob sua gestão a Ebserh tem se consolidado como um pilar essencial para a formação de recursos humanos, pesquisa e inovação médica, além de desempenhar um papel crucial na ampliação e eficiência da assistência hospitalar. Desde sua posse, a Ebserh não apenas fortaleceu seus laços com o Ministério da Educação e o SUS, mas também expandiu seus serviçõs, planejando aumentar seu alcance para 60 hospitais universitários, posicionando-a como a maior empresa pública hospitalar do Hemisfério Sul.
Chioro continua a demonstrar seu compromisso com a saúde pública, promovendo melhorias significativas através da colaboração e utilização de tecnologias avançadas na assistência à saúde. “Meu primeiro gesto ao assumir a presidência da EBSERH foi colocar a bandeira do SUS aqui dentro e demarcar o SUS em todos os nossos materiais de divulgação”, declarou em entrevista à Focus Brasil.
Ademar Arthur Chioro dos Reis possui uma extensa carreira acadêmica. Foi secretário municipal de saúde de São Vicente-SP (1993-1996) e de São Bernardo do Campo-SP (2009-2014). Presidiu o Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo (Cosems-SP) por três mandatos. Foi Diretor do Departamento de Atenção Especializada do Ministério da Saúde (2003-2005) e Ministro de Estado da Saúde (2014-2015). Desde março de 2023 é presidente da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), vinculada ao Ministério da Educação.
Nossa primeira pergunta é sobre as suas funções na Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, como está esse trabalho?
Em março do ano passado, a convite do ministro Camilo Santana, a quem a EBSERH, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, é vinculada, assumi a presidência da diretoria executiva dessa estatal, que já está entre as cinco maiores do país. É um grande desafio. Assumimos com 41 hospitais universitários, e hoje já são 45, com uma perspectiva de crescimento muito importante. Desde o golpe de 2016, houve praticamente uma paralisação de todo o processo de implementação desta empresa, que é uma das estatais mais jovens. Ela foi criada em 2011 e efetivamente implementada a partir de 2013, com três anos e meio de funcionamento. Depois, em 2016, entrou em um período de retração e enquadramento. As regras estabelecidas do ponto de vista econômico e social sofreram barbaramente os efeitos da Emenda Constitucional 95, a Emenda do Teto, com restrições orçamentárias muito severas. O Ministério da Saúde, durante a gestão de Luiz Henrique Mandetta e Jair Bolsonaro, cortou 100% dos repasses feitos desde a época em que o ministro Fernando Haddad estava no Ministério da Educação e José Gomes Temporão, no Ministério da Saúde, ou seja, no segundo governo do presidente Lula, para financiar os hospitais universitários. E, portanto, os hospitais universitários se encontraram em um quadro de grande complexidade, a tal ponto que, durante a pandemia de COVID-19, esses hospitais federais, que deveriam ter sido a vanguarda na resposta brasileira ao vírus, acabaram entrando tardiamente. Eles tiveram um papel importante, mas relutaram devido à orientação política que surgiu no governo Bolsonaro. Minha vinda para cá como ex-ministro da Saúde, militante do SUS e também vinculado à universidade, já que sou professor da Escola Paulista de Medicina da Unifesp, em São Paulo, teve relação com esse contexto. O objetivo é retomar o projeto de inserção dos hospitais universitários federais, uma rede grande, potente e indispensável para o SUS, para que ela pudesse não apenas atuar em ensino, pesquisa e inovação, mas também contribuir decisivamente para abordar os grandes problemas de saúde da população brasileira, especialmente no que se refere ao maior gargalo atual: o acesso à atenção especializada.
O senhor pode aprofundar um pouco mais sobre a situação que encontrou ao assumir o cargo e sobre os obstáculos que a empresa enfrentou durante o governo Bolsonaro, principalmente em relação ao financiamento e à expansão de suas redes de hospitais?
Eu coordenei o grupo de transição na área da saúde e, ao começar a trabalhar com o ministro Camilo Santana, também pude entender o quadro de destruição que o Ministério da Educação sofreu durante o governo Bolsonaro. Eu diria que, na estatal Ebserh, a desestruturação não foi tão profunda ou violenta quanto no Ministério da Saúde e no Ministério da Educação, onde houve uma desarticulação brutal da capacidade de cumprir os preceitos constitucionais. No caso do Ministério da Saúde, isso afetou a Coordenação Nacional do SUS, e no Ministério da Educação, toda a política de educação básica, fundamental e superior. Profissionais técnicos competentes e comprometidos com políticas públicas foram substituídos por pessoas desqualificadas, resultando em desfinanciamento severo. Isso refletiu o alinhamento desses ministérios à política econômica, especialmente devido à Emenda do Teto de Gastos. Os ministros não verbalizavam oposição a Paulo Guedes ou Bolsonaro, mas seguiam a diretriz de cortar despesas. Por exemplo, no Ministério da Saúde, o ministro destruiu programas como o Mais Médicos, acabou com a Farmácia Popular, sucateou o SAMU, reduziu a compra de medicamentos e retardou a aquisição de vacinas. Muitos acham que isso era apenas negacionismo, mas era parte de uma política deliberada que seguia uma concepção específica de Estado. No caso da Ebserh, o general que dirigiu a empresa durante quatro anos no governo Bolsonaro, com uma equipe altamente militarizada, de alguma forma preservou a empresa e sua institucionalidade. Isso foi possível porque a Ebserh conta hoje com 65 mil empregados, todos concursados, sejam eles servidores do regime jurídico único ou empregados públicos contratados pelo regime da CLT. Portanto, havia na instituição, apesar de sua breve história, uma posição de resistência. No entanto, o que caracterizou esses quatro anos do governo Bolsonaro na Ebserh foi uma retração no cumprimento das suas finalidades, muito orientada pela lógica financeira. Os reitores e reitoras das universidades federais, muitos deles formados em medicina, enfermagem, etc., encontraram sérios problemas para manter seus cenários de prática e seus hospitais universitários. Eles relatavam que, ao chegarem para uma audiência com o general, eram literalmente destratados. Não havia capacidade de diálogo, nem qualquer abertura para negociações. Isso ocorre porque as estatais estavam ligadas ao Ministério da Economia e a uma secretaria de desestatização, ou seja, o movimento era voltado para a privatização e a redução do Estado, diminuindo sua capacidade. O general deixava claro para os secretários municipais, estaduais, prefeitos e governadores que reclamavam por uma maior inserção dos hospitais universitários que, em resposta, o compromisso deles era apenas com o ensino e a pesquisa, afirmando que o SUS não tinha relação com eles. Quando os superintendentes dos hospitais e os reitores reclamavam ou reivindicavam uma maior participação, a resposta era: “por conta e risco; não tenho nada a ver com o SUS.” Ora, como pode um hospital universitário público, que muitas vezes é a maior ou a única referência de alta complexidade no sistema estadual ou regional de saúde, afirmar que não tem relação com o SUS? Por isso, ao assumirmos, diria que, do ponto de vista não apenas simbólico, mas ético-político, o desafio passou a ser fazer com que nossos hospitais universitários voltassem a ser hospitais do SUS, no SUS e para o SUS. Ou seja, prestar assistência médica hospitalar de qualidade ao Sistema Único de Saúde, produzir conhecimento para ele e formar os futuros profissionais de saúde em todas as áreas. É interessante notar que não formamos apenas para as 14 profissões da saúde. O hospital universitário, devido à sua complexidade, é um campo de formação para profissionais do direito, do jornalismo, das engenharias, das ciências contábeis, entre outros, abrangendo um conjunto de áreas que vai além do campo da saúde. Estamos muito felizes, pois, um ano e meio depois, já há o reconhecimento dos secretários municipais, prefeitos, secretários estaduais, governadores e do Ministério da Saúde. Este último é nosso parceiro constante, assim como nosso ministro Camilo, que é responsável pelo Ministério da Educação e pela Política de Ensino Superior. Hoje, a Ebserh é, de fato, uma estatal que cumpre um papel estratégico. Na semana passada, o próprio presidente Lula, durante a inauguração do novo hospital universitário da Universidade Federal de Uberlândia, afirmou que estamos cumprindo um papel extraordinário para o SUS. Este reconhecimento demonstra que, em um curto espaço de tempo, conseguimos retomar um projeto estratégico para o país, iniciado no segundo governo Lula e implementado de forma efetiva na primeira gestão da presidenta Dilma. Entretanto, as intercorrências políticas que resultaram no golpe anterior retardaram esse avanço, mas agora estamos avançando a todo vapor. Um exemplo disso é que fomos imediatamente contemplados com investimentos substanciais do PAC. Temos programados R$ 1,780 bilhões para investimentos nos próximos três anos, abrangendo 38 grandes obras. Essas incluem a construção de novos hospitais em Pelotas, Juiz de Fora, na zona sul de São Paulo com a Unifesp, além de um novo hospital no Cariri, em Fortaleza, Paulo Afonso na Bahia e Lavras, no interior de Minas. Dessa forma, a empresa está entrando em um processo de expansão que deve nos levar a cerca de 60 hospitais universitários nos próximos anos. Já somos atualmente a maior rede pública de hospitais do hemisfério sul e, em breve, devemos nos tornar a maior rede pública de hospitais de todo o país, desempenhando um papel extraordinário no apoio a um país que enfrenta tantos desafios nas áreas de assistência, ensino e pesquisa.
A Ebserh pode ampliar o seu campo de atuação dos hospitais universitários para outras unidades de saúde? Por exemplo, no Rio de Janeiro, ela poderia incorporar o Hospital dos Servidores, que é o maior da rede pública, um dos maiores da rede pública no Estado?
Recentemente, tivemos a oportunidade de realizar um diálogo aprofundado sobre esse tema, que envolve o reconhecimento de questões fundamentais relacionadas à Ebserh, à lei federal que a criou e ao papel de uma empresa pública no suporte ao Sistema Único de Saúde. Agradeço muito a oportunidade de discutir esse assunto. A lei que cria a Ebserh permite que a empresa amplie seu espectro de atuação para além dos hospitais universitários federais. Essa possibilidade existe. No entanto, nossa avaliação no Governo Federal, compartilhada pelo ministro Camilo Santana, pela ministra Nísia Trindade, pelo ministro Rui Costa e pela ministra Esther Dweck da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, é de que temos uma tarefa que foi interrompida pelo golpe. Temos 68 universidades federais, praticamente todas com cursos de medicina, enfermagem e na área da saúde, que necessitam de um hospital universitário. Portanto, faria sentido considerar uma ampliação do espectro de atuação da Ebserh, uma vez que seu objetivo essencial é garantir que as universidades públicas federais brasileiras disponham de uma rede de hospitais universitários que funcionem como campos de excelência na assistência, no ensino e na pesquisa. Esses hospitais devem ser cenários de prática e aprendizagem que atendam às necessidades de formação. A maior disputa que enfrentamos no âmbito do Sistema Único de Saúde, que tem sido relegada a segundo plano ao longo dos últimos 30 anos, é precisamente a formação dos profissionais, inclusive a formação dos professores, preceptores e tutores que irão capacitar os futuros profissionais de saúde nas redes de ensino pública e privada do país. Ou seja, a gente só ganha o SUS como um projeto ético, político se a gente tiver profissionais comprometidos. Para formar profissionais comprometidos, a gente precisa ter formadores, professores, professoras comprometidos com esse projeto. Portanto, essa tarefa da Ebserh é uma tarefa estratégica. A lei é muito clara, nós somos 100% SUS. A Ebserh é uma empresa estatal, uma empresa pública, dependente do Estado, ou seja, ela não vende serviços para plano de saúde, ela não vende serviços privados, ela é proibida pela lei, a sua função é 100% pública. Portanto, é um debate ideológico que certos setores da esquerda promovem ao atribuir a qualquer modalidade que não seja da administração pública direta a pecha de privatização. A argumentação é mais ou menos a seguinte: fora da administração direta não há salvação; autarquias, agências e empresas públicas são vistas como privatização. O mais contraditório nesse debate é que essas mesmas forças políticas se somam a nós na defesa da estatal Petrobras e dos Correios, mas, no caso da Ebserh, recebem a pecha pejorativa, de forma desleal e, às vezes, até desonesta ou por desconhecimento, de que se trata de uma empresa pública, 100% pertencente ao Estado brasileiro e totalmente destinada a resolver problemas para o Sistema Único de Saúde e para o sistema de ensino e pesquisa das universidades públicas federais. Vamos pegar o caso do Rio de Janeiro. Neste estado, temos uma situação de excepcionalidade relacionada ao fato de que o Rio foi a capital federal e tinha uma vasta rede pública federal. Contudo, essa rede pública federal também estava presente em cidades como São Paulo, Belo Horizonte e Recife, para citar apenas alguns exemplos. Por questões históricas, que não é o caso de discutir aqui, o processo de descentralização previsto na Constituição no Rio de Janeiro ficou pelo meio do caminho, cheio de idas e vindas, enfrentando problemas concretos que precisam ser abordados. A verdade é que não faz sentido o Ministério da Saúde, que tem a responsabilidade de coordenar nacionalmente o SUS — com todas as suas implicações em diversas áreas e enfrentando enormes dificuldades em um país de dimensão continental — continuar administrando seis hospitais gerais na cidade do Rio de Janeiro, que são extremamente importantes para o Sistema Único de Saúde do estado. O que se tem discutido é: o que fazer com esses seis hospitais? O que temos aprofundado na Administração Pública Federal, sob a coordenação da nossa ministra Nísia Trindade e com a liderança do secretário de Atenção Especializada, Adriano Massuda, é encontrar uma solução que atenda às necessidades do SUS no Rio de Janeiro. Recentemente, assumimos três hospitais do Complexo Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Estamos completando agora os primeiros cem dias à frente destes hospitais, com respostas já impressionantes e muito importantes de recuperação, considerando que a UFRJ é talvez a nossa mais antiga e mais importante universidade pública. Admito que é difícil reconhecer que a UFRJ é maior, pois também sou da universidade, da Unifesp, mas é inegável que a UFRJ é uma universidade de excelência estratégica para o Brasil. Portanto, assumir três hospitais universitários na cidade do Rio de Janeiro ao mesmo tempo não faria sentido se também assumíssemos os seis hospitais. Isso provavelmente resultaria em problemas operacionais e dificuldades muito concretas. O que estamos dialogando agora é fazer a fusão do hospital universitário da Unirio, que é outra universidade pública federal no Rio de Janeiro. Para quem não é do estado, cabe esclarecer que a Unirio não é a mesma coisa que a UFRJ; ela possui o Hospital Universitário Gaffrée e Guinle, que é um hospital centenário. Esse hospital foi projetado pelos mesmos arquitetos do Copacabana Palace e é contemporâneo a esse prédio, mas é tombado pelo patrimônio histórico, o que impede que façamos ampliações, adaptações ou reformas necessárias para torná-lo um hospital contemporâneo. Assim, qual foi a solução que articulamos e que já estamos implementando? A ministra Nísia Trindade me autorizou a trabalhar efetivamente no processo de fusão, que consiste em unir esforços entre o Gaffrée e Guinle e o Hospital dos Servidores Federais, para que juntos possamos criar o maior hospital público universitário federal do país. Esse será um hospital de excelência, juntando as potências do Servidor Federal, que agora enfrentam diversas dificuldades administrativas, com a força da Unirio e do Gaffrée e Guinle. A integração dos programas de residência e de pós-graduação será fundamental, pois esses dois hospitais estão localizados a apenas um quilômetro e meio de distância, ou seja, estão na mesma região de saúde. A partir de agora, vamos trabalhar na fusão desse processo, que beneficiará a todos. Claro que enfrentaremos algumas reações corporativas; surgirá a discussão de que a Ebserh é privatização, mas insisto: não é privatização, é gestão pública indireta, 100% destinada ao SUS. Meu primeiro gesto ao assumir a presidência da EBSERH foi colocar a bandeira do SUS aqui dentro e demarcar o SUS em todos os nossos materiais de divulgação. Isso tem um efeito simbólico muito importante, pois representa a retomada do compromisso dos hospitais universitários com o Sistema Único de Saúde.
Aproveitando a sua experiência, seu conhecimento também por ter sido ministro, de que forma a pandemia impactou a percepção sobre o SUS? E quais os novos desafios que surgiram para o Sistema Único de Saúde brasileiro?
Olha, é inegável que no Brasil e em todos os países que possuem sistemas universais, a pandemia expôs claramente o quanto esses sistemas são imprescindíveis, inclusive para sustentar a própria economia. Países que não contavam com sistemas universais, como o SUS, sofreram de maneira muito mais intensa. E é importante ressaltar que tivemos que lidar com a pandemia e com o pandemônio simultanemante. O Sistema Único de Saúde teve que ser coordenado pelos entes subnacionais, ou seja, estados e municípios precisaram confrontar o negacionismo e a recusa do governo federal, do Ministério da Saúde e da gestão do Bolsonaro em assumir suas responsabilidades. Ainda assim, se não fosse o SUS, teríamos enfrentado um quadro muito mais trágico do que o que vivemos. O SUS salvou muitas vidas. E o resultado disso é que ele conquistou, como mostram diversas pesquisas, um nível de respeitabilidade e uma percepção de sua imprescindibilidade como nunca antes conseguirmos nos 36 anos de existência do Sistema Único de Saúde. Portanto, esse é um marco… Agora, veja, quem estuda o SUS e acompanha os indicadores sabe que ele já vinha sendo fundamental na proteção da vida dos brasileiros e brasileiras. Se os brasileiros vivem mais, se os bebês morrem menos, se conseguimos ter uma das menores taxas de prevalência de tabagismo, se fizemos uma expansão da estratégia de saúde da família como poucos países do mundo, implementamos o SAMU, fizemos uma reforma psiquiátrica e temos um programa nacional de vacinação dentro do SUS, isso se deve à construção cotidiana desses últimos 30 anos. Sabe qual é a grande diferença: é que todo mundo sabia que o SUS era bom. Prova disso é que nunca houve um partido político ou um candidato à presidência da República que tivesse ousado afirmar que, em seu projeto político, substituiria o SUS por qualquer outra coisa, ao contrário do que ocorreu em países vizinhos. Exemplos como o Chile e a Colômbia, que tinham sistemas universais e que mergulharam na tragédia neoliberal, resultando em sistemas estratificados por classes sociais e capacidade de pagamento, com resultados desastrosos. A grande questão é que todos reconhecem que o SUS é fantástico e que a Constituição é perfeita, mas não se encarava um dos problemas mais graves do SUS desde sua formação: o subfinanciamento. Na verdade, isso foi agravado pelo processo de desfinanciamento resultante da Emenda do Teto. Para citar um dado, em 2020, dispúnhamos de R$ 3,85 por habitante por dia para garantir a vacinação e tratamentos de transplantes, ou seja, para assegurar a universalidade e a integralidade, menos do que o custo de uma passagem de ônibus de ida.
Portanto, vivemos uma situação paradoxal: uma Constituição que estabelecia, e um arcabouço jurídico-institucional que indicava um robusto sistema de saúde reconhecido internacionalmente, algo que nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes ousou incluir em seus marcos legais, e, ao mesmo tempo, a inviabilidade de sua implementação devido ao asfixiamento financeiro.
Qual é a grande novidade? Creio que a pandemia trouxe, de certa forma, um efeito positivo, se é que podemos chamar assim, considerando uma epidemia que levou 700 mil vidas no Brasil não deveria ter um impacto positivo. Contudo, é inegável que, a partir do reconhecimento da imprescindibilidade do SUS, foram criadas condições políticas para que o presidente Lula dissesse à nação e ao Congresso Nacional que era necessário aprovar um orçamento extraordinário em 2023, recuperando a capacidade de financiamento do SUS. Ele também destacou a necessidade de desatar as amarras da Emenda Constitucional 95, ou seja, dos limites do teto constitucional para saúde e educação, para que pudéssemos ter uma resposta à altura da dignidade da população.
Na quinta-feira passada, no evento ao qual me referi em Uberlândia, tivemos a oportunidade de ouvir o presidente Lula afirmar para a ministra Anísia e para mim: “Eu não quero que este hospital que estou entregando hoje atrase um dia sequer por falta de recursos.”
O ministro Fernando Haddad (Fazenda) e a ministra Simone Tebet (Planejamento e Orçamento) terão a responsabilidade de garantir as condições de funcionamento do Sistema Único de Saúde. Isso significa que o presidente Lula, com toda a sua sensibilidade, reconhece e tem um compromisso explícito com a sociedade brasileira, o que se traduz exatamente no investimento que mencionei, ou seja, a destinação de R$ 1,780 bilhões programados para a recuperação, expansão e criação de novos hospitais. Para termos uma noção do que isso representa, nos últimos cinco anos, investimos menos de R$ 360 milhões na rede hospitalar universitária federal. A pandemia demonstrou, tanto no Brasil quanto em outros países, que ou investimos em um sistema de proteção social e nos sistemas universais de saúde — como é o caso do SUS, que são essenciais — ou ficaremos extremamente vulneráveis a futuras crises. E vejam, não precisamos esperar que uma nova pandemia se manifeste, ainda que ela esteja à porta. Sabemos que a qualquer momento ela pode surgir. Mas bastou a crise climática se manifestar de forma significativa no país, citando, por exemplo, o caso do Rio Grande do Sul, para que pudéssemos perceber o quanto o SUS foi imprescindível. Foi necessário responder imediatamente à destruição da rede de saúde para proteger a vida do nosso povo gaúcho. Vamos considerar agora a questão das queimadas. O Brasil vive uma crise que impacta substancialmente a saúde da população, com o aumento de doenças respiratórias e cardiovasculares, sem contar os acidentes diretos relacionados ao fogo e às queimadas. Imediatamente, nossa rede hospitalar foi ativada, assim como as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e as unidades básicas de saúde, em uma pronta resposta. Na Califórnia, durante os incêndios de 2012, o sistema de saúde norte-americano enfrentou sérios problemas, pois é baseado em um modelo de mercado. Estima-se que, nos dez anos subsequentes às queimadas da Califórnia em 2012, mais de 100 mil pessoas morreram devido aos efeitos da exposição aos incêndios florestais. Devemos estar alertas desde já. Quem fará isso? As operadoras de planos de saúde? As famílias, com desembolso direto? Não. É o Sistema Único de Saúde que, de forma preventiva ou em conjunto com o país, estará à frente dessas respostas. Estou me alongando um pouco nessa resposta porque isso nos leva a uma reflexão importante: não há desenvolvimento econômico, não há desenvolvimento político, não há capacidade de resposta social sem um Sistema Único de Saúde forte, financiado de forma suficiente, estável e permanente, que atenda municípios, estados e a própria União, garantindo eficiência na utilização de cada centavo e na organização de uma resposta sanitária que assegure a vida de cada brasileiro e de cada brasileira.
Quais os principais objetivos da Ebserh nos próximos anos, especialmente em relação à formação médica e multiprofissional?
Olha, considero que nossos principais desafios são, em primeiro lugar, reinserir os hospitais universitários federais na rede do SUS. Como mencionei, eles precisam ser hospitais do SUS, para o SUS e no SUS. Em segundo lugar, é fundamental contribuir efetivamente para a formação não apenas dos futuros profissionais de saúde, mas também da rede de professores e professoras que são essenciais. Na área da saúde, enfrentamos o desafio da educação permanente. A produção de conhecimentos e a inovação tecnológica ocorrem em um ritmo avassalador, de tal forma que não se forma um profissional e o coloca no mercado de trabalho, público ou privado, e ele se torna pronto para toda a vida. Ou seja, ele precisará de estratégias de formação permanente ao longo de toda a sua trajetória profissional. Este é um grande desafio. O terceiro desafio que temos é produzir conhecimentos voltados às necessidades da população brasileira. Para isso, estamos implementando várias iniciativas, incluindo o desencadeamento de uma linha de fomento à pesquisa em parceria com a Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o Ministério da Saúde e o Ministério da Ciência e Tecnologia, para que possamos financiar pesquisas que vão além do que o mercado atualmente já financia. Não temos grandes problemas para captar recursos, por exemplo, para a pesquisa de novos medicamentos, já que as indústrias privadas têm um altíssimo interesse em pesquisar nos hospitais universitários. Temos uma quantidade significativa de doentes, professores, pesquisadores e laboratórios adequados. No entanto, há pesquisas no campo da gestão do cuidado em rede que precisam ser priorizadas, especialmente para enfrentar temas como racismo estrutural, homofobia, saúde das populações mais vulnerabilizadas e doenças negligenciadas, que frequentemente não atraem interesse. Nós entendemos que a Ebserh e a rede de hospitais universitários desempenham um papel essencial nessa estratégia. Há um quarto desafio que me parece muito importante, que é o campo da inovação, especialmente em relação à transformação digital. Hoje, cumprimos um papel crucial: temos 26 milhões de brasileiros com prontuários eletrônicos sob nossa guarda e responsabilidade. A interoperabilidade com outros sistemas de informação, a capacidade de utilizar inteligência artificial, e a produção de diagnósticos à distância — incluindo teleconsulta, telecirurgia e telemonitoramento — são obrigações que nos impusemos.Além disso, as inovações também se estendem à gestão hospitalar e à gestão da educação em saúde, ou seja, a inovação deve ser uma prioridade. Assim, diria que assistência, ensino, pesquisa e inovação em nossa rede de hospitais públicos federais, articulada em rede com os demais serviços do SUS, constituem nossos compromissos e desafios, que representam uma tarefa verdadeiramente desafiadora para os próximos anos. Estamos especialmente motivados, pois estamos fazendo isso em parceria com outras áreas do governo federal, de fato, trabalhando como um governo que se articula internamente e com os outros entes federados e entidades da sociedade civil. É uma tarefa para muitos e muitos anos, mas cujas respostas já começam a aparecer, o que nos deixa muito felizes.