Paulo Vannuchi

Serenidade e paixão - o socialismo de Antonio Candido, por Paulo Vannuchi
Walter Craveiro/Divulgação Flip 

Juntas, essas duas palavras resumem com rigor o que Antonio Candido foi em sua vida profissional, intelectual e social. Notável crítico Literário e com lugar assegurado na galeria dos grandes intérpretes do Brasil no século 20 – ao lado de Sérgio Buarque, Raymundo Faoro, Caio Prado, Florestan e Celso Furtado, pautou sua longa vida por uma militância socialista também regida pelos dois termos.

Essa composição é rara na literatura, por exemplo, serenidade fala de Machado, Graciliano e Drumond, enquanto paixão é atributo de Castro Alves, Augusto dos Anjos e do seu amigo Oswald. No socialismo, quem não conhece a figura do jovem apaixonado, que esbraveja em casa, no trabalho e na escola? Que não hesita em desprezar a serenidade como virtude burguesa?

Pois é. Descrever o socialismo de Antonio Candido é contar sobre episódios, textos, entrevistas, discursos e conversas onde convivem a paixão mais convicta por esse ideal histórico e a serenidade dos grandes sábios. Ou do caipira que ele reencontrou em Bofete, às margens do rio Bonito, identificando naquele homem do povo muito do que tinha conhecido em sua própria infância na Mantiqueira. No Brasil de hoje, onde a palavra serenidade soa como verdadeira peça de arqueologia, parece estranho valorizar esse dom. Também na Itália do mesmo século, outro pensador socialista não vinculado ao marxismo ortodoxo, Norberto Bobbio, teve como um de seus mais importantes textos políticos e filosóficos “Elogio della mitezza”, termo que naquela língua possui significado semelhante.

Para ambos, sem abandonar a necessária firmeza de convicções, uma pessoa – ou deteriorada força política- pode e deve reconhecer e respeitar o outro como inteiramente outro numa convivência civilizada que, somente assim, será democrática.

Ninguém traçou ainda o necessário paralelo entre esses dois grandes intelectuais de dois mundos. Serão detectadas afinidades fortes na valorização da política como cultura, bem como da chamada cultura política do pós-Guerra Em Bobbio, isso aparece como defesa da moderação e da intermediação, da necessidade de um certo ecletismo para reconhecer que a verdade é sempre pluralista, nunca única. Ou, se fosse uma só, seria sempre uma escultura complexa e multifacetada, exigindo para ser conhecida a junção de distintos enfoques e doutrinas.

Ambos os intelectuais convergem, ainda, na compreensão de que as revoluções não existem apenas como grandes datas de ruptura histórica- 1789 e 1917, por exemplo -,mast ambém como processo deslizante que ignora calendários precisos,transformando os hábitos,as regras de convivência social e até mesmo as estruturas do poder. Avanços revolucionários nos direitos da mulher devem ser reconhecidos, nessa chave de leitura, como um saldo positivo legado pelo violento século 20, embora não contem com um momento fundador ou marco exato no calendário dos meses e anos.

Para Bobbio e Antonio Candido cabe também ao intelectual uma importante tarefa de intermediação ou moderação em disputas e conflitos, fugindo sempre da maldição lançada por Julien Benda em La trahison des clercs: ou trai suas convicções políticas e partidárias, ou trai sua condição de verdadeiro intelectual.

São abundantes os episódios em que Antonio Candido percorre as trilhas fascinantes da serenidade e da moderação, falando da literatura ou da sociedade em seus espelhamentos recíprocos. Em “Direito à Literatura”, brilhante ensaio de 1988, ele resume em oito pontos o seu código para decifrar os traços essenciais da melhor condição humana:

1. O exercício da reflexão;

2. A aquisição do saber;

3. A boa disposição para com o próximo;

4. O afinamento das emoções;

5. A capacidade de penetrar nos problemas da vida;

6. O senso da beleza;

7. A percepção da complexidade do mundo e dos seres; 8.

O cultivo do humor.

E arremata: “A Literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”.

Flávio Aguiar, seu aluno, amigo e companheiro no PT, cuidou de acentuar na forma de contraprova onipresente cada um desses itens, durante exposição em seminário de 2012 nas Ciências Sociais da USP, em homenagem a Antonio Candido:

1. “A negação da reflexão como estratégia de dominação;

2. A satisfação com a própria ignorância e a dos outros, e seu estímulo programado;

3. O ódio ou o desprezo pelo próximo, e sua indução individual e coletiva;

4. O embrutecimento das emoções;

5. A capacidade de fugir ou negar os problemas da vida através de fantasias fanatizantes;

6. A fixação num único ideal de beleza, em geral narcisista, e a destruição de outras formas do belo como repugnantes, decadentes ou impuras;

7. A simplificação fanática do mundo e dos seres, em geral de fonna maniqueísta e autocomplacente;

8. Last but not least, o cultivo do ressentimento e do amargor, e confusão do humor com o sarcasmo destruidor do outro”.

Relendo em 2019 as oito recomendações de Antonio Candido e as formulações contrastantes de Flavio Aguiar, assusta notar a carga premonitória que estava presente, sete anos antes, nas descrições antecipadas por este último do que viria a ser o Brasil da era Bolsonaro.

Mas não é este o propósito deste texto, e sim o resgate necessário – indispensável mesmo – da importância dessa síntese disjuntiva entre paixão e serenidade para que a sociedade brasileira busque a trilha perdida que leve a um futuro digno desse nome.

Se a serenidade de Antonio Candido já foi abordada até aqui, onde fica então a paixão política?

Assim como Bobbio ou como o próprio Che, Antonio Candido foi uma dessas pessoas que abraçaram ideais socialistas já desde tenra adolescência, mesmo vivendo no seio de famílias relativamente abastadas, que nunca sofreram na carne a violência da fome ou da pobreza material.

Estudante de Direito no Largo de São Francisco, teve seu batismo político no enfrentamento do Estado Novo. Vinculou-se a agrupamentos de esquerda não tributários do tronco comunista hegemônico. Até sua morte em 2017, foram nada menos que oito décadas de militância socialista desenvolvida em complemento- nunca centralidade- ao seu labor sociológico, educativo e literário.

É provável que nunca tenha falado tão apaixonadamente sobre sua orientação socialista como na antológica entrevista concedida a Joana Tavares no jornal Brasil de Fato, em 8 de agosto de 2011, publicação oficial do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra-MST.

Mestre Antonio Candido começa bastante sereno: “Tenho muita influência marxista, não me considero marxista, mas tenho muita influência marxista na minha formação e também muita influência da chamada escola sociológica francesa. que geralmente era formada por socialistas “Talvez eu seja aquilo que os marxistas xingam muito, que é ser eclético. Talvez eu seja um pouco eclético, confesso.” ”Agora estou querendo reler alguns mestres socialistas, aquele que os comunistas tinham ódio. Ele era marxista, mas dizia que o marxismo tem um defeito, achar que a gente pode chegar no paraíso terrestre. Então ele partiu da ideia do filósofo Immanuel Kant,da finalidade sem fim. O socialismo é uma finalidade sem fim. Você tem que agir todos os dias como se fosse possível chegar no paraíso terrestre, mas você não chegará. Mas se não fizer essa luta, você cai no inferno.”

Nessa perspectiva, cabe lembrar que outro intelectual importante na área da crítica literária, Roberto Schwarz- que fazia par com Walnice Nogueira Galvão na condição de pessoas muito próximas de Antonio Candido – chegou a sugerir alguma medição quantitativa da dose de marxismo presente no pensamento e na ação do mestre:

“Em momentos de ditadura ele se declara 90% marxista. Em momentos em que a luta de classes é menos acirrada, ele baixa para 50. Nos dois casos tem muito marxismo no trabalho dele. E um certo tipo de materialismo, uma certa consciência de que as classes sociais são decisivas, uma certeza de que a exploração é um fato central na sociedade moderna”.

Voltando à entrevista concedida ao periódico do MST, a paixão de Antonio Candido parece explodir quando perguntado se era socialista:

“Ah, claro, inteiramente. Aliás, eu acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo… tudo isso.. Esse pessoal começou a lutar para o operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que 12 horas, depois para não trabalhar mais que dez, oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar, para os trabalhadores terem férias, para ter escola para as crianças. Coisas que hoje são banais. 

Conversando com um antigo aluno meu, que é um rapaz rico, industrial, ele disse: ‘o senhor não pode negar que o capitalismo tem uma face humana’. O capitalismo não tem face humana nenhuma. O capitalismo é baseado na mais-valia e no exército de reserva, como Marx definiu. É preciso ter sempre miseráveis para tirar o excesso que o capital precisar. E a mais-valia não tem limites.

Marx diz na “Ideologia Alemã”: as necessidades humanas são cumulativas e irreversíveis. Quando você anda descalço, você anda descalço. Quando você descobre a sandália, não quer mais andar descalço. Quando descobre o sapato, não quer mais sandália. Quando descobrem, quer sapato com meia e por aí não tem mais fim. E o capitalismo está baseado nisso. O que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias…tudo é conquista do socialismo. O socialismo só não deu certo na Rússia.”

A entrevistadora interrompe: por quê? Virou capitalismo. A revolução russa serviu para formar o capitalismo. O socialismo deu certo onde não foi ao poder. O socialismo hoje está infiltrado em todo lugar”. Como é a luta dos trabalhadores? “O socialismo como caminho para a igualdade. Não é a luta, é por causa d a luta. O grau de igualdade de hoje foi obtido pelas lutas do socialismo. Portanto ele é uma doutrina triunfante.” Se daqui a 50 anos no Brasil não houver diferença maior que dez do maior ao menor salário, se todos tiverem escola…não importa que seja com a monarquia, pode ser o regime com o nome que for, não precisa ser o socialismo! Digo que o socialismo é uma doutrina triunfante porque suas reivindicações estão sendo cada vez mais adotadas.
Não tenho cabeça teórica, não sei como resolver essa questão: o socialismo foi extraordinário para pensar a distribuição econômica, mas não foi tão eficiente para efetivamente fazer a produção. O capitalismo foi mais eficiente porque tem o lucro. Quando se suprime o lucro, a coisa fica mais complicada É preciso conciliar a ambição econômica- que o homem efetivamente tem. assim como tem ambição de sexo, de alimentação, tem ambição de possuir bens materiais – com a igualdade. Quem pode resolver melhor essa questão é o socialismo, disso não tenho a menor dúvida.

Acho que o mundo marcha para o socialismo. Não o socialismo acadêmico típico (…) A gente não sabe o que vai ser. O que é o socialismo? E o máximo de igualdade econômica. Por exemplo, sou um professor aposentado da USP e ganho muito bem. Ganho provavelmente 50 ou 100 vezes mais que um trabalhador rural. Isso não pode. No dia em que, no Brasil, o trabalhador de enxada ganhar apenas 10 ou 15 vezes menos que o banqueiro, está bom, é o socialismo”.

Antonio Candido faz, então, um rápido sobrevoo pelos socialismos reais que o planeta já experimentou, olhando de cima o Brasil: “O socialismo é o cavalo de Troia dentro do capitalismo. Se você tira os rótulos e vê as realidades, vê como o socialismo humanizou o mundo. Em Cuba eu vi o socialismo mais próximo do socialismo. Cuba é uma coisa formidável, o mais próximo da justiça social. Não a Rússia, a China, o Camboja. No comunismo tem muito fanatismo, enquanto o socialismo democrático é moderado, é humano. E não há verdade final fora da moderação, isso Aristóteles já dizia, a verdade está no meio.

Quando eu era militante do PT – deixei de ser militante em 2002, quando o Lula foi eleito – era da ala do Lula, da Articulação, mas só votava nos candidatos da extrema esquerda, para cutucar o centro. É preciso ter esquerda e direita para formar a média. Estou convencido disso: o socialismo é a grande visão do homem, que não foi ainda superada, de tratar o homem realmente como ser humano.(…) O socialismo está andando. Não com o nome, mas aquilo que o socialismo quer – a igualdade – está andando. Não aquela igualdade que alguns socialistas e os anarquistas pregavam; igualdade absoluta é impossível Os homens são muito diferentes. Há uma certa justiça em remunerar mais aquele que serve mais à comunidade. Mas a desigualdade tem que ser mínima, não máxima”.

Ao longo de sua vida, Antonio Candido viveu dois engajamentos partidários mais persistentes. O primeiro, do pós-Guerra, foi no Partido Socialista do baiano João Mangabeira, de quem gostava de repetir como mantra, para quem teve o privilégio de visitá-lo em seu apartamento aa Joaquim Eugênio de Lima, falando de costas para uma prateleira inteirinha de Proust: “Socialismo sem liberdade, socialismo não é; liberdade sem socialismo, liberdade não pode ser”. A militância mais duradoura se desenvolveu no PT, sendo um dos fundadores do partido, ao lado de outros intelectuais de alta envergadura, como Sérgio Buarque, Paulo Freire e Mário Pedrosa. Coordenou os primeiros programas de cultura no partido, redigidos em equipe no início dos anos 1980.

Manteve generosa dedicação à Fundação Perseu Abramo, onde presidiu seu Conselho, sendo um raríssimo caso de contribuição financeira disciplinada ao partido, no decorrer de décadas. Foi um dos ministros no Governo Paralelo lançado em 1990 para fiscalizar Collor de Mello. O tempo todo, sempre aberto e disposto a aconselhar tantos quantos o procuravam para dialogar sobre alternativas e disputas partidárias. A pedido de Lula, liderou um ciclo de palestras sobre socialismo e democracia entre 2000 e 2001, sendo o referencial aglutinador de um grupo de importantes intelectuais que se reuniu regularmente durante a campanha presidencial de 2002 para orientar a candidatura, tecer críticas, propor mudanças e ajustes.


Como ele disse muitas vezes – sem corresponder exatamente ao que aconteceu de fato-, decidiu pendurar as chuteiras, aos 84 anos, no clia em que Lula foi eleito presidente da República, considerando cumprida a missão política de uma vida inteira.

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