‘Com novo desastre, as pessoas esquecem o anterior, mas nós cientistas não esquecemos’, diz climatologista
José Marengo, coordenador-geral de pesquisa e desenvolvimento do Cemaden, defende que o comando da Autoridade Climática anunciada por Lula seja de um quadro técnico
Voz importante no alerta da comunidade científica em relação às mudanças do clima, o cientista José Marengo conta com uma vasta produção acadêmica na área de mudanças climáticas e integra o quadro do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), unidade ligada ao Ministério da Ciência,Tecnologia e Inovação.
São mais de 250 artigos publicados, além de se destacar em listas internacionais de referência na área. Peruano, radicado no Brasil há mais de 20 anos, Marengo é hoje citado dentre os cientistas mais influentes no ranking da Reuters de 2021. Passou pelo Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC), pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e é vinculado à Academia Brasileira de Ciência; ele também compõe a Rede Clima, que apoia atividades de pesquisa no setor.
Criador do conceito dos “rios voadores”, José Marengo fala sobre as causas climáticas para as secas na Amazônia e os efeitos para o espalhamento de queimadas provocadas por ação humana, que provocam consequências em outras regiões do Brasil. Confira a entrevista:
Antes de entrar no tema dos efeitos das queimadas propriamente, a gente precisa falar da seca severa que a Amazônia está vivendo desde o ano passado para entender como isso se relaciona com a disseminação dos incêndios. Do ponto de vista dos efeitos climáticos, o que ocasionou essa situação crítica de seca?
Na verdade, a seca começou em 2023, ou seja, já em 2022 havia indicadores de que o volume das chuvas estava menor que o normal, e a presença do fenômeno El Niño na segunda metade de 2023 potencializou o efeito, talvez o pior momento foi na primavera, entre setembro, outubro e novembro. Aí que começou o problema. Normalmente, em outubro começa a estação chuvosa, mas em 2023 a estação chuvosa só começou mesmo em janeiro de 2024. Ou seja, teve esse atraso. Em setembro, quando deveria ter chovido, não choveu, as temperaturas estavam muito altas por causa de ondas de calor, solo seco e a estação chuvosa, que começou só em 2024, acabou sendo muito fraca. A seca atual tem a ver com a presença do El Niño, pelas mudanças na superfície do oceano Pacífico Tropical, que inibe a formação de chuva na região amazônica, e isso virou uma bola de neve, crescendo, até chegarmos a situação que estamos vivendo, com a formação de um bloqueio. Sem chuvas no centro-oeste e no sul da Amazônia, o ar vai ficando cada vez mais seco e quente e aí as temperaturas sobem, criando várias ondas de calor, como as que tivemos nos últimos dois anos. Então, o que estamos vendo agora é um impacto dessa combinação. Tudo isso é como uma receita para uma estação de fogo intenso. Mas, vale lembrar que no Brasil cerca de 95% dos incêndios são provocados por ação humana. O fogo é um fator ecológico, as florestas realmente pegam fogo e depois crescem, quando provocadas por fatores ecológicos naturais, como raios, mas quando acontece de forma humana e criminosa, acontece o que estamos vendo, com o fogo se alastrando muito rápido por áreas que estão cheias de matérias secas da última estiagem. O resultado são incêndios em Parques Nacionais, em vilas, além de todas as consequências da fumaça. Estou aqui em um evento em Montevidéu e fui informado que já houve chuva preta no norte do Uruguai e as consequências devem chegar também no norte da Argentina, os efeitos estão em toda a América do Sul.
E sobre os rios da Amazônia, que são extremamente importantes para o modo de vida e para a economia da região, e estão com níveis muito baixos…
Sim, desde o ano passado, o rio Negro, o rio Madeira, o Amazonas, o rio Mamoré na Bolívia, estão com níveis baixíssimos. Se recuperaram um pouco, mas já voltaram a cair a níveis mais baixos que em 2023. Isso é muito preocupante porque a situação continua, a população fica isolada porque os rios são as rodovias da Amazônia. Na medição dos níveis dos rios, conseguimos ver que as secas estão cada vez mais frequentes. Fora os contrastes, por exemplo, o rio Acre está bem baixo agora, mas no começo do ano ele inundou, realmente vivemos os extremos. E não só no Brasil, tudo isso consequência do aquecimento global.
E nessas últimas semanas, aqui em São Paulo, a gente viu uma situação com índices muito ruins de qualidade do ar, temos a questão dos rios voadores que carregam a fumaça para o sudeste. Queria que você falasse um pouco sobre isso, sobre a importância da Amazônia para o que acontece com o clima nas outras regiões, e não só a Amazônia, né, porque o Cerrado, por exemplo, é responsável pelas nascentes dos rios. Como ficam as funções dos biomas nesse contexto?
Em termos de circulação dos ventos, a Amazônia é uma região relativamente plana e depois temos os Andes, então, o que acontece é que o sistema global de ventos, os ventos alísios, que nós chamamos, que vem do oceano Atlântico Tropical já carregados de umidade, entram no continente e a floresta também contribui com umidade através de processos de transpiração, então, quando esses ventos encontram com os Andes, adquirem velocidade e viram para o Sudeste. Traduzindo essa umidade que os ventos carregam em água líquida é mais ou menos o volume do rio Amazonas, é por isso que chamamos de rios, e voadores porque estão a uma altura de dois quilômetros. Eu que inventei esse termo já faz uns 20 anos. Durante o verão, esses rios voadores transportam umidade e levam chuva para o Pantanal, Centro-Oeste, Sudeste. Durante a estiagem, temos menos umidade, mas os ventos continuam e, quando eles entram, alastram tudo o que está pelo caminho, fumaça, fuligem. Quando vemos nas imagens de satélite toda essa fumaça da Amazônia indo para o Pantanal, São Paulo, Rio, Buenos Aires, Montevidéu sabemos que é por meio dos rios voadores. As chuvas lavam a atmosfera e aí temos a chuva preta, que derrubam as partículas que estão flutuando no ar. E é preciso lembrar que os incêndios não são somente no Brasil, a Amazônia do Peru, o norte da Bolívia, o Paraguai, Equador e Colômbia também registram incêndios de grande escala.
E com relação à resposta política? Na semana passada, o presidente Lula falou sobre o assunto, tivemos a notícia da criação da Autoridade Climática. Como você entende essa resposta? Está sendo suficiente? É um começo?
Bom, primeiro é preciso dizer que quando a ministra Marina Silva entrou no governo, ela já falava da Autoridade Climática, então nós já estávamos esperando essa agência ser criada logo no início. Não deveria ter sido adiada porque os impactos no clima são urgentes. Atualmente, o Ministério do Meio Ambiente e o da Ciência e Tecnologia estão trabalhando juntos no Plano Nacional de Adaptação e Mitigação, sabemos que esses documentos levam tempo, mas tem coisas que não podem esperar. Uma coisa que nós sempre falamos, eu, Carlos Nobre, Paulo Artaxo e outros que também trabalham na Rede Clima, é que é necessário trabalhar na preparação. O Brasil, como outros países, é muito reativo, mas não é proativo, então uma coisa que nós sugerimos, olhando para países ocidentais que sempre pegam fogo nessa época do ano, é a preparação. Ter um Corpo de Bombeiros especializado e dedicado para combater incêndios florestais, com aviões grandes, ao invés de helicópteros, soltando água, evitar que o trabalho seja feito por voluntários ou pelo Exército. As prefeituras precisam ter esse preparo, se não tiverem orçamento, poderia ser via emendas parlamentares dedicadas à criação de uma agência de Defesa Civil, por exemplo. Nós esperamos que a Autoridade Climática possa agir dessa forma. Do meu ponto de vista, gostaria que o coordenador dessa autoridade fosse um cientista ambiental e não um político.
E falando sobre médio e longo prazo, como você avalia o debate sobre esse tema na sociedade? A gente viu agora muitos memes relacionados ao fim do mundo, mas não é a primeira vez que isso acontece. Fica parecendo que a preocupação só dura durante o período mais crítico, depois o tema é esquecido, aí retorna novamente…
É curioso porque isso é algo que não acontece só no Brasil. Por exemplo, estou nessa reunião com cientistas latinoamericanos e todos eles relatam a mesma coisa. Acontecem desastres, notícias, mortos, imagens da imprensa, conferências, livros, artigos científicos e depois vem outro desastre e se esquecem do anterior. Sim, o mundo vai acabar, só espero que não no nosso tempo de vida, mas o ser humano não pode contribuir para o fim do mundo. O IPCC [ Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas] comprovou que o aquecimento global é um processo natural e está sendo amplificado pelas ações humanas. E é algo difícil de evitar porque lembro quando nós tivemos a seca no Pantanal, em 2020 e 2021, tivemos muitas notícias, conferências, artigos, depois, tivemos as chuvas no Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul, vimos Porto Alegre inundada, aquelas fotos de grande impacto. Agora, vemos a seca na Amazônia e já esqueceram das enchentes no Sul, ou seja, é uma questão de oportunidade, mas nós cientistas não esquecemos. São desastres previstos, falamos na Academia Brasileira de Ciência sobre os efeitos das secas, mas os políticos, os tomadores de decisões parece que entenderam a mensagem ou não querem entender a mensagem. Todas as ações possíveis de combate a desastres são ações de governos. Os cientistas elaboram as bases científicas, se os governos não agirem, estamos perdendo tempo. Se existissem políticas de zero fogo, por exemplo, com penas severas, talvez o risco diminuísse.
E como você avalia os “pontos de não retorno”?
As florestas têm resiliência, os biomas têm resiliência, mas até um certo limite e não sabemos qual é esse ponto; aqueles estudos de “tipping point”, como são chamados em inglês, assumem que, em um certo grau de aquecimento, em uma certa combinação de área desmatada e com um certo volume de CO2, a floresta pode colapsar. No presente, a floresta age com um sumidouro de carbono através do processo de fotossíntese, mas se a concentração de carbono aumenta na atmosfera e o ambiente fica mais seco e mais quente e a floresta deixa de existir como floresta e passa a ser outro tipo de vegetação, talvez algum tipo de floresta secundária, e essa nova floresta passaria a liberar o CO2 ao invés de captar, então aí chegaria a um ponto de não retorno, ela continuaria verde, mas não atuaria com as funções que atua hoje, ou seja, a resiliência acabou. Uma das críticas dos cientistas florestais diz que a floresta tem potencial de resistir, que podemos alongar essa chegada do não retorno, mas sabemos quanto, então fica essa dúvida, mas o ponto de não retorno é uma ideia válida. Vai chegar um momento que essa combinação de fatores pode sim colapsar o ecossistema, não que a floresta se transformaria em deserto, mas sim em outro tipo de floresta com impactos no clima na Amazônia e fora da Amazônia também.
Além do cenário preocupante da Amazônia, vemos também outros biomas importantes como o Cerrado e o Pantanal sofrendo com efeitos da mudança climática. Qual sua avaliação do que está ocorrendo em outras regiões?
As pessoas falam de uma forma pejorativa “a Amazônia vai virar Cerrado” como se o Cerrado não tivesse uso, pelo contrário, ele é extremamente importante. É como se fosse uma floresta amazônica oposta, invertida, ou seja, o solo está cheio de raízes, geograficamente as nascentes dos principais rios, como o São Francisco, os rios que abastecem o Sistema Cantareira, estão ali, e ele também está pegando fogo. Geograficamente, ele é extremamente importante para muitas cidades. Agora, os cientistas estão estudando a resiliência desse bioma, é difícil quantificar. É preciso dizer que todos os biomas têm uma função e todos eles estão sendo afetados.
E do ponto de vista de previsões? O que é possível afirmar dentro do cenário das mudanças climáticas para os próximos anos?
Primeiro, é preciso dizer da importância do cuidado com o meio ambiente e das medidas de adaptação porque não importa se o governo é de esquerda ou de direita, os efeitos das mudanças climáticas chegam por igual e afetam todo mundo. Uma das coisas importantes para ter uma estação chuvosa abundante e no momento certo, que deveria começar no próximo mês, em outubro, é a condição do que começou antes. Então, como em setembro de 2023 foi muito seco e muito quente, o solo estava muito seco e isso motivou o início tardio da estação chuvosa neste ano e isso foi agravado pelo El Niño, com o aquecimento do Pacífico. Este ano, estamos vendo uma situação similar, então, possivelmente, as chuvas devem começar mais tarde. Agora, tudo vai depender da situação mundial, da La Niña, com o esfriamento das águas, que já era para ter começado no meio do ano, mas que pode vir somente em 2025. Então, sem La Niña, é muito possível que a situação atual se repita também em 2025. Ainda é muito difícil saber a intensidade, mas existe a possibilidade de que o próximo ano seja uma repetição deste, caso a estação chuvosa demore muito para ocorrer.