PL de anistia e a imoral barganha política para salvar Bolsonaro
“ É uma verdadeira guerra política com os instrumentos da institucionalidade e tem, na verdade, como intenção derradeira, a anistia para o ex-presidente Jair Bolsonaro”, escreve a pesquisadora Tânia Maria de Oliveira
Tânia Maria de Oliveira
A queda de braço entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal ganhou mais um capítulo na terça-feira, 10 de setembro, com a tentativa de inclusão na pauta da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados do Projeto de Lei que propõe anistia aos manifestantes e financiadores dos atos antidemocráticos ocorridos em todo o país após 30 de outubro de 2022, quando foi realizado o segundo turno das eleições nacionais, até a entrada em vigor da futura lei.
Dentre os anistiados estariam os praticantes de diversos atos criminosos: caminhoneiros que bloquearam as rodovias em todo o país logo após o resultado eleitoral, os vândalos que tentaram invadir a sede da Polícia Federal na Capital Federal no dia 12 de dezembro daquele mesmo ano, tocando fogo em ônibus e carros, a tentativa de um atentado a bomba no Aeroporto Internacional de Brasília colocado em prática em 24 de dezembro de 2022, véspera de natal, e aqueles envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, que resultaram na invasão e depredação das sedes dos Três Poderes.
No caso dos atos de 8 de janeiro – o central para a bancada bolsonarista – já são mais de 200 pessoas condenadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) pela prática dos crimes de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado, com penas variadas, a depender da individualização da conduta.
O entendimento do STF, que por maioria tem acompanhado os votos do relator, ministro Alexandre de Moraes, é no sentido de que, ao pedir intervenção militar havia a intenção de destituir o governo democraticamente eleito em 2022, tratando-se de crime de autoria coletiva, em que, a partir de uma ação conjunta, todos contribuíram para o resultado.
O debate sobre o PL de anistia na Câmara dos Deputados acontece concomitantemente a uma tentativa de pautar, no Senado, o pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes, considerado inimigo da extrema direita e acusado de extrapolar suas funções como magistrado. É uma verdadeira guerra política com os instrumentos da institucionalidade e tem, na verdade, como intenção derradeira, a anistia para o ex-presidente Jair Bolsonaro.
O Parlamento brasileiro, que deveria ser o palco da democracia, com a representação das diversas posições políticas e ideológicas, em busca da construção de soluções
mediadas e ponderadas, virou palco onde seus atores falam apenas para seus seguidores nas redes sociais, não guardam qualquer respeito pela diversidade e pluralidade de opiniões. Um lugar onde gritos, ameaças e busca de “lacração” viraram regra.
É nesse cenário que próceres defensores da ditadura militar bradam por “liberdade de expressão”, se movimentam para tentar derrubar a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que julgou o ex-presidente inelegível até 2030. Esse o verdadeiro pano de fundo da polêmica sobre o perdão a quem praticou atos golpistas, aliado ao pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes.
A deturpação clara do significado de anistia, utilizando-a como perdão e esquecimento a crimes graves contra a própria democracia, é justamente o que foi feito pelo regime militar que vigeu no Brasil de 1964 a 1985, quando teve início o processo de redemocratização do Brasil. A anistia ocorrida naquele tempo histórico acabou sendo o preço a pagar, a moeda de troca para o fim da ditadura.
Na conjuntura do debate sobre o Projeto de Lei da anistia, essa barganha política imoral encontra barreiras jurídicas insustentáveis: em primeiro lugar, não é possível ao parlamento interferir em julgamentos no Poder Judiciário enquanto acontecem. Essa lógica, acaso utilizada sempre, transformaria o Poder Legislativo em uma Casa revisora dos julgamentos judiciais, uma afronta à separação dos poderes.
Quanto ao mérito, a Lei 14.197/2021, chamada de Lei do Estado Democrático de Direito aponta que é crime tentar depor, por meio da violência ou de grave ameaça, o governo legitimamente constituído ou impedir e restringir o exercício dos poderes constitucionais. Também é crime incitar, publicamente, a animosidade entre as Forças Armadas e os demais poderes constituídos. As penas variam e podem chegar a 12 anos de reclusão.
A nossa Constituição veda explicitamente a anistia em casos envolvendo crimes hediondos e terrorismo. A Lei de Crimes Hediondos configura crimes como genocídio e organização criminosa, reforçando essa proibição. Desse modo, os crimes que visam atingir o Estado democrático de direito, contra as instituições democráticas, não são passíveis de anistia, pela própria interpretação teleológica da Constituição Federal e da nossa legislação infraconstitucional.
Essa construção política para atender interesses não republicanos cria uma roda-viva de disputas entre poderes com consequências insólitas, haja vista que passos seguintes certamente levariam a nova lei, caso aprovada pelo Congresso Nacional, a ter sua constitucionalidade questionada justamente no Supremo Tribunal Federal.
É um jogo de resultado negativo, sem vitoriosos, onde a derrotada é a sociedade brasileira e suas conquistas históricas de instrumentos de defesa de sua democracia.
Tânia Maria de Oliveira, bacharel em Direito e História, Mestre em Direito do Estado, com especialização em Direitos Humanos e Processo Legislativo, membra do Grupo Candango de Criminologia da UnB – GcCrim/Unb e da Coordenação Executiva Nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD.