‘Alerta de gatilho’: como está a saúde mental dos brasileiros?
O quadro é preocupante com afastamentos no trabalho, avanço de apostas online e prevalência de transtornos de ansiedade em crianças
A natureza alegre e receptiva do brasileiro, construída a partir de uma visão do senso comum, atualmente, contrasta com índices crescentes nos últimos anos de quadros crônicos de saúde mental, como depressão e ansiedade.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), somos o país com a maior taxa de depressão da América do Sul – com cerca de 6% da população já diagnosticada com o transtorno.
Os dados da agência relacionados à ansiedade no país são ainda mais alarmantes, pois colocam os brasileiros no topo da lista de ansiosos, com cerca de 9% da população (mais de 19 milhões de pessoas) sofrendo com os sintomas.
Mas, para além do compilado oficial da organização internacional, outros levantamentos demonstram que a situação pode ser ainda mais grave. Uma pesquisa, divulgada em julho deste ano pelo Instituto Cactus em parceria com a Atlas Intel, apontou que 68% relatam sofrer, com frequência, sintomas como nervosismo, ansiedade e tensão, mas que 55% nunca procuraram qualquer tipo de ajuda médica.
Incapacidade de trabalhar
O assunto é acompanhado de maneira transversal, já que uma parcela significativa acaba desenvolvendo formas incapacitantes das doenças. O Ministério da Previdência Social mostrou que, somente em 2023, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) concedeu mais de 288 mil benefícios por incapacidade devido à disfunção de atividade cerebral e comportamental. O número é 38% maior do que em 2022.
O ex-ministro da Saúde Arthur Chioro destaca que é preciso analisar o crescimento do índice com a perspectiva de que o mundo passou por um momento de pandemia, e foram vistos efeitos prolongados da desorganização mental durante o período. Além disso, o médico sanitarista pontua que o quadro tem relação direta com dados econômicos de desemprego e crise, vividos no último período. Ele lembra também que muitos trabalhadores informais passam ao largo do monitoramento oficial.
“A partir de 2023, o Sistema Único de Saúde volta a disponibilizar a rede de atendimento psicossocial, portanto existe um impacto maior no acolhimento, então, é preciso considerar esse ponto”, afirma Chioro. No governo de Jair Bolsonaro, a Coordenação de Saúde Mental foi extinta no ministério.
Mesmo com uma maior atenção para as políticas de saúde mental na pasta da Saúde no atual governo, buscar ajuda segue uma tarefa difícil na maioria dos casos, seja pelo forte estigma social que os transtornos carregam, seja pela falta de protocolo no atendimento. O mais comum é que as pessoas que sofrem com depressão ou ansiedade busquem ajuda já em um momento mais agudo da doença, quando a vida social e profissional já foi afetada.
Segundo o Ministério da Saúde, “o bem-estar de uma pessoa não depende apenas do aspecto psicológico e emocional, mas também de condições fundamentais, como saúde física, apoio social, condições de vida. Além dos aspectos individuais, a saúde mental é também determinada pelos aspectos sociais, ambientais e econômicos”.
Dentro desses aspectos sociais, a relação entre dificuldade financeira e questões de saúde mental não é novidade, apesar de pouco registro em termos de pesquisa. Um levantamento feito pelo Ibope encomendado pela Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos (Abrata), em 2008, já mostrava que as classes C e D são as mais vulneráveis à depressão. A pesquisa identificou sintomas depressivos em 25% das pessoas desse estrato social, contra 15% das classes A e B.
Vício em apostas
Somente neste ano de 2024, 25 milhões de pessoas tornaram-se novos apostadores nas plataformas conhecidas como “bets”, que oferecem o serviço de apostas esportivas legal e ilegalmente no Brasil e em diversos países. Na somatória dos últimos cinco anos, o número de brasileiros apostadores chegou a 52 milhões.
Os números, fornecidos por uma instituição de pesquisa de mercado, o Instituto Locomotiva, assustam do ponto de vista quantitativo e preocupam no que diz respeito à classe social dos apostadores: oito em cada dez fazem parte das classes C, D e E; e quatro em cada dez jogadores têm entre 18 e 29 anos.
Outro traço em comum no perfil dos apostadores nas bets é que 86% têm dívida e que 64% estão negativados na Serasa; algo que complica ainda mais o quadro. Relatos de divórcios, pessoas que venderam suas casas e jovens desempregados completamente endividados não são incomuns nesse sentido.
Na última quarta-feira (18), a ministra da Saúde, Nísia Trindade, fez uma declaração a jornalistas no Palácio do Planalto: “acho que essa questão dos jogos nos meios virtuais, cada vez mais intensa, seu impacto na vida das pessoas e na saúde mental requerem uma forte regulação”.
Integrante do NAPPs, o Núcleos de Acompanhamento de Políticas Públicas da Fundação Perseu Abramo, o ex-ministro Arthur Chioro alerta que “nossa rede pública de saúde não está preparada para essa nova potencial epidemia de dependentes psíquicos das apostas eletrônicas, nós vamos ter que, interdisciplinarmente, discutir o que fazer, como mediar, como reduzir danos”.
A perspectiva é que seja criado um Grupo Interministerial de Trabalho para tratar do assunto na esfera federal. Pela gravidade do tema, surgem também outras iniciativas, como a do deputado estadual Simão Pedro (PT-SP) que apresentou recentemente um Projeto de Lei para a proibição da publicidade das plataformas no estado.
Infância e adolescência
“Tivemos êxito no controle ao tabagismo, com a regulação da propaganda”, lembra Chioro. Para ele, a proibição de acesso às bets por menores de idade é fundamental, além da necessidade de equilíbrio no tempo de tela desde a primeira infância.
Dados da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) mostram que em 2024, pela primeira vez, a situação do quadro de ansiedade está mais grave entre crianças e jovens do que em adultos, segundo uma análise feita pela Folha no período entre 2013 e 2023. Com um crescimento expressivo, a taxa de pacientes de 10 a 14 anos atendidos por transtorno de ansiedade é de 125,8 a cada 100 mil, e a de adolescentes, de 157 a cada 100 mil. Já entre pessoas com mais de 20 anos, a taxa é de 112,5 a cada 100 mil.
Com relação aos casos de suicídio nessa faixa etária, o quadro é mais grave entre as meninas. Houve uma evolução do problema entre meninas de dez a 14 anos, com alta de 221%, de 2000 a 2021, contra aumento de 170% dos meninos.