Por Giorgio Romano Schutte

Nova Rota da Seda: Relação Brasil-China e a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI)
Por Giorgio Romano Schutte
Foto: distelAPPArath/Pixabay

Professor Associado em Relações Internacionais e Economia Política Mundial, o pesquisador Giorgio Romano escreve sobre relações econômicas e políticas Brasil-China e a Iniciativa do Cinturão e Rota (em inglês: Belt and Road Initiative)

Em primeiro lugar, parabenizo o Dr. Zhou Lei pela excelente exposição, que demonstrou como a BRI é uma expressão, por um lado, do forte crescimento econômico com desenvolvimento social da China e, por outro, da vontade e do compromisso do Partido Comunista Chinês em contribuir para uma nova globalização, mais democrática e inclusiva, que ofereça oportunidades para a superação da pobreza e da desigualdade que imperam no mundo de hoje e são a base de muitas tensões e conflitos.

Sou autor de um livro de referência sobre a dinâmica dos investimentos chineses no Brasil, Oásis para o Capital – Solo Fértil para a “Corrida de Ouro”, publicado pela Editora Appris. Além disso, sou membro fundador da Rede Brasileira de Estudos da China (RBChina), criada em 2018 com o objetivo de estimular estudos sobre a China e sua relação com o Brasil. Em outubro do ano passado, realizamos o VI Encontro Nacional dessa rede, com o valioso apoio da Fundação Perseu Abramo, entre outros.

Qualquer reflexão sobre a adesão ou não do Brasil à BRI deve levar em consideração a rica trajetória das relações entre o Brasil e a República Popular da China. Seguindo a lógica das apresentações de nossos colegas chineses, vou apresentar essa trajetória em várias fases.

1ª fase: 1974-1993

Em 15 de agosto de 1974, durante o governo Geisel com Azeredo da Silveira como ministro de Relações Exteriores, ocorreu o estabelecimento das relações diplomáticas, seguido, alguns anos depois, pela celebração do primeiro acordo comercial, em 1978.

Havia, de ambos os lados, interesse em explorar o potencial para desenvolver cooperações Sul-Sul, em especial parcerias científicas. Nesse contexto, foi fechado, em 1988, na ocasião da visita do presidente José Sarney à China, um acordo de cooperação para tecnologia espacial que, apesar de altos e baixos, mostrou-se duradouro e mutuamente benéfico: o Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres (CBERS, na sigla em inglês), envolvendo o INPE, pelo lado brasileiro, e a Administração Espacial Nacional da China, pelo lado chinês.
O Brasil enxergava potencial para exportações, principalmente de bens industrializados. Na época, a China inclusive exportava petróleo para o Brasil e tinha interesse na experiência brasileira de desenvolvimento. A autora Isabella Weber lançou recentemente um livro, publicado no Brasil pela Boitempo, intitulado Como a China Escapou da Terapia de Choque, no qual menciona

esse interesse chinês pela experiência de industrialização brasileira.

Um exemplo concreto foi a Itaipu, que gerou conhecimento para a construção da Hidrelétrica de Três Gargantas, na China. Anteontem, foi lançado um livro organizado por mim e pela professora Ana Tereza, junto com a Embaixada, por ocasião das comemorações dos 50 anos de relações Brasil-China, que inclui um artigo de Aloizio Mercadante relatando o primeiro envolvimento do BNDES com a China, que se deu justamente pelo fornecimento de crédito para o financiamento de exportações de serviços de engenharia brasileira para a construção da hidrelétrica na China.

2ª fase: 1993-2004

Em 1993, ambos os países passaram por momentos de inflexão. A China acelerou sua liberalização econômica, tentando recuperar seu prestígio após os acontecimentos na Praça Tiananmen, enquanto o Brasil, sob o governo Itamar Franco, enfrentava os desafios de alta inflação após a era Collor. Por esses e outros motivos, o comércio bilateral havia diminuído e a cooperação estava paralisada. Era preciso buscar uma nova dinâmica. Daí surgiu a Parceria Estratégica, assinada na ocasião da visita do recém-empossado presidente Jiang Zemin ao Brasil, em novembro de 1993, acompanhado de seu vice, Zhu Rongji, conhecido na época como o “czar econômico” da China. Assim, o Brasil foi o primeiro país do mundo com o qual a China assinou uma Parceria Estratégica.

Naquele momento, as posições econômicas dos dois países eram semelhantes, com PIBs de valores não muito díspares. No entanto, na mesma década de 1990, o Brasil começou a perder competitividade em sua indústria, enquanto a China avançava na direção oposta. Como consequência, estabeleceu-se uma relação comercial baseada na troca de bens primários por produtos manufaturados, impulsionada pelo crescimento da demanda chinesa por matérias-primas, alimentos e produtos energéticos.

A partir daí, consolidou-se um padrão centro-periferia nas relações comerciais, com duas características constantes:
superávit do lado brasileiro devido à exportação de um volume expressivo e crescente de matérias-primas, que mascarava o déficit, também crescente, em manufaturas;
concentração da pauta exportadora em poucos produtos: inicialmente, soja e minério de ferro não processados, aos quais se juntou o petróleo não processado a partir do pré-sal.

3ª fase: 2004-2014

O ano de 2004 marcou o 30º aniversário da retomada das relações diplomáticas entre os dois países, e, nessa ocasião, ocorreu a primeira e histórica visita do presidente Lula, que havia tomado posse no início do ano anterior. Essa visita expressava também uma vontade política mais abrangente de abrir relações com o que hoje é chamado de Sul Global. Vale lembrar que, no plano de governo de 2002, já constava a prioridade de estabelecer relações com China, Índia, Rússia e África do Sul, países com os quais, poucos anos depois, o Brasil fundaria o Brics.

Durante a visita do presidente Lula, Brasil e China criaram a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban), voltada para operacionalizar a parceria estratégica estabelecida onze anos antes. A Cosban, que neste ano comemora 20 anos, é o mais alto mecanismo institucionalizado de interação governamental entre os dois países, expressando a vontade mútua de dar um salto de qualidade nas relações bilaterais.

A missão do presidente foi acompanhada pela “maior missão empresarial brasileira ao exterior jamais registrada”, segundo o Itamaraty. Durante a visita, foi estabelecido também o Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), com sede no Rio de Janeiro, ao lado do CEBRI, que hoje é o mais importante promotor dos interesses empresariais na relação Brasil-China. Em 2004,

também houve uma visita oficial de alto nível do Partido dos Trabalhadores (PT) à China, liderada por seu presidente, José Genoíno, na ocasião dos 20 anos de relações políticas com o Partido Comunista da China (PCCh).

Até o momento, a Cosban realizou sete Sessões Plenárias, sua instância decisória mais alta, em março de 2006 (Pequim), fevereiro de 2012 (Brasília), novembro de 2013 (Cantão), junho de 2015 (Brasília), maio de 2019 (Pequim), maio de 2022 (virtual) e junho de 2024 (Pequim). Na primeira edição, a Cosban foi estruturada com seis subcomissões, que, com o tempo, se expandiram para onze, refletindo a ampliação para novos domínios de cooperação:
(1) Política (2) Econômico-Comercial e de Cooperação (3) Subcomissão de Agricultura (4) Ciência, Tecnologia e Inovação (5) Energia e Mineração (6) Indústria, Tecnologia da Informação e Comunicação (7) Cooperação Espacial (8) Temas Sanitários e Fitossanitários (9) Econômico-Financeira (10) Cultura e Turismo, Esportes (11) Meio Ambiente e Mudança do Clima. Esta última se reuniu pela primeira vez em setembro de 2023, à margem da Assembleia Geral das Nações Unidas.

Ou seja, criou-se um arcabouço institucional permanente que o Brasil não possui com nenhum outro país fora do Mercosul. Em 2009, a China se tornou, pela primeira vez, o maior parceiro comercial do Brasil, posição que mantém até hoje, com um crescimento constante do comércio entre os dois países. No mesmo ano, também houve um avanço nas relações políticas internacionais com o estabelecimento do BRICS e a atuação conjunta nas cúpulas do G-20, que também começaram naquele ano.

A partir de 2010, no último ano do governo Lula, assistimos à chegada de volumes expressivos de investimentos chineses no Brasil, no contexto da política de internacionalização das empresas chinesas, sobretudo estatais, reflexo da diretriz “Go Global” estabelecida pelo governo chinês. Durante o governo Dilma, especulou-se que a atração de investimentos chineses ao país poderia ser vista como um elemento compensatório para o padrão comercial considerado problemático.

No caso dos financiamentos, os principais agentes no Brasil foram o Banco de Desenvolvimento da China (CDB) e o China Exim Bank. Segundo a China-Latin America Finance Database, essas duas instituições emprestaram US$ 28,9 bilhões para empresas e projetos no Brasil entre 2005 e 2017, sendo o CDB responsável por 95% desse montante. Além disso, o China-LAC Industrial Cooperation Investment Fund (CLAI Fund) investiu em vários projetos no Brasil, num total de cerca de US$ 200 milhões, com participações menores, mas importantes para viabilizar algumas aquisições. O fundo também desempenhou um papel importante na concepção do Fundo de Cooperação Brasil-China para a Expansão da Capacidade Produtiva (“Fundo Brasil-China”), assinado pelos governos do Brasil e da China em 2015, com o compromisso de alocação de US$ 15 bilhões pelo lado chinês e US$ 5 bilhões pelo lado brasileiro. No entanto, desde então, esse mecanismo não avançou, frustrando expectativas. As razões são diversas: a dificuldade de classificar os projetos de interesse bilateral, deficiências de planejamento e estruturação e, em menor grau, a instabilidade política no Brasil. Apenas pelo nome do Fundo, já seria o caso de retomar e operacionalizar essa iniciativa de expansão da capacidade produtiva.

Por último, houve expectativas quanto ao potencial de financiamento de projetos de infraestrutura pelo Novo Banco de Desenvolvimento, conhecido como “Banco do BRICS”, e pelo Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB), ambos com o Brasil como membro fundador.

Ainda no primeiro governo Dilma, em 2011, foi elaborado o Plano Decenal de Cooperação, com o objetivo de sinalizar as áreas prioritárias e os projetos-chave em ciência, tecnologia e inovação; cooperação econômica; e intercâmbios entre os povos de 2012 a 2021. Em 2012, a Parceria Estratégica evoluiu para uma Parceria Estratégica Global, e foi criado o Diálogo Estratégico Global Brasil-China, visando à articulação dos países em temas da agenda global.

Nessa época, para os governos de centro-esquerda, a China havia se tornado um “parceiro incontornável” nas discussões sobre a reforma da governança global e das instituições financeiras, embora a China nem sempre tenha apoiado as aspirações brasileiras, como o pleito por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Na década de 2000, o interesse acadêmico na China também aumentou. A Universidade de Hubei, em parceria com a Unesp, criou o primeiro Instituto Confúcio no Brasil. Hoje, temos 13, sendo a UFBA o mais recente, inaugurado no ano passado.

4ª fase: 2015-2022

Com a crise política que culminou no impeachment da presidenta Dilma Rousseff, as relações internacionais passaram por uma inflexão. Michel Temer, que havia acompanhado Cosban como vice-presidente, assumiu formalmente a presidência em 31 de agosto de 2016 e, logo em seguida, viajou com José Serra e Renan Calheiros para a China para participar da Cúpula do G20.

O processo de liberalização acabou favorecendo as exportações chinesas, como no caso das plataformas e equipamentos para a exploração de petróleo, devido ao desmonte da política de conteúdo local promovido pelo governo Temer.

Já no governo Bolsonaro, houve um duplo movimento de distanciamento e continuidade: enquanto, na área política, ocorreu um esfriamento que, em alguns momentos, chegou a ser hostil, na área econômica e comercial houve consolidação e até expansão.

Foi criado um núcleo dentro do Executivo e do Legislativo para garantir que a sinofobia não prejudicasse os interesses econômicos e financeiros, especialmente de setores que apoiavam o governo. No Ministério da Agricultura, criou-se literalmente um “Núcleo China”, liderado por uma

especialista na China com grande articulação com o agronegócio. Além disso, a Vice-Presidência da República, a área econômica e, no Congresso Nacional, as frentes parlamentares do Brics e das relações Brasil-China participaram dessa articulação. Fora do governo, houve articulações de organizações como o Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC) e o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI).

Em 2018, portanto antes do início do mandato de Bolsonaro, o comércio entre os dois países girava em torno de US$ 99 bilhões; em 2022, já alcançava US$ 150 bilhões. Dois exemplos emblemáticos de como as forças econômicas conseguiram blindar seus interesses são: (1) a pressão do Ministério da Agricultura, em 2019, para que o Brasil apoiasse Qu Dongyu, o candidato chinês para comandar a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), em detrimento de um candidato da Geórgia apoiado pelos EUA, que o Ministério das Relações Exteriores (MRE) queria chancelar. (2) O caso da Huawei, no qual nem a pressão de Trump sobre Bolsonaro conseguiu barrar a participação da empresa chinesa na implementação do 5G no Brasil.

Ou seja, mesmo nos momentos mais tensos das relações políticas bilaterais, os interesses comerciais e financeiros prevaleceram. De acordo com dados do CEBC, em 2021, o Brasil foi, inclusive, o país que mais recebeu investimentos chineses no mundo, embora o patamar estivesse muito baixo devido à pandemia.

5ª fase: 2023-

Ao retornar à Presidência, Lula encontrou uma relação comercial em pleno crescimento. As exportações para a China, no valor de US$ 104 bilhões, superaram a soma das vendas para os Estados Unidos e a União Europeia, que totalizaram US$ 83 bilhões. A China respondeu por um terço das exportações totais do Brasil e quase dois terços do superávit comercial.

Em 2004, poucos analistas apostavam que, vinte anos depois, nosso comércio com a China passaria de US$ 9 bilhões para US$ 157 bilhões. O Brasil se tornou o país com o maior superávit comercial com a China no mundo, de acordo com os dados da Unctad. No entanto, continua a concentração em três produtos não processados: soja, petróleo e minério de ferro, que representam cerca de 75% do total.

Em termos de investimentos, a China é a quinta principal origem de investimentos no Brasil, e o Brasil está entre os cinco principais destinos dos investimentos chineses no mundo. No entanto, também aqui há uma grande concentração em alguns setores. Dados do Conselho Empresarial Brasil-China, referentes ao período de 2007 a 2022, apontam que os setores de eletricidade (com 45,5%) e petróleo (com 30,4%) absorveram a maior parte dos US$ 71,6 bilhões que empresas chinesas investiram no Brasil. Isso continua sendo o padrão, embora haja uma diversificação em projetos envolvendo empresas privadas, mas com menor volume de investimentos e muito voltados para o padrão maquila, com importação de componentes.

Tivemos a histórica visita do presidente Lula em abril do ano passado, sem dúvida a mais importante visita internacional em seu primeiro ano de mandato. A cooperação bilateral, tomando em conta as disposições do Plano Estratégico 2022-2031, foi reforçada com 15 novos acordos. E já na preparação desta viagem, havia a expectativa de que o Brasil pudesse aderir à BRI, o que, como se sabe, não aconteceu.

Em junho deste ano, foi realizada a VII Sessão Plenária da Cosban em Pequim, com a presença do vice-presidente Alckmin. Entre outros temas, esse encontro abordou o avanço do programa de satélites, agora com o CBERS-5, um satélite geoestacionário meteorológico que será posicionado em uma órbita específica, acompanhando a rotação da Terra. Isso permitirá coletar dados para a previsão do tempo e o monitoramento de eventos climáticos extremos,

algo de extrema relevância para o Brasil. Além disso, iniciou-se o desenvolvimento do CBERS-6, dando continuidade ao programa de satélites, que permanece como o carro-chefe da cooperação tecnológica.

Também foram resolvidas algumas pautas do agronegócio, como a abertura do mercado chinês para a noz-pecã e o café, além de 38 novos estabelecimentos brasileiros que ganharam licenças para exportar carnes para a China.

Agora, vários analistas classificam esse novo momento na relação Brasil-China como “retomada”, “renovação” e até uma “refundação” das relações bilaterais. No entanto, insisto na ideia de que devemos aproveitar essa oportunidade para repactuar essa relação. Inclusive, no livro que mencionei, que organizei junto com a professora Ana Tereza e a Embaixada por ocasião dos 50 anos de relações diplomáticas, há um artigo nosso com esse título.

Na área política e na atuação em nível internacional, como no Brics, no G20, nas questões sobre a guerra na Ucrânia ou o massacre em Gaza, o reencontro entre os dois países foi natural e rápido.

No entanto, a grande questão é que, ao contrário dos dois governos anteriores, este governo quer retomar o projeto de criar uma base industrial-tecnológica endógena, com bases digitais e ecológicas, entendendo isso como uma condição necessária para que o país possa superar sua condição periférica.

Agora, temos vasta literatura e experiência internacional que mostram que a chegada de investimentos, por si só, não garante e até pode desarticular cadeias produtivas existentes.
Um grande investimento de uma empresa do setor elétrico, por exemplo, que traz a torre inteira e nem produz nem um fio no país, não ajuda a criar capacidade industrial e tecnológica. Nem uma montadora que vem apenas para montar peças importadas no regime SKD ou CKD.

Dito isso, é válido e necessário que o governo Lula aposte nessa repactuação

com a China, e vejo quatro argumentos para ser otimista quanto ao avanço dessa ideia:

Primeiro, a própria China fez esse movimento de sair da condição periférica ao incorporar com êxito os investimentos estrangeiros em sua estratégia de desenvolvimento. A abertura para o capital internacional ocorreu, mas dentro de diretrizes estabelecidas pelo próprio país, no caso da China, pelo Partido Comunista Chinês.
Segundo, embora a relação comercial e econômica estabelecida entre Brasil e China reflita a lógica centro-periferia, a China não é um país imperialista e deseja ser parte do Sul Global. Portanto, deve-se entender o desconforto em consolidar uma relação que lembra as relações Norte-Sul.
Terceiro, a escalada da rivalidade com os EUA e, em menor intensidade, com a Europa, faz com que, na minha opinião, a China tenha interesse em investir e consolidar uma relação duradoura e equilibrada com a segunda maior economia do hemisfério americano, por motivos geopolíticos.
Por último, embora a lógica das empresas chinesas, estatais ou não, seja garantir o máximo retorno sobre seus investimentos, conquistar mercados e garantir acesso a matérias-primas, é fato que há uma certa capacidade de ingerência centralizada por parte do Partido Comunista Chinês, o que pode facilitar uma pactuação com objetivos e metas de médio a longo prazo.

E a BRI?

Quando a iniciativa foi lançada, chamava-se One Belt, One Road (OBOR) e se limitava a estabelecer conexões físicas até a Europa e África. Vários países latino-americanos, de menor porte, ficaram preocupados com a possibilidade de exclusão da cooperação com a China. Em seguida, o nome mudou para BRI, e a iniciativa ganhou uma perspectiva global, incluindo, portanto, América

Latina e o Caribe.

A China convidou, em 2018, durante a Cúpula China- Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), os países da América Latina a participarem da BRI. O Brasil optou por não aderir à iniciativa, não porque tivesse algum problema com o projeto chinês, mas porque considerou que não haveria alteração nos custos e benefícios das relações, mesmo se optasse por participar. Apesar de não ter aderido à BRI, pode-se dizer que a forma de atuação e a presença chinesa no país seguem a mesma lógica dos países signatários da BRI, gerando as mesmas oportunidades e desafios.

Até a entrada da Argentina na BRI, em 2022, a situação na América Latina e Caribe (ALC) era a seguinte: 19 países eram membros, com exceção da Venezuela, todos de economias menores. As quatro maiores economias (Argentina, Brasil, Colômbia e México) não haviam aderido. Na minha opinião, perdeu-se uma oportunidade de articular essa adesão com uma estratégia que melhorasse a relação entre a América do Sul, ou o Mercosul, e a China. No entanto, a entrada da Argentina é compreensível ao considerarmos a vulnerabilidade financeira do país e a importância de sua relação com a China. Houve até uma situação sui generis em que o país utilizou renminbis do acordo swap para pagar uma parcela da dívida em dólares com o FMI. Isso foi possível porque a moeda chinesa já é, há vários anos, uma moeda conversível no sistema FMI, ao lado do dólar estadunidense, do euro, do iene e da libra esterlina.

Na declaração dos presidentes Lula e Xi Jinping, em abril do ano passado, há um parágrafo importante sobre a BRI que vou citar: “Brasil e China manifestaram interesse em examinar sinergias entre as políticas de desenvolvimento e os programas de investimento do Brasil, inclusive nos esforços de integração sul-americana, e as políticas de desenvolvimento e as iniciativas internacionais da China, inclusive a ‘Iniciativa do Cinturão e da Rota’.” Na minha opinião, essa referência ao esforço de integração sul-

americana na mesma frase em que se menciona a BRI é muito bem colocada.

Agora, sobre a pergunta que paira no ar: “To BRI or not to BRI?”, podemos fazer as seguintes considerações.

De um lado, primeiro, é importante entender e respeitar a tradição diplomática brasileira de não aderir a uma instituição da qual não é membro fundador. Como lembrou recentemente um diplomata de alto nível a respeito dessa discussão: o Brasil é tão não-alinhado que nem aderiu formalmente ao movimento dos não-alinhados. No entanto, isso não é um princípio da política internacional do Brasil, lembrando que os princípios estão elencados no artigo 4º da Constituição Federal.

Segundo, há uma ideia da oportunidade de o Brasil equilibrar as relações entre China, União Europeia e EUA. Essa posição está presente no debate no Brasil. Muitos estudiosos na China acreditam que isso reflete uma pressão dos EUA. Certamente, os EUA têm suas preferências, mas não me parece ser o fator determinante que explica a força dessa posição de neutralidade, que se manifesta também na não adesão à OCDE, por exemplo.

Terceiro, a relevância desse assunto para nossa relação com a China não é muito bem compreendida no Brasil. Afinal, já temos uma relação muito intensa: fomos o primeiro país no mundo a assinar uma parceria estratégica com a China, temos o maior superávit comercial com a China entre todos os países do mundo, somos um grande receptor de investimentos chineses e há um grande interesse das construtoras chinesas em participar de licitações aqui. No âmbito político, há uma grande convergência e trabalho conjunto em questões internacionais, como a prioridade de combate à fome, a luta pela paz, contra sanções unilaterais, a questão do clima, entre vários outros temas. Pelo volume e intensidade da conexão que o Brasil estabeleceu e consolidou com a China, alguns brincam que o Brasil já estava na BRI antes mesmo de a BRI ser lançada.

Por outro lado, o primeiro argumento é pragmático: já que a China insiste tanto e é só um MoU, não custa nada. Pode gerar boa vontade e abrir mais mercados para nossa agroexportação, por exemplo.

Segundo argumento: seria um ato político do governo Lula para afirmar nossa identidade com o Sul Global e marcar um gradual afastamento do eixo ocidental, que estaria já em decadência. Essa é uma posição que encontramos entre alguns setores do próprio PT, embora o partido não tenha uma posição oficial sobre o tema.

E, terceiro, a adesão seria simbólica para marcar esse momento de relançamento das relações políticas entre o governo Lula e a China. Mas surge, sobretudo entre aqueles que apostam na agenda de nova industrialização do Brasil, a dúvida é se para isso não é preciso mais do que um simples MoU.

Pessoalmente, não acredito que a adesão, por si só, trará mais investimentos ou financiamentos nem mudará a qualidade dos fluxos de comércio e investimento. Porém, vejo a adesão nesta altura da visita de Xi Jinping, em novembro, como um processo quase natural, embora posso imaginar que o presidente Lula queira ver algo mais do que um MoU.

Aí vem a pergunta de fundo: O que queremos? Qual é o diferencial? Isso é uma disputa. O setor agropecuário quer uma coisa, talvez eles tenham uma lista mais fácil de negociar, porque segue a linha do “mais do mesmo”.

Na minha opinião, independentemente do momento ou da forma de aderir à BRI, o que precisamos é de um acordo abrangente de longo prazo que estabeleça uma base concreta de integração industrial e tecnológica. Pelo seu caráter, isso deveria ser feito no âmbito do Mercosul. Esse acordo poderia até servir como contraponto ao Acordo Mercosul-UE, negociado pelos governos Temer e Bolsonaro, e que está agora na mesa do presidente Lula.

O principal obstáculo não é Milei, mas o Paraguai. O Mercosul está refém da insistência paraguaia em manter relações diplomáticas com a República da China (Taiwan), em vez da República Popular da China. É o único país na América do Sul que mantém essa posição. Talvez seja hora de o Brasil usar seu prestígio para conversar com o Paraguai a respeito.

Giorgio Romano Schutte, Professor Associado em Relações Internacionais e Economia Política Mundial, bolsista de produtividade do CNPq, membro fundador da Rede Brasileira de Estudos da China (RBChina) e do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional (OPEB), colaborador da Fundação Perseu Abramo.

`