Suicídio interrompe golpe, que já era comemorado com champanha por Lacerda. Esta publicação é fruto da parceria entre o Centro Sérgio Buarque de Holanda, da FPA, e o Memorial da Democracia

70 anos: Getúlio se mata com um tiro no coração e interrompe golpe comandado por Lacerda
 
Suicídio interrompe golpe, que já era comemorado com champanha por Lacerda. Esta publicação é fruto da parceria entre o Centro Sérgio Buarque de Holanda, da FPA, e o Memorial da Democracia
Velório de Getúlio Vargas no palácio do Catete. Foto: Iconographia (CSBH)

De manhã cedo, o presidente Getúlio Vargas, de pijamas, sai do seu quarto no palácio do Catete, vai até o gabinete de trabalho e volta com um envelope. Pouco tempo depois, ouve-se um tiro. O filho, Lutero, corre para os aposentos do pai, seguido pela irmã, Alzira, e pela mãe, Darci. Encontram Getúlio caído na cama, com um revólver Colt calibre 32 perto da mão direita. Na altura do coração, um buraco da bala e uma mancha de sangue. Encostado no abajur, sobre o criado-mudo, estava o envelope contendo a carta que, datilografada na véspera por um amigo, explica o gesto — não é um lamento, mas um manifesto político.

A carta-testamento não deixava dúvida sobre como o suicídio deveria ser entendido: era uma reação a uma campanha subterrânea dos grupos internacionais, aliados aos grupos nacionais, para bloquear a legislação trabalhista e o projeto desenvolvimentista. “Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida”, dizia a carta, que  concluía: “Serenamente dou o meu primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar para a história.”

Naquele momento, seu maior adversário, Carlos Lacerda (UDN), ferido no pé dias antes no atentado da rua Tonelero, comemorava com champanha o golpe que parecia vitorioso.

Horas antes, uma reunião de oficiais de alta patente recusara a proposta de Getúlio de licenciar-se da Presidência enquanto se desenrolasse o Inquérito Policial Militar (IPM) sobre o atentado. Brigadeiros, almirantes e generais foram taxativos: só aceitariam a renúncia.

Certo de que vencera o último round na luta contra Getúlio, Lacerda vociferou numa emissora de rádio: “Aqui estou, no dia da redenção nacional […] para declarar que esse covarde, esse pusilânime, não está licenciado, está é deposto, o lugar dele é no Galeão [palco do IPM] ou no estrangeiro, e deve apodrecer na cadeia!”

Getúlio estava encurralado. Às duas horas da manhã, numa reunião ministerial, ouvira dos ministros militares que os oficiais das três armas haviam se unido em torno do manifesto dos brigadeiros que pedia sua renúncia. Às seis horas, dois oficiais da Aeronáutica foram ao Catete convocar Benjamim, irmão de Getúlio, para depor no Galeão.

Pouco antes do suicídio, o presidente recebera a notícia de que o comando das Forças Armadas havia se somado ao movimento pela sua renúncia imediata.

Getúlio cumpriu então o que havia prometido ao país dias antes. Eleito pelo povo, só sairia morto do palácio do Catete. Por volta das oito horas da manhã, suicidou-se com um tiro no peito.

A notícia, veiculada pouco depois pelas rádios, chocou o país. A população, revoltada, saiu às ruas para expressar sua indignação e homenagear o presidente morto.

No Rio de Janeiro, capital da República, uma multidão amargurada, revoltada e colérica passou a percorrer as ruas, armada com paus, pedras e fúria. Arrancou dos postes propaganda da oposição, quebrou as vidraças da Standart Oil, apedrejou a fachada da embaixada dos Estados Unidos e os prédios onde funcionavam os jornais “O Globo” e “Tribuna da Imprensa”. Para arrematar, incendiou os caminhões que distribuíam esses jornais. Só a “Ultima Hora”, que era favorável ao governo Vargas, pôde circular naquele dia.

Horas depois, em frente ao palácio do Catete, um milhão de pessoas tentava ver o corpo do presidente. Muitos choravam compulsivamente, outros desmaiavam, e havia aqueles que, ao entrar na sala onde acontecia o velório, se agarravam ao caixão.

Às oito e meia da manhã do dia 25, a multidão acompanhou o corpo de Getúlio até o aeroporto Santos Dumont, em um gigantesco cortejo que se desenrolava pela praia do Flamengo, do Russel até a avenida Beira-Mar.

Quando o avião da Cruzeiro do Sul desapareceu no céu rumo a São Borja, aconteceu o inevitável: as pessoas perceberam que estavam em frente ao quartel da 3ª Zona Aérea. O que era dor virou cólera, e a multidão avançou contra a guarnição da força militar que era escancaradamente oposição ao governo Vargas. Os soldados da Aeronáutica, aterrorizados, dispararam contra a população civil desarmada durante 15 minutos. No tumulto, mulheres e crianças foram pisoteadas, uma pessoa morreu e muita gente saiu ferida.

A comoção nacional transformou inteiramente a situação política. Os golpistas tiveram de recuar às pressas. As tropas voltaram aos quartéis, e os líderes da oposição, inclusive Lacerda, preferiram se esconder da fúria popular.

Getúlio, o “pai dos pobres”, havia partido. O povo estava de luto, mas vigilante. Nas ruas, deixava claro que não aceitaria ver os inimigos do presidente, que o haviam levado à morte, dando novamente as cartas no Brasil.