A democracia como valor universal
Alberto Cantalice
O filósofo e escritor Carlos Nelson Coutinho, nascido na Bahia em 1943 e falecido no Rio de Janeiro em 2012, formulou e publicou na então Revista da Civilização Brasileira, em 1979, nos estertores da ditadura civil-militar instaurada em 1964, o ensaio intitulado a Democracia Como Valor Universal. Trago à lembrança esse ensaio de um dos maiores especialistas na obra do político italiano Antonio Gramsci, para falar das recentes eleições no Reino Unido e na França.
O peso da questão democrática e a completude do que dela deriva, no momento em que o espectro do fascismo, do cesarismo e do bonapartismo ronda a velha Europa e se assanha nos Estados Unidos, volta com força a permear os corações e as mentes das forças progressistas.
As adjetivações à democracia por parte de setores presos à lógica do revolucionarismo pequeno burguês descolado dos interesses objetivos dos movimentos populares reaparecem. Só que agora travestido como linguajar das novas mídias sociais, mais preocupados em “lacrar”, caçar likes do que disputar o imaginário coletivo e a propor soluções para os graves problemas que afligem o mundo em geral, e o Brasil em particular.
A vitória do Partido Trabalhista na Inglaterra, depois de 14 anos ininterruptos de governos conservadores e reacionários, a despeito de insuficiências como a pouca solidariedade com a causa Palestina e a visão subordinada quanto à Otan, traz um alívio ao progressismo. Não custa lembrar que a Grã Bretanha foi o laboratório dos algoritmos no episódio da Cambridge Analytics e que desembocou no Grexit e na saída da União Europeia.
A falta de combatividade do “Labour” levou à exclusão de suas fileiras do ex-líder Jeremy Corbyn, que concorrendo contra o candidato de seu antigo partido e de forma independente venceu as eleições no seu distrito.
Entretanto, a primeira declaração do novo Primeiro-Ministro Keir Starmer foi a de que estavam enterrados os planos de deportação de imigrantes para Ruanda. Uma das principais apostas dos Conservadores ingleses. Starmer também propõe adequar o NHS, o sistema de saúde inglês as exigências da população. Para isso são previstas novas tributações sobre altas rendas.
Porém foi na França que se apresentaram resultados mais alvissareiros. A vitória do neofascismo nas eleições para o Parlamento Europeu levou o Presidente Emmanuel Macron a antecipar o pleito interno.
A convocação antecipada do pleito pressionou o espectro da esquerda a se unificar já que para as eleições europeias saíram separados. Surgiu então a Nova Frente Popular: França Insubmissa, Partido Socialista, Ecologistas e Comunistas, que juntamente que tal qual os macronistas quedaram-se derrotados no primeiro turno.
Nasceu aí o Pacto Republicano: uma aliança entre a Frente de esquerda e os macronistas. O Pacto veio com a renúncia de várias candidaturas de parte a parte para evitar a vitória dos extremistas da Frente Nacional. Atitude que se mostrou acertada pelo resultado: a Nova Frente vitoriosa em primeiro, secundados pelo macronismo. A extrema direita ficou em terceiro lugar, seguida pelo gaullismo direitista.
A mobilização popular que antecedeu o segundo turno se estendeu para os intelectuais, artistas, atletas, sindicalistas e ativistas sociais de várias matizes. Todos afirmando a manutenção da democracia e o fim da xenofobia, do racismo, do machismo e da lgbtfobia.
Para as forças de esquerda que defendem uma sociedade diferente da atual onde o individualismo permeia todas as teias da sociabilidade, a manutenção da democracia é estratégica: “A democracia política não é um simples princípio tático: é um valor estratégico permanente, na medida em que é condição para a consolidação e aprofundamento da nova sociedade”, dizia Carlos Nelson.
Configurar um novo cenário de disputa com o capitalismo em sua face mais perversa: o neoliberalismo, demandará a construção da nova utopia. O filósofo italiano Norberto Bobbio, na disputa de ideias entre o eurocomunismo dos partidos comunistas italiano, espanhol e francês e o “socialismo real” da antiga URSS, perguntava: “Qual Socialismo satisfaria os novos tempos?”.
Penso que o socialismo-democrático. Mas isso é outra história!